Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O veto à Marcha da Maconha

Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas.” (Rui Barbosa, Oração aos moços, ed. Hedra, 2009, p. 69)

Nelson Rodrigues captou, de certa forma, a hipocrisia que ronda alguns meandros da sociedade, impondo um senso comum no qual, para evitar o debate, é melhor fingir a inexistência da situação. Para ele, alguns percalços da família eram relevados pelo bem maior, obtido com a afirmação de uma posição firme e ortodoxa, pela manutenção dela própria. A aparência de uma boa família, segundo sua ótica, era deveras mais importante do que a real felicidade familiar.

Essa configuração leva alguns à tentativa de evitar o debate, como forma de não corromper as mentes menos evoluídas. É em grande medida aquilo que leva alguns pais a tirarem os filhos da sala diante de cenas mais “picantes” da novela das oito. Esconde-se o que não se deseja discutir. Por seu turno, aprenderá o filho sobre sexo, na escola, com os amigos, ou com qualquer outro. Mas não terá com os pais um diálogo aberto e franco sobre o tema. Menospreza-se e freia o debate para que as feridas, embora existentes, não sejam abertas.

Situação análoga, em termos coletivos, ocorreu perante a malsinada “Marcha da Maconha”. Como que em um passe de mágica, e no calar da noite, uma liminar foi obtida perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e assim evitou-se, mais uma vez, que os participantes da “marcha da maconha” pudessem fazê-la sob esta alcunha. Adianto que não sei quais os objetivos concretos da aludida marcha: se a defesa da liberação do alucinógeno, descriminalização de seu uso ou a defesa de seus efeitos terapêuticos. Nem tampouco fazer a defesa dos elementos citados, ou conceder um salvo-conduto aos partícipes para sua utilização perante a marcha.

Liberdade de expressão e liberdade de imprensa

O que me causa asco é constatar que as prerrogativas para as manifestações pessoais e coletivas são violadas à custa do senso moral coletivo, para o qual, alguns assuntos não devem ser discutidos. É certo que, pouco tempo atrás, o mesmo discurso foi utilizado para que todos os impuros não pudessem ter um comportamento impróprio e indevido acerca das diretrizes colocadas pelo Estado. Entretanto, se no caso, Afeganistão, foi motivo de reprimenda e reprovação, em nosso país é tido como legal e justo.

O Direito norte-americano, através da primeira emenda, referenda não a liberdade de imprensa – direito secundário –, mas sim, a liberdade de expressão, esta sim, basilar de um sistema dito democrático. Em nosso plano nacional, a aceitação ao cerceamento ao debate decorre das próprias bases de nossa democracia. Norberto Bobbio já assinalava essa característica ao disciplinar que “existem democracias mais sólidas e menos sólidas, mais invulneráveis e mais vulneráveis” [BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 37].A falta de solidez e vulnerabilidade de nossa democracia nos remete à aceitação do cerceamento das liberdades individuais, como forma de manutenção ao status quo existente. A grita pela censura judicial de uma determinada matéria jornalística é imensamente maior do que a censura havida contra a manifestação de pensamento de determinado grupo da sociedade.

Alexandre de Moraes de maneira leciona que “proibir a livre manifestação de pensamento é pretender alcançar a proibição ao pensamento e, consequentemente, obter a unanimidade autoritária, arbitrária e irreal” [MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais – Teoria geral. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 119]. Será que os órgãos da sociedade em geral e detentora grau menor de direitos, do que os órgãos de imprensa. Será que em nosso sistema legal a liberdade de expressão é derivada da liberdade de imprensa? Tenho certeza que não.

Nesse diapasão, entendo como indevido o pensamento esboçado pelo douto ministro Carlos Ayres Britto, ao assinalar: “Avanço na tessitura desse novo entrelace orgânico para afirmar que, assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados [STF. ADPF contra dispositivos da Lei federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, Lei de Imprensa. Carlos Ayres Britto, relator].”

O direito de marchar

A liberdade de expressão e de pensamento é indissociável da própria evolução da sociedade. À custa de valores impostos indevidamente, Galileu Galilei, Copérnico, dentre outros, tiveram cerceado o direito de se expressarem. Posteriormente, a sociedade reconheceu os malefícios dessa proibição. Bertrand Russell assinalou: “Na verdade, há duas atitudes que podem ser adotadas ante o desconhecido. Uma é aceitar as afirmações de pessoas que dizem conhecer, baseadas em livros, mistérios ou outras fontes de inspiração. A outra consiste em sair em busca por si mesmo, e este é o caminho da ciência e da filosofia [Russell, BERTRAND. História do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p.18].”

Qualquer sociedade dita democrática deve basear suas orientações em primazia naquilo que não cause danos ao particular ou ao coletivo. Entretanto, como saber se determinada situação faz mal ou não se evita-se a discussão acerca de seus efeitos? A marcha da maconha foi proibida. Entretanto, o marchar dos “noia” na Cracolândia é uma atividade tolerada pelas nossas autoridades. Será apenas motivo de reprimenda, quando se deslocarem para a Avenida Paulista?

A inexistência do debate nos impossibilita a discussão acerca da utilização terapêutica da droga para o combate aos males do crack – droga de efeitos devastadores –, como querem alguns pesquisadores [Folha de S.Paulo, Saúde, “Unifesp trata dependência com maconha”, 11 de julho de 2010]. Ou seja, os preceitos morais e religiosos impedem uma discussão sobre um tema, que deveria ser feito de maneira desapaixonada.

Destarte, é louvável a decisão proferida pelo juiz dr. Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, ao assinalar:

“Não há crime de apologia quando o que se pretende é discutir uma política pública, seja a de participação popular no poder, seja a de saúde, seja a fundiária, etc. Não importa muito o teor do pensamento, da argumentação que será expressa no locus público. Para a Constituição, o que importa é a liberdade de fazê-lo. O Judiciário, nem qualquer outro Poder da República, pode se arrogar a função de censor do que pode ou do que não pode ser discutido numa manifestação social. Quem for contra o que será dito, que faça outra manifestação para dizer que é contra e por que. (…) O que não podem fazer é tentar impedi-la. Isso, sim, seria inconstitucional, atentatório à ordem pública e às liberdades públicas.”

Creio que, mais importante do que ter uma posição favorável ou contrária à Marcha da Maconha, é termos uma posição definitiva acerca do direito de marchar, seja em favor ou contra da mesma.