Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O Estado laico em xeque

Na semana em que o papa Francisco chegou ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o Observatório da Imprensa exibido pela TV Brasil na terça-feira (23/7) discutiu a postura da mídia brasileira diante do preceito do Estado laico, tema tratado no programa em diversas ocasiões. Assegurada pela Constituição Federal, a laicidade é posta em xeque diariamente: das cédulas de real, que ostentam a frase “Deus é fiel”, ao crucifixo pendurado no plenário do Supremo Tribunal Federal, passando pelos recentes projetos de “cura gay” e “bolsa estupro”. Outra barreira à laicidade são os variados feriados religiosos do calendário brasileiro. No Rio de Janeiro, sede da JMJ, a prefeitura decretou dois dias de feriado integral e mais dois períodos parciais. Realizado desde 1986, o encontro de jovens católicos espera reunir, de acordo com estimativas dos organizadores, mais de 2 milhões de peregrinos de todo o mundo.

Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o historiador Daniel Aarão Reis. Professor titular de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Aarão pesquisa a História das Esquerdas no Brasil. Em São Paulo participaram Jean Wyllys, deputado federal (PSOL-RJ), e o filósofo Roberto Romano. Autor de três livros, colunista da Carta Capital e do portal iGay, Jean Wyllys participa de movimentos que combatem a homofobia, a intolerância e o fundamentalismo religioso, entre outros temas. Roberto Romano é graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e tem doutorado na Escola de Altos Estudos de Paris. É professor titular da Unicamp na área de Ética e Filosofia Política. Escreveu vários livros e artigos sobre ética e teoria do Estado.

No editorial que abre o programa (ver íntegra abaixo), Dines comentou que o Estado laico é “continuamente atravessado pela transformação da nossa mídia eletrônica em púlpito religioso”. Dines ressaltou que esse tema já foi tratado no programa por várias vezes: “Nossa insistência justifica-se duplamente: se o Estado democrático de direito é por obrigação isonômico, as concessões e a programação das emissoras de rádio e televisão devem obedecer aos mesmos critérios igualitários em matéria religiosa. Não é o que acontece”.

A reportagem exibida antes do debate no estúdio entrevistou Leonardo Maciel, presidente da RioEventos, órgão da prefeitura carioca encarregado dos preparativos da JMJ. Maciel explicou que o volume de fiéis confirmados para o encontro justifica o feriado: “É o maior evento que o país já recebeu. Não há na história do país um evento dessa magnitude, com essa quantidade de turistas que vem ao Rio de Janeiro. É impossível que um evento dessa magnitude, tal qual uma Olimpíada, chegar a uma cidade sem que essa cidade se adapte a isso, então você tem que tomar medidas para que [tudo] ocorra sem transtornos”. Maciel garantiu que a prefeitura apoia grandes iniciativas, independentemente do caráter religioso.

Romper a tradição

Para a professora de Filosofia da USP Roseli Fischmann, historicamente a laicidade do Estado brasileiro nunca chegou a se concretizar. “No Império era natural essa ligação íntima, uma ligação plena do Império e da igreja católica. Dentro dos governos que são aristocráticos, então isso se aplica. E, logicamente, quando se implanta a República, a primeira coisa a ser negada é essa, porque a República traz essa certeza de que todos somos livres e iguais. Esse é um ponto crucial. Se somos iguais, não há espaço para essa diferenciação da aristocracia desde o nascimento”, lembrou a professora. Para ela, a igreja católica continua solicitando não direitos, mas privilégios ao Estado.

Roseli Fischmann destacou que o Estado é “de todos e de todas”, por isso a laicidade é importante: “Aquilo que é colocado, não quer dizer que se deva seguir. Nós vemos [isso], por exemplo, na discussão relativa à homossexualidade, só para pegar um exemplo recente que causou muito debate. [Aceitar] que exista esse reconhecimento da plena igualdade [não significa estar] de acordo ou querendo para si. É importante entender que a lei, por existir para todos e para todas, não se coloca como uma coisa impositiva, ao contrário: ela continua mantendo a possibilidade de escolha”.

O programa também entrevistou a professora Maria Clara Bingemer, do departamento de Teologia da PUC-Rio. A estudiosa explicou que os ocidentais, de maneira geral, estão marcados pelo cristianismo histórico porque esta corrente configurou, não só a fé e a religião, como também a cultura. “O comportamento dos cristãos sempre foi contra corrente. Acho que, por isso também, os órgãos públicos e a mídia ficam muito em cima da igreja, para ressaltar quando ela tropeça. E ela tropeça porque é humana”, disse a professora.

Laicismo e democracia

No debate no estúdio, o professor Roberto Romano explicou que o termo “laico” tem origem na palavra latina laos, que significa o povo, potência maior na democracia ateniense. Na Idade Média, implantou-se a doutrina de que quanto mais perto de Deus, mais alta a posição hierárquica na sociedade. “Embaixo de tudo estava o leigo, o laos, que não tinha direito nenhum e não tinha condição de ser autônomo. Essa doutrina que foi gerada no helenismo e na Idade Média veio até hoje. Em muitos Estados você tem essa visão bastante deturpada do povo como aquele que deve receber ordens e não tem dignidade. Isso quer dizer o seguinte: laicismo significa exatamente o sinônimo de democracia”, sintetizou Romano. Na ausência da laicidade, poderes “extra povo” dominam a cena política.

Para o professor, existem formas avançadas de laicismo, como nos Estados Unidos. Lá, igreja e Estado estão explicitamente separados, embora tenham ocorrido tentativas, sobretudo nos governos Bush, de “misturar as águas”. Roberto Romano ressaltou que um Estado laico absoluto será sempre difícil porque há uma permeabilidade das religiões na vida social e, por consequência, na estrutura do Estado. “Os religiosos elegem seus representantes no Executivo e no Legislativo e, portanto, procuram influenciar a vida política e estatal para as suas visões”, disse o filósofo. Roberto Romano ressaltou que a igreja católica, desde o século 19, se apresenta como uma conquistadora das massas:

“Esse evento do Rio de Janeiro não é diferente: é colocar a massa na rua para mostrar que a superioridade da igreja é inconteste em relação do Estado. É bom lembrar que no século 19 a igreja tomou o costume de dedicar países inteiros ao Sagrado Coração de Jesus, em expiação e reconhecimento da sua soberania eclesiástica. O Sacre Coeur de Paris é uma consagração da França pelos pecados da Comuna de Paris e da Revolução Francesa. O Equador foi consagrado ao Sagrado Coração de Jesus e o Cristo Redentor nada mais é do que isso. Se você olhar lá tem o Sagrado Coração de Jesus”, citou Romano.

As massas tomam a rua

Na avaliação de Dines, os feriados determinados pela prefeitura do Rio de Janeiro em razão da Jornada Mundial da Juventude acabam sendo um privilégio para a igreja católica. Daniel Aarão ressaltou que durante a instalação da República algumas lideranças, animadas pelos propósitos positivistas, idealizaram uma República laica, mas as tradições se mostraram mais fortes e acabaram predominando. A igreja católica continuou influindo através de canais e ramificações e condicionando o Estado na sua atuação. “Nesse megaevento do Rio de Janeiro eu acredito que seja prudente decretar o feriado porque os transportes da cidade não têm condições de [operar] em situação normal”, avaliou Aarão. O historiador ressaltou que em outros feriados católicos, como o de Nossa Senhora Aparecida, os não crentes e os ateus são obrigados a respeitar a data.

Daniel Aarão vê com naturalidade os movimentos de massa das igrejas, mas observou que as confissões não podem transformar os eventos um fator para colonizar o Estado: “O princípio da laicidade do Estado, ao contrário do que muitos religiosos entendem, não é um princípio antirreligioso. É um princípio a-religioso. Ele quer fazer da religião um assunto da esfera privada de cada um. Cada um pode ter a sua crença, pode sse manifestar na rua, em casa, onde quiser. O problema é manter o Estado neutro em relação às diversas confissões religiosas e também em relação àqueles que não têm religião nenhuma”. 

O deputado Jean Wyllys destacou que, em todo o mundo, Estados colocaram o preceito da laicidade nas suas Constituições para poder impedir as guerras religiosas e dar alguma neutralidade ao Estado frente às diferentes crenças. De fato, a única Constituição radicalmente laica do Brasil foi a de 1891, após a proclamação da República. “É a única que não faz qualquer referência a Deus. De lá para cá a igreja católica renovou seus signos de influenciar o Estado e a palavra Deus voltou ao preâmbulo e a outras partes da Constituição. No Brasil, não só a igreja católica tenta solapar essa laicidade que implicaria uma neutralidade do Estado frente às crenças mas, recentemente, dos anos 1980 para cá, as igrejas neopentecostais vem renovando os seus meios de influenciar o Estado e de orientar as políticas públicas”, criticou o deputado.

Um Estado, muitas religiões

Na opinião de Wyllys, em um país com uma formação multicultural e plurirreligiosa como o Brasil, é inconcebível deixