Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O caso Snowden e a espionagem que chegou ao Brasil

O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (16/07) pela TV Brasil examinou a repercussão das revelações do consultor em sistemas de computação Edward Snowden. De acordo com o jornalista Glenn Greenwald, do jornal britânico Guardian, que publicou as informações em primeira mão, Snowden tem dados que poderiam causar sérios danos aos Estados Unidos. Um mês depois da revelação da rede de monitoramento de comunicações montada pelo governo dos Estados Unidos há dez anos, o escândalo chegou ao Brasil. Na semana passada, o jornal O Globo teve acesso a documentos que mostram que milhões de e-mails e ligações telefônicas de indivíduos e empresas sediadas no Brasil foram monitorados pela Agência de Segurança Nacional Americana (NSA, na sigla em inglês).

O Brasil fica atrás apenas dos Estados Unidos, onde 2,3 bilhões de telefonemas e mensagens foram rastreados pelo programa, batizado de Prism. E-mails, chats online e chamadas de voz dos serviços da Apple, Facebook, Google, Microsoft, YouTube, Skype, AOL, Yahoo e PalTalk estão na mira do monitoramento norte-americano. A Microfoft teria colaborado com a NSA e ajudado a burlar o próprio sistema de criptografia, segundo os dados apontados por Snowden.

Investigações preliminares do Ministério da Defesa e das Forças Armadas não encontraram indícios de invasão no sistema de criptografia de informações estratégicas do Brasil. As denúncias repercutiram no Congresso Nacional: uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi criada para investigar o monitoramento e a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado convocou o jornalista Glenn Greenwald para detalhar o processo de vigilância. O escândalo levou o governo a pedir que a Câmara dos Deputados aprecie com urgência o Marco Civil da Internet. O texto já teve a votação adiada diversas vezes por questões políticas e interesses empresariais.

Para discutir este tema, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o jornalista José Casado, que assina a cobertura do caso no jornal O Globo. Casado integra a editoria de Opinião e é colunista do vespertino eletrônico para tablets O Globo A Mais. Em São Paulo, o programa contou com a presença dos jornalistas Bob Fernandes e Caio Túlio Costa. Bob Fernandes é editor-chefe da Terra Magazine e comentarista da TV Gazeta, em SP, e Rádio Metropole, da Bahia. Foi redator-chefe da revista CartaCapital, repórter especial dos jornais Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil. Caio Túlio Costa é professor de Ética Jornalística e consultor de mídias digitais. Trabalhou na Folha de S.Paulo durante 21 anos, onde foi o primeiro ombudsman da imprensa brasileira. É um dos fundadores do UOL e foi presidente do iG.

Sem barreiras contra a lupa

Antes do debate ao vivo, em editorial, Dines sublinhou o despreparo do Brasil para enfrentar o monitoramento: “Nosso país é o mais informatizado do sub-continente. Isso explica muita coisa. Porém, é o mais desprotegido e, sobretudo, o mais desregulado. O ministro da Defesa, Celso Amorim, acrescentou uma forte dose de ceticismo no tocante à nossa vulnerabilidade digital quando declarou que há muito tempo não usa a internet para assuntos importantes. A mídia está agitada, mas apenas na direção da ‘espionagem’ e xeretagem internacional. Ainda não se deu conta de que, nesta história de violação de privacidades e de soberanias, quem está sob forte suspeita – e por muito tempo – é o próprio sistema w.w.w que a mídia contemporânea vem entronizando como a plataforma informativa do futuro”.

A reportagem exibida antes do debate ao vivo ouviu a opinião do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo. O ministro admite a possibilidade de vazamento e acredita que os Estados Unidos podem ter acessado o conteúdo de conversas. “O governo tem redes corporativas seguras, redes onde nós transitamos as nossas informações, documentos, atos que precisam ser tomados pelo governo e nós não temos problema. Agora, aquilo que nós colocamos na rede e a forma pela qual nós nos comunicamos, por exemplo, a presidenta Dilma me liga seguidamente e liga no meu celular. Ela, nesse momento, está se comunicando com a mesma condição de qualquer cidadão. Se todo esse rastreamento está acontecendo, então, é evidente que essa ligação também vai ser abrangida”, alertou o ministro.

Para Paulo Bernardo, o monitoramento não é uma surpresa: “Essas notícias de espionagem, bisbilhotagem e monitoramento em uma escala global, isso é muito recorrente de sair na mídia, seja na mídia alternativa ou grandes veículos de comunicação. Então, quem disser que não sabia nada é porque nunca se interessou pelo assunto. Agora, o governo nunca teve conhecimento de espionagem realizada em território brasileiro ou de cooperação de empresas brasileiras com isso”.

À luz da Lei

O especialista em Direito Digital Luiz Moncau ressaltou que as denúncias de Snowden evidenciam a urgência na tramitação dos diversos projetos ligados à internet que estão parados no Congresso Nacional, sobretudo o Marco Civil. “Ele tem uma série de princípios e diretrizes que tratam da proteção dos dados pessoais e da privacidade. Um outro Projeto de Lei que tem sido discutido ainda em nível governamental seria o de proteção dos dados pessoais. Vários países hoje em dia já possuem não só uma legislação específica para proteger os dados pessoais como órgãos legisladores, agências especializadas na proteção desses dados pra proteger principalmente o consumidor, o usuário, contra práticas abusivas de empresas ou de terceiros”, destacou Moncau.

A Constituição dos Estados Unidos exige ordem judicial para qualquer interferência do governo em canais de comunicação privada, mas há brechas na lei, como o Ato Patriota, criado após os atentados de 11 de setembro de 2001. “Existe a possibilidade de se investigar casos com acesso específico, em circunstâncias pontuais, a canais de telecomunicação quando existe a suspeita fundamentada de terror. Se não existe a suspeita fundamentada de terrorismo não é possível você realizar esse tipo de quebra de sigilo em canais de telecomunicação. É entendido como um abuso de Direito. O Prism, de certa forma, viola a 4ª emenda [da Constituição dos Estados Unidos], só que acaba se apoiando em outros princípios do governo americano para tentar sustentar a sua legalidade. Que é justamente a proteção à segurança nacional ou a própria segurança dos meios de telecomunicação do país”, explicou o especialista em Direito Digital Victor Auilo Haikal.

O jornalista Carlos Alberto Teixeira, colunista de Tecnologia do jornal O Globo, comentou que programas de criptografia permitem uma navegação mais segura, mas nem todos os usuários tem interesse em codificar os seus dados. “Como é que o cidadão pode se proteger, o cidadão, a empresa, a instituição? Encapsulando esse fluxo de informações como se fosse uma armadura digital. Criptografando, codificando isso de uma forma que quem interceptar a informação não consiga ler o que está ali, só o destinatário consegue ler. É o que eles chamam de criptografia por chave pública. Ou seja, o remetente e o destinatário têm uma chave para decodificar aquela informação. Mas quem estiver no meio não consegue. Não é nada complicado usar, não é nada muito complicado. É um pouquinho a mais do que um usuário comum consegue resolver em casa”, detalhou o jornalista.

“A maioria dos cidadãos não está muito interessada em esconder essas comunicações de e-mail, qual é a sua navegação na web. Você não tem interesse, eu não tenho. Agora, uma corporação, uma empresa, uma instituição ou algum terrorista, alguém que está fazendo mal, têm interesse em esconder isso”. Para Carlos Alberto Teixeira, as denúncias de Snowden só surpreendem os mais ingênuos. “A função dos departamentos de espionagem, as redes de inteligência, tanto a NSA, americana, como a Abin, como o Mossad, a função deles todos é pegar informação. O que a gente vê hoje é um desdobramento, uma atualização desse sistema que já existe há tanto tempo. As repercussões, isso aí a gente está vendo, um terremoto político no mundo inteiro. E estamos só começando”, alertou o jornalista.

A fragilidade da rede

No debate ao vivo, Dines ressaltou que o material coletado por Edward Snowden mostra que toda a web está sendo posta em questão e perguntou ao jornalista José Casado se a equipe que foi montada para esta cobertura – que inclui os repórteres Roberto Maltchik e Roberto Kaz – se surpreendeu com a magnitude dos dados revelados pelo consultor em sistemas de computação. Casado contou que, após avaliar parte das informações entregues por Glenn Greenwald, que vive no Brasil há oito anos, a equipe percebeu que tinha em mãos algo surpreendente.

“Por mais que você possa imaginar, você não tem ideia da dimensão que esse programa americano [de monitoramento] tomou”, disse o jornalista. Casado chamou a atenção para o fato de que o objetivo do governo dos Estados Unidos, em tese, era proteger a segurança nacional, mas o limite entre o dever e a invasão da privacidade de cidadãos ao redor do mundo é tênue. Este é um assunto para legisladores refletirem e a sociedade tem mecanismos, na opinião de Casado, para discutir a questão. Com base nos arquivos coletados por Snowden, a que O Globo teve acesso, Casado assegura que não há a menor possibilidade de um cidadão estar seguro a respeito da privacidade de seus dados pessoais.

Casado lamentou a situação em que Edward Snwden se encontra desde que decidiu levar a público os documentos coletados na NSA. Depois de um périplo internacional, o ex-consultor aguarda no aeroporto de Moscou que algum país conceda asilo político. No entanto, de acordo com o jornalista, a maioria dos governos rejeita o visitante incômodo por temer a reação dos Estados Unidos. “Você pode ter duas leituras dentro do bom e velho maniqueísmo: a do herói e a do traidor. O governo americano o vê como um traidor. Nas redes sociais ele se tornou um herói”, resume.

Exibir vs. esconder

Dines comentou que há entidades europeias contrárias ao Facebook por acreditar que o site de relacionamento não respeita as leis de privacidade. Casado sublinhou que os Estados Unidos são o centro produtor do sistema desvelado por Edward Snowden, mas outros governos também promovem espionagem em menor escala e há a colaboração de empresas privadas. Um exemplo é o Facebook, que tem contrato com a NSA. As empresas possibilitam o acesso do usuário à internet e depois entregam as informações para o monitoramento pela agência. “Isso é cobrado. E você, quando compra determinado produto ou passa a ser usuário, não sabia”, alerta Casado. O jornalista ressaltou que a legislação nos Estados Unidos proíbe a espionagem doméstica exceto em casos de terrorismo, ao mesmo tempo em que protege parcerias entre agências de espionagem americanas e empresas privadas instaladas no país. Este monitoramento teria como foco cidadãos, empresas e instituições estrangeiras e teria se tornado um negócio altamente lucrativo.

Caio Túlio Costa comentou que a história da espionagem no mundo é antiga, porém, a dimensão do programa revelado por Edward Snowden é preocupante e “demoníaca”. Para o jornalista, o assunto é explosivo e o destaque dado pela mídia tradicional não foi proporcional à capacidade de invasão que o governo norte-americano demonstrou ter ao montar o programa de monitoramento. “Quem se surpreende com isso não tinha atentado para essa vocação de polícia do mundo que os Estados Unidos têm e cultuam de forma obsessiva”, sublinhou.

O jornalista explicou que tanto o Facebook quanto o Google têm sistemas que permitem traçar um perfil de navegação do usuário através do seu histórico e montar um projeto de publicidade voltado para os interesses específicos dos internautas. Além de armazenar os dados dos usuários, as empresa os negocia: “Isto é uma invasão de privacidade, mas é consentida porque você, quando assina o Facebook, se compromete a concordar com os termos de uso onde ele diz que faz isso”, criticou Caio Túlio. Portanto, o ato não é ilegal, mas “acostuma” o usuário a ser monitorado. Assim, pode-se perceber que a espionagem não acontece apenas sob os auspícios do governo dos Estados Unidos. Também atinge empresas privadas que trabalham em larga escala e que estão repassando informações através de sites de busca ou de relacionamento.

História antiga

O jornalista Bob Fernandes disse ficar admirado com as declarações de surpresa em torno da espionagem dadas pelo atual governo, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo Congresso Nacional. Entre 1999 e 2004, a CartaCapital publicou oito reportagens de capa detalhando como agências do porte da CIA e do FBI operavam no Brasil. Os pormenores incluíam escutas nos palácios da Alvorada e do Itamaraty. Algumas das atividades de espionagem datavam nos anos 1960, como na área de biossegurança, e ainda estão em curso. Além da espionagem “por atacado” da NSA mostrada por Snowden, há também atividades de “varejo” promovidas pela CIA e pelo FBI, que a cada ano precisam disputar verbas orçamentárias no Congresso Nacional dos Estados Unidos.

“É o fim dos 500 anos da Era de Gutenberg e nós estamos iniciando e vivenciando uma outra Era que é essa, sem controle nenhum”, sentenciou o jornalista. Para ele, há uma grande incompreensão a respeito dos poderes e problemas da internet. Enquanto a rede mundial de computadores tem a capacidade de fazer a informação transitar em larga escala, ao mesmo tempo, a velocidade da informação leva a pouca compreensão dos temas mais importantes da sociedade.

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Lilia Diniz é jornalista