Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O temporário e o precário

O clima na rede pública de ensino do estado de São Paulo estava ruim no segundo semestre de 2008. Começou pior em 2009. A famosa ‘provinha’ de que tanto se tem falado poderá nos ajudar a entender o que está acontecendo… ou o que não está acontecendo!


‘Provinha’ não é tratamento afetivo. O diminutivo decorre do que tem de mesquinha aos olhos de muitos professores. Essa ‘prova de habilitação’ (seu nome oficial) estava prevista pela Resolução 69/2008, da Secretaria de Educação, como parte importante na classificação dos chamados ‘professores temporários’ da rede estadual. Vale lembrar: dos 230 mil docentes da rede, 100 mil são temporários, isto é, não-concursados.


A temporariedade desse vínculo é de no máximo 12 meses. Temporariedade que se une à precariedade. A cada ano letivo, esses 100 mil recomeçam do zero, precisam ‘pegar’ aulas, ou ‘sobras’ de aulas, em escolas diferentes. Um professor ACT (Admitido em Caráter Temporário) pode dar três aulas numa escola, quatro em outra, duas em outra. Não há continuidade. Não há segurança. Problemático exigir compromisso e entusiasmo dos docentes numa situação dessas, que beira a indecência.


Sonho da terceirização?


A premissa com que a Secretaria de Educação trabalha é que boa parte dos professores concursados está acomodada, não produz, não colabora, e que muitos dos temporários já atrapalharam por demasiado tempo… A ‘provinha’ poderia atrair novos talentos, sangue novo para a rede. A avaliação foi obrigatória para os 100 mil professores ACT e para quem estivesse interessado em ingressar na carreira… sempre temporariamente, sempre precariamente. O número de novos inscritos impressiona (mas não muito): outros 114 mil professores prestaram o exame no dia 17 de dezembro de 2008.


No último dia 10 de fevereiro, saíram os resultados. Dos 214 mil professores, apenas 111 acertaram todas as questões, e 3 mil receberam nota zero. Desses 3 mil, metade já atuava na rede. Cerca de 45 mil professores, dos 100 mil temporários que lecionaram em 2008, seriam substituídos por outros, com notas melhores. Foi quando a Apeoesp (Sindicato dos Professores de São Paulo) entrou na Justiça. A ‘provinha’, por enquanto, está sob suspeita por uma série de razões: desorganização em sua aplicação, vazamento de gabarito, erros na divulgação dos resultados.


Essa prova, também ela preparada e aplicada de modo apressado e precário, adia uma decisão que caberia ao governo de São Paulo já ter tomado. Parece que a secretária da Educação, Maria Helena Guimarães de Castro, e o governador José Serra não querem tão cedo novas e melhores contratações. Permanecem no temporário. Não abrem inscrições para novo concurso. (Sonham talvez com a terceirização dos professores, delegando a alguma empresa a tarefa de selecionar e contratar?)


O ‘emergencial’ virou ‘rotina’


Parece, igualmente, que a mídia começa a perceber outras dimensões do problema, ocultadas pelo discurso oficial do PSDB paulista, há 13 anos no governo. Em entrevista à Folha de S.Paulo, no dia 13 de fevereiro, a professora Maria Isabel de Almeida, da Faculdade de Educação da USP, explica com toda a clareza:




‘Lá pelos anos 1970, chamava-se o professor temporário de `precário´. Mudou o nome, mas a precariedade ficou. […] Desapareceu a figura do professor `da´ escola estadual, aquele profissional que conhecia todos os alunos, acompanhava-os ao longo dos anos, sabia identificar os irmãos e familiares, a vizinhança, participava daquela comunidade. A rotatividade anual faz com que o professor esteja sempre na situação de `forasteiro´. […] Isso gera uma situação de esgarçamento da relação do professor com sua carreira. Professores mais bem formados não são atraídos para dar aulas; a classe média foge. Essas dezenas de milhares de vagas temporárias, portanto, serão preenchidas por indivíduos das classes populares sem outra opção profissional, como uma alternativa ao desemprego. […] A tal prova conseguiria apenas classificar a fina flor do lúmpen-professorado. Alguém acredita que isso resolveria o drama de professores mal preparados, fragilizados, desmotivados?’


Manter 100 mil professores em caráter temporário não ajudará a melhorar o nível da educação em São Paulo. E olha que a maioria desses profissionais, apesar das precárias condições de trabalho, faz o melhor possível. Novos temporários não salvarão o sistema, que haverá de esmagá-los depois, como tem esmagado os antigos. Ana Aranha, na revista Época (nº 561), põe o dedo na chaga: ‘O que era para ser emergencial – enquanto não se faziam concursos para aumentar o quadro de professores – acabou virando rotina.’ Não há política educacional que se mantenha em pé.


‘Defeitos em demasia’


No final da entrevista da Folha, indica-se que as provas aplicadas aos professores temporários estão no site da Folha Online. A elas voltaremos.


Por ora, vale a pena frisar que a entrevista da profª. Maria Isabel contrasta com o editorial que a mesma Folha publicara dois dias antes, em 11 de fevereiro. Um contraste, no entanto, menos forte, se lermos com atenção:




‘O contingente dos nota-zero representa só 1,5% do universo de 100 mil temporários – necessários para completar o quadro, dada a carência de profissionais concursados –, num corpo docente de 230 mil. Trata-se, porém, da famigerada ponta do iceberg: estimativa preliminar indica que 50% não obtiveram nem nota cinco. Poucos acreditam que a situação entre os 130 mil concursados seja muito melhor.




Tal retrato medonho da educação no estado mais desenvolvido do país motivou nova queda-de-braço entre a Secretaria da Educação, que mal ou bem busca enfrentar a questão da qualidade no ensino, e o sindicato dos professores (Apeoesp), sempre pronto à mais retrógrada defesa dos interesses menores da corporação. Uma tragédia de erros.


Estudantes e suas famílias saem perdendo, para variar. O único efeito da avaliação dos temporários até agora foi o adiamento das aulas, pois uma liminar obtida pela Apeoesp suspendeu os efeitos da prova, que tinha defeitos em demasia, registre-se.’


Esse tímido ‘mal ou bem’ em referência à gestão da Secretária da Educação e admitir que houve ‘defeitos em demasia’ já são um bom sinal. São outras pontas de outros icebergs a investigar.


Direito a escolher duas disciplinas


Até mesmo Gilberto Dimenstein, não obstante sua conhecida visão da educação, poderá nos ajudar a contextualizar a ‘provinha’. Os trechos abaixo são da matéria ‘Repitam a escola e os políticos. Não o aluno‘, de 15 de fevereiro:




‘Pela primeira vez o país teve uma noção mais precisa sobre a qualidade dos profissionais que estão em sala de aula, depois de revelado o resultado do teste inusitado aplicado entre 214 mil professores paulistas. Aproximadamente 40% tirou nota abaixo de cinco, ou seja, 96 mil professores, dos quais metade não chegou à nota três.


[…] Políticas públicas mudam ao sabor dos prefeitos e governadores ou de seus secretários. O que vimos, na semana passada, é que o despreparo é maior do que imaginávamos. Perceba que estamos falando aqui do Estado mais rico do país.


[…] Puxando o fio a partir da prova, em que, segundo as listas, 3.500 tiraram zero e apenas 111 (0,05%), a nota máxima, vemos a cadeia de vulnerabilidades. Já que dar aula em escola pública, especialmente nas grandes cidades e regiões metropolitanas e, mais especialmente ainda em suas periferias, não é exatamente das atividades mais atrativas — existe uma dificuldade imensa de atrair talentos. Todo o resto é apenas conseqüência, a começar dos cursos para formação de docentes.’


Já se vê que a precariedade do ensino paulista só se explicará com uma análise mais ampla. Testes de múltipla escolha são insuficientes. E lançar-se, o governo, numa briga contra o sindicato aumentará o abismo que separa os docentes e seus ‘patrões’.


Cada prova era composta por 25 questões. Somente ingressaria ou continuaria na rede como ACT quem participasse da avaliação. A prova baseou-se na Proposta Curricular do Estado (para Ensino Fundamental Ciclo II e Ensino Médio), implantada pela Secretaria em 2008. Cada participante tinha direito a escolher até duas disciplinas. Eu escolheria Língua Portuguesa e História.


Erro de concordância


Em que medida acertar essas questões demonstra que estou apto a ser professor temporário? O que a prova exige do docente, em termos de conhecimento, cultura, criatividade e experiência?


Eis a questão número 3 da prova de História:




‘A perspectiva de processo de ensino-aprendizagem adotada pela Proposta Curricular de História do Estado de São Paulo permite afirmar que:


a) A missão de formar cidadãos compete direta e exclusivamente ao (à) professor (a) de História e à escola, em seu conjunto.


b) O docente de História deve acolher disputas ideológicas no âmbito de suas aulas, não sendo descartada a doutrinação como mecanismo de ensino.


c) O foco principal do processo educacional é o `ensinar´, já que o `aprender´ é da responsabilidade do aluno, em primeiro lugar, e da família, em segundo.


d) No ensino de História, a leitura e a pesquisa em livros, inclusive o didático, são facultativas, uma vez que a curiosidade sobre o passado, por si só, atrai o interesse dos estudantes.


e) O ensino de História convoca a bagagem cultural do aluno, volta-se para o estudo e análise de documentos, estimula a pesquisa no livro didático e em outras fontes, bem como a leitura.’


