‘O Brasil vive o crime sem castigo’. O título inicial de uma série de matérias sobre a impunidade e a morosidade da Justiça (l8/06/2007) serve como um bom resumo do tratamento dado pelo Globo ao assunto. Estarrecido é o mínimo a se dizer do leitor que tomou conhecimento em fatos e números crus da realidade da aplicação da justiça no país. Não há como deixar de pensar que os códigos e as formas processuais foram elaborados com vistas à punição dos estratos sociais economicamente desfavorecidos, abrindo para os abastados mil e uma portas de saída. Uma verdadeira cultura da impunidade está entranhada por inteiro nas malhas do tecido social.
É inconcebível que um processo possa se arrastar por 40 anos sem conclusão. Um dos principais motivos alegados é a existência do foro privilegiado, responsável pelo vaivém de ações entre as diferentes instâncias do Judiciário. Mas há, sobretudo, um acúmulo de trabalho no Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte do país, que delega a cada um dos onze ministros uma média de dez mil processos por ano. No diagnóstico do ministro Joaquim Barbosa, ‘há centenas de casos dificílimos e urgentíssimos. É evidente que um tribunal desses não está preparado para minúcias de processos criminais’.
Inutilidade pacífica
Disso tudo tomaram conhecimento minucioso os leitores da série de reportagens. Permanece à sombra, entretanto, um dado civilizatório que diz respeito não apenas ao Brasil, mas a todo e qualquer país em vias de modernização globalizada, cujo avanço parece medir-se pela aceleração tecnológica do tempo. E esta característica tem-se revelado incompatível com os velhos ritos de aplicação da justiça.
Tal é, aliás, o ponto de vista da juíza federal Salete Maccalóz, bastante conhecida no Rio por combinar notável saber jurídico com ativismo social. Numa tese de doutorado – ‘O Poder Judiciário, os meios de comunicação e a opinião pública’, ECO/UFRJ, agosto de 2000 –, a magistrada sustenta que ‘a boa justiça é concebida em tempo lento, onde se pensa, medita-se até encontrar a melhor solução ou os melhores argumentos para a conclusão, porque o processo é a pesquisa da verdade’.
Haveria, assim, um descompasso entre o tempo cronológico que regula a vida social e o tempo do processo, regido pela complexidade do problema: ‘A velocidade não é apenas um pseudo-valor, utilizado para qualificar de antiquado e ruim tudo o que não estiver no seu compasso. A valorização que se lhe atribui produz na mesma escala a desvalorização do papel da justiça, onde os argumentos essenciais não são utilizados, bastando repetir à exaustão que ela é morosa para cair na rejeição popular e ficar pacífica a sua inutilidade’, diz a juíza.
Avançar em termos tecnológicos
O pano de fundo civilizatório para essa argumentação é o fato de que, num mundo posto em rede técnica, modifica-se profundamente a experiência habitual do tempo, a da ordem temporal sucessiva, dando lugar à imediatez e à simultaneidade. Os analistas do chamado ‘ciberespaço’ vêm apontando insistentemente para o novo tipo de fluxo informacional que liga a estrutura em rede da moderna organização urbana às novas configurações da informação eletrônica.
Virtualmente conectado a todos os outros, cada indivíduo pode ser alcançado sem demora, nem período marcado, por qualquer um. Interligados, tempo e espaço – como demonstra a física relativística – tornam-se elásticos: aumentada a velocidade, dilata-se o tempo. Isto é precisamente o tempo real, ou seja, a abolição das distâncias, dos prazos, assim como dos tempos mortos (a reciclagem do ócio pelo sistema de informação), pelos dispositivos técnicos integrados em nossa ambiência cotidiana.
Em alguns de seus trabalhos, o pensador francês Paul Virilio opõe a contemporaneidade desse tempo da imediatez ao tempo adiado ou ‘diferido’, ou seja, à velha experiência de uma espessura temporal em que a consciência pode tomar uma distância, representativa ou reflexiva, do fenômeno. O transe da oposição entre estes diferentes regimes temporais atravessa, naturalmente, instituições moldadas pela lógica dos tempos mais lentos ou mais compatíveis com um determinado tipo de reflexão. Para a juíza Salete Maccalóz, ‘a demora necessária à solução dos conflitos passou a ser o alvo preferencial das críticas em tempo de velocidade máxima’.
Evidentemente, a questão da impunidade é mais complexa do que o revelado pelos aspectos internos do tempo processual, uma vez que a pletora dos privilégios administrada pelos velhos estamentos patrimonialistas (os ‘donos do poder’, na célebre análise Raimundo Faoro) permanece intocada, como bem demonstraram as reportagens do Globo. Mas a argumentação da magistrada, com seu pano de fundo permeado pelo fenômeno do tempo acelerado, suscita a questão importante da tecnologia, na qual cabe a pergunta: não deveria o Poder Judiciário avançar mais fundo em termos tecnológicos?
Um exemplo seria a criação de uma estrutura própria, como já se sugeriu, para conduzir investigações criminais. Talvez, então, o ‘tempo real’ possa vir a agilizar o tempo adiado das sentenças.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro