Foi com bastante surpresa que vários setores da sociedade receberam a notícia de que José Eduardo Elias Romão, até então diretor do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação (Dejus), da Secretaria Nacional de Justiça, tinha deixado o cargo no dia 10 de junho. Diretor do órgão desde fevereiro de 2004, José Romão esteve diretamente envolvido com o processo de regulamentação da classificação indicativa de programas de TV, filmes para o cinema, vídeo e DVD, jogos eletrônicos, espetáculos cênicos e musicais.
Desses, com certeza, o trabalho mais emblemático de sua gestão foi o processo de regulamentação da classificação dos programas de televisão. Alvo de acusações de propor a volta da censura, José Romão foi duramente criticado, principalmente pelas emissoras de TV, embora também tivesse recebido apoio de renomados juristas, artistas e personalidades brasileiras.
A elaboração da atual portaria 1.220/07, que estabelece as diretrizes da classificação, foi fruto de um amplo debate público, que, mesmo não sendo divulgado pela grande imprensa, conseguiu envolver boa parte da sociedade brasileira, seja integrando o Grupo de Trabalho, instituído em 2005 pela então secretária Claudia Chagas, seja participando das consultas e audiências públicas.
Tendo acompanhado de perto e noticiado, ao longo destes anos, todo o processo de trabalho, o Rio Mídia entrevistou esta semana, por e-mail, José Romão. Nesta entrevista, ele explica os motivos que o levaram a se afastar da Secretaria Nacional de Justiça e faz um pequeno balanço da gestão.
Interinamente quem ocupa o cargo de diretor do Dejus é o advogado Davi Ulisses Brasil Simões Pires, até então diretor-adjunto do próprio departamento. No início desta semana, o Rio Mídia também enviou, por e-mail, uma entrevista ao diretor. No entanto, até esta sexta-feira (27/06), a Secretaria Nacional de Justiça ainda não tinha autorizado a publicação das respostas dadas pelo novo diretor do Dejus. Acompanhe a entrevista concedida por José Romão.
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Por que o senhor deixou o Dejus? Houve alguma pressão por parte das emissoras de TV? Algum desentendimento interno na condução do trabalho no Dejus?
José Eduardo Elias Romão – Para deixar de fazer qualquer coisa que você gosta muito e que lhe propicia inúmeras realizações, um só motivo não basta. São várias as razões que justificam e, espero eu, que explicam minha saída da direção do Dejus. A primeira delas, e a mais importante, é que concluí o Plano de Trabalho ao qual me vinculava desde 2004. Depois de quatro anos e quatro meses de trabalho, felizmente consegui realizar, com o auxílio de inúmeras pessoas, todos os objetivos previstos no planejamento institucional do Departamento e também outros tantos objetivos relevantes e estratégicos que foram agregados ao trabalho, sobretudo por demanda da sociedade civil organizada. A segunda diz respeito à realização de uma pesquisa de doutoramento iniciada em 2006. Portanto, sinto-me obrigado a deixar o trabalho cotidiano de gestão do Dejus para poder desenvolver uma pesquisa sobre o processo de constituição dessa nova classificação indicativa. É hora de refletir detidamente sobre o que foi feito, sobre o quanto conseguimos avançar por esse campo ‘minado’ do controle democrático dirigido à comunicação social. E antes que você me pergunte, explico que uso ‘minado’ para me referir às acusações que explodem a cada movimento: ‘é censura’, ‘é moralismo’, ‘é dirigismo’ etc.
Há, é claro, razões de ordem pessoal não menos importantes, como ter mais tempo para a família, por exemplo. Portanto, saio porque acredito ter cumprido esta missão executiva como gestor público e porque preciso realizar agora minha outra missão, como pesquisador da Universidade de Brasília.
Nesse contexto, não há por que falar em pressão das emissoras comerciais contrárias à classificação indicativa. Além do mais, desde o inicio de 2007, quando a pretexto da transição entre o ministro Marcio Thomaz Bastos e o ministro Tarso Genro se especulava em Brasília sobre a ‘oportunidade’ de minha saída, o governo demonstrou claramente não estar aberto a esse tipo de pressão.
Do mesmo modo, devo responder à pergunta se ‘algum desentendimento interno na condução do trabalho no próprio Dejus’ poderia ter motivado minha saída. Depois de tudo o que vivemos – e estou me referindo especialmente aos momentos mais difíceis –, não poderia ser um ‘desentendimento interno’ a razão de minha saída. Muito pelo contrário, aí é que eu me sentiria obrigado a permanecer.
De qualquer forma, alguns setores da sociedade temem que a sua saída signifique um ‘afrouxamento’ no processo de classificação indicativa. O que o senhor tem a dizer sobre isso?
J.E.E.R. – É compreensível que setores da sociedade civil, sobretudo aqueles que participaram intensamente do processo de construção da nova classificação indicativa, vejam com algum receio meu desligamento do cargo e que o fato pareça indicar um retrocesso ou, como queira, um afrouxamento na classificação indicativa. Afinal de contas, muitos de nós se entregaram tão completamente à realização desse trabalho que acabamos, naturalmente, nos confundindo com ele e parecendo parte dele. Acho que senti algo semelhante, que é menos temor do ‘novo’ e mais receio de descontinuidade, quando a dra. Ela Wiecko deixou a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do MPF; e também quando o Zico Góes deixou a direção da MTV/Brasil. Mas creio que não sou parte da classificação. Talvez eu seja – tanto quanto o Guilherme Canela, o Gustavo Gindre, o Gabriel Priolli, o Fernando Martins e tantas outras pessoas que lutaram pela constituição dessa política – parte da história da classificação. O que é muito diferente.
Essa política pública que denominamos de ‘nova classificação indicativa’ é hoje uma instituição republicana, isto é, um sistema normativo capaz de promover democraticamente a realização dos direitos humanos de crianças e adolescentes sem depender deste ou daquele governo.
É verdade que um bom gestor sempre ajuda, mas o fundamental é dispor de normas e procedimentos fortemente instituídos. Tenho a impressão de que se essa política resistiu, sem qualquer alteração, à portaria 1.220/07, às fortes pressões para que fosse removida a obrigatoriedade da observância dos diferentes fusos horários na exibição dos programas de TV, não pode haver retrocessos. Contudo, isso não significa que podemos simplesmente virar a página e partir para outra batalha.
O desafio agora é o da ativa vigilância, o do controle social. É preciso continuar exigindo total transparência em cada ato praticado.
Então o senhor acredita na continuidade do processo de classificação indicativa tal como está instituído?
J.E.E.R. – Não só acredito na continuidade do trabalho, isto é, na busca incessante pela efetividade e pela legitimidade da política, como tenho certeza de que haverá aprimoramentos. E são dois os principais motivos que me fazem vislumbrar avanços. Primeiro, no Plano de Trabalho do Departamento para 2008 estão previstas ações estratégicas que vinculam a classificação às políticas educacionais e culturais do governo federal e ainda regularizam a participação da sociedade civil organizada no procedimento de análise; e o segundo motivo é que, muito embora eu reitere que a política não possa depender das pessoas que estão no MJ, atualmente há no Dejus uma equipe renovada e bastante qualificada para enfrentar quaisquer desafios. Pude trabalhar com o dr. Davi Pires, o atual diretor do Dejus, tempo suficiente para atestar suas qualidades como gestor e como mediador.
O senhor esteve à frente do Dejus por quanto tempo? O que ficou de aprendizado?
J.E.E.R. – Entrei em fevereiro de 2004 e saí em junho de 2008. E por incrível que pareça foi a mais longa gestão da história do Departamento. A rigor, da perspectiva da administração do Estado, não é lá tanto tempo assim. Mas a julgar pela intensidade, pela qualidade e pela quantidade das experiências que vivi nesse período, sinto-me uns quinze anos mais velho. Ainda bem que tenho cara de menino…
‘O que ficou do aprendizado?’ Nossa, é tanta coisa que só depois de uns meses pesquisando e refletindo teria condições de responder a essa pergunta. Agora, assim na lata, só me ocorre um verso do Drummond que diz: ‘Tarde a vida ensina uma lição discreta/ A ode cristalina é a que se faz sem poeta’. Quem sabe não seja isso, reforçando um pouco o que tentei dizer acima: a melhor política pública é aquela que se faz sem o burocrata, e com a população movimentando a burocracia.
Analisando sua gestão, qual foi o maior obstáculo superado, a grande vitória?
J.E.E.R. – Aqui é preciso esclarecer que o Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação, o Dejus, tem outras atribuições relevantes além da classificação indicativa. Por isso, pensando na gestão como um todo, creio que a grande vitória (de todas as pessoas que ao longo dos anos integraram a equipe) foi ter modificado tão radicalmente as estruturas do Dejus. Que aquilo que era considerado o ‘quartinho dos fundos do Ministério da Justiça’, onde se podia despejar até o entulho autoritário, se transformou num órgão-símbolo do moderno Estado Democrático de Direito. Transparência, participação, pluralidade, legitimidade e efetividade são mais do que princípios para nós: são hoje perspectivas institucionais alcançadas.
Mas, para não fugir ao tema da classificação, devo dizer que para mim o maior obstáculo superado não foi a refutação da acusação leviana da ‘volta da censura’. A maior vitória foi ter demonstrado que a classificação indicativa não podia ser um ‘servicinho’ gratuito do Estado prestado às emissoras de televisão.
A maior vitória foi ter, portanto, estabelecido claramente que a verdadeira ‘clientela’ da classificação indicativa são os pais, os educadores e os demais responsáveis pela proteção de crianças e adolescentes.
Sua gestão é prova de que os interesses da sociedade podem e devem se sobrepor aos interesses comerciais, principalmente dos meios de comunicação?
J.E.E.R. – Sinceramente, espero que sim. Não é por outra razão que tentarei sustentar no trabalho de tese que a classificação – não podendo ser contrária a interesses comerciais – pôde caracterizar uma espécie de controle ao que eu chamo de ‘totalitarismo de mercado’, que nada mais é do que a ação predatória e colonizadora do dinheiro. Nada contra o lucro, desde que a cidadania não tenha que arcar com os prejuízos.
O que o senhor gostaria de ter concretizado e que não foi possível?
J.E.E.R. – Como eu disse, tudo o que foi descrito como ação e previsto em orçamento, felizmente conseguimos realizar. Mas é claro que ficaram muitas idéias e propostas que recebemos de diferentes parceiros e que não consegui sequer organizar como projetos. Porém, várias delas ficaram como patrimônio do Dejus e já estão sendo trabalhadas pela nova direção.
Em especial, gostaria muito de ter podido discutir a formação de um Conselho ou Comitê para a Classificação Indicativa, com participação paritária da sociedade civil, tal como proposto pelo Conselho Federal da OAB.
Qual conselho o senhor daria para o novo diretor do Dejus e toda equipe que ficou?
J.E.E.R. – Sem falsa modéstia, não tenho ainda experiência suficiente para dar conselhos. Contudo, todas as sugestões, dicas e palpites que julgava relevantes pude oferecer ao dr. Davi Pires e a parte da equipe nos últimos meses. Muito embora, o essencial todos já soubessem: só há direito enquanto houver democracia e, portanto, só pode haver política pública de classificação enquanto houver ampla e irrestrita participação social.
No contexto da classificação indicativa, o Brasil de hoje é um país que protege e respeita os direitos das crianças e dos adolescentes?
J.E.E.R. – Mesmo considerando que a proteção e o respeito dependem tanto da atuação do Estado (Ministério da Justiça, Ministério das Comunicações, Ministério Público e Judiciário) quanto da atuação das emissoras, que são concessionárias de um serviço público, pode-se afirmar que sim. A classificação indicativa brasileira é um instrumento eficaz de garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Porém, é bom lembrar que a resposta é positiva apenas porque a sociedade assim o exigiu.
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Editor do Rio Mídia