Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O valor da baderna

O jornalista Gilberto Dimenstein publicou no sábado (27/3), na Folha Online, uma ‘pensata’ em que procurava qualificar a manifestação dos professores paulistas em frente ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual. Na opinião de Dimenstein, tratar-se-ia de uma ‘aula de baderna’, expressão de uma ‘minoria organizada e motivada, em parte, pelas eleições deste ano’ (ver ‘Professores dão aula de baderna‘).


No mesmo dia, a cobertura da greve dos docentes estaduais foi ‘promovida’ do caderno ‘Cotidiano’ para o caderno ‘Brasil’ da Folha de S.Paulo. De acordo os repórteres Fábio Takahashi e Ricardo Westin, a greve teria um caráter abertamente ‘político’, o que poderia ser aferido através das declarações públicas de seus dirigentes, bem como pela filiação partidária do sindicato da categoria. Por seu turno, ainda segundo a reportagem, a ação policial teria amparo legal: ‘Uma norma estadual determina que as ruas do Palácio são área de segurança e não podem receber atos desse tipo.’


Cito esses dois casos por entendê-los como paradigmáticos quanto à cobertura jornalística dispensada à greve dos professores paulistas. Com ênfases diversas, tornou-se quase uma unanimidade apontar para o viés ‘político’ do movimento. Mas talvez seja possível acrescentar algo à discussão. Nesse sentido, tomar a paralisação docente como expressão da crise vivida pela educação pública estadual permite pensar algo para além da superfície cotidiana das informações. Por ‘superfície’, leia-se: a redução da greve a uma reivindicação salarial e a um objetivo eleitoral.


A partir dessa perspectiva, a batalha selvagem pelo reajuste mal conseguiria disfarçar sua associação com a guerra eleitoral que se avizinha. E é a equivalência mecânica entre política e eleições que alimenta uma imagem negativa da ‘greve política’. A tarefa que se impõe, ao contrário, é reivindicar o caráter apropriadamente político da greve.


Acima de qualquer questionamento


Ora, a greve abre-se a uma discussão dos pressupostos educacionais instituídos; revela o que há de político naquilo que se apresenta como técnico; restitui à discussão aquilo que havia sido separado pela autoridade do especialista. Assim, o diálogo político deve ter como conteúdo privilegiado o ‘indiscutível’: por um lado, a constituição de um corpo docente tecnificado, aplicador das diretrizes autorizadas; por outro lado, a preparação do corpo discente para ser empregado no mercado de trabalho.


Em última instância, trata-se de discutir se a educação serve à informação de mão de obra ou à formação de cidadãos. Nesse sentido, as ruas que circundam o Palácio dos Bandeirantes são um local particularmente favorável a uma manifestação efetivamente política. A interdição legal dessa região a manifestações de descontentamento é o aspecto indiscutível questionado pelo ato dos professores. A profanação desse espaço é, nesse sentido, o gesto que pode restituí-lo ao uso comum.


Justificar a ação policial com base no aparato legal instituído é, de modo oposto, um gesto vazio: o conteúdo real da proibição é apenas a própria proibição. No entanto, o efeito moral e físico do aparato acionado para ‘disciplinar’ o uso das ruas próximas ao palácio é efetivo. E o que parece de fato preocupante na situação crítica evidenciada pela greve é não tanto sua instrumentalização no interior da arena eleitoral, mas sua captura no interior dos mecanismos despolitizados de gestão. Desse ponto de vista adquire sentido o desvalor atribuído aos movimentos grevistas recentes, tratados no mais das vezes como mero estorvo à engenharia de tráfego.


Assim, uma crítica ao paradigma exemplarmente expresso por Dimenstein, Takahashi e Westin se volta não tanto contra aquilo que eles oferecem como argumentação, mas contra aquilo que, em seus textos, parece pairar acima de qualquer questionamento possível: trata-se de reivindicar a educação como um problema apropriadamente político.

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Mestrando em História na Universidade de São Paulo