E então, qual a resposta certa? Bastaria ter lido a Proposta Curricular correspondente, e perdoar a quem cometeu o pequeno erro de concordância:




‘Sobre a missão de formar cidadãos, convém lembrar que essa missão não compete, direta e exclusivamente, ao(à) professor(a) de História e nem à escola, em seu conjunto, já que as bases dessa formação são trazidas à sala de aula pelos alunos, armazenadas nos espaços sociais que eles freqüentam, em especial a família. É claro que os docentes, inclusive os de História, devem participar de maneira ativa do processo de percepção e formação dos valores constituintes da cidadania, mas isso não significa que deva (sic) abdicar de suas funções de docência, deixando de ensinar sua disciplina e produzir conhecimento sobre ela.’


Quem é bom e quem é ruim


Convém lembrar: a resposta a está descartada de antemão. O professor de História deve pensar duas vezes antes de querer ‘doutrinar’ seus alunos (o que descarta também a resposta b). Sobram três possibilidades. A resposta c, mal redigida (de propósito?) deixa margem a algumas dúvidas. A família deve ‘aprender’? Seja descartada também. A resposta d não faz sentido, embora, na prática, leitura e pesquisa se tornem muitas vezes facultativas!


Resta-nos a letra e. Uma resposta padronizada, simplificada, doutrinadora, que poderia valer para qualquer outra disciplina: Língua Portuguesa, Filosofia, Matemática, Física, Sociologia…


No Estado de S. Paulo, dia 11 de fevereiro, a secretária de Educação escreveu:




‘É claro que o professor é protagonista em todo esse processo. É fundamental valorizar o educador, a pessoa que dia-a-dia dedica-se ao ensino. Mas é preciso separar os bons dos ruins. O aluno vem primeiro.’


A ‘provinha’ julgará quem é bom e quem é ruim. O ruim, provavelmente, está em sintonia com a Apeoesp, e certamente é aquele tipo de professor que não gosta de aplicar testes de múltipla escolha (ou de única escolha, na verdade!). Tal professor deve ser lançado fora.


Um ótimo lugar para roubar


O curioso, para não perder de vista a Proposta Curricular, é que, num dado momento do texto, os mentores do ensino estadual condenam o maniqueísmo praticado pelos ‘outros’:




‘Não se pode esquecer que a produção de conhecimentos exige compromissos de ordem cultural, social e política, o que impede qualquer chance de neutralidade, complicando um pouco mais as coisas para o professor de História. […] Entretanto, nada disso significa que as aulas de História devam transformar-se em espaço para exercício de militância partidária ou de raciocínio limitado à oposição estreita e maniqueísta entre bons e maus.’


O papel da Secretaria da Educação, mais do que aventurar-se em preparar provinhas ou provões, é regularizar quanto antes a situação dos temporários e tornar menos precária a situação dos professores. Poderia inspirar-se, por exemplo, numa ação pequena, mas significativa, que o Distrito Federal e o governo do Rio de Janeiro adotaram neste começo de ano: adquirir microfones a serem usados pelos docentes em sala de aula. Dar voz aos professores, se realmente eles são protagonistas.


Ou então devemos assumir esse tal de maniqueísmo, ‘na boa’, e separar todos os ruins dos bons! Torcer por uma Lei da Responsabilidade Educacional que analise o que fazem ou deixam de fazer pela educação políticos eleitos para ‘administrar e zelar pelo bem comum’, conforme nos explica Gustavo Ioschpe. Aliás, o economista Ioschpe (mesmo com todo o maniqueísmo que costuma exercitar contra os professores), talvez esteja começando a compreender o que acontece na educação pública brasileira:




‘Se o político for desonesto, a educação será um ótimo lugar para tirar dinheiro: não só concentra uma parte grande do orçamento (no mínimo 25%) como ainda é cheia de transferências do governo federal. Tem uma grande vantagem: se o sujeito rouba da saúde e faltam remédios ou médicos, a população chia; se rouba dos transportes e faltam ônibus, os eleitores reclamam; se rouba da educação e os alunos não aprendem, ninguém se importa’ (revista Veja, edição 2100).

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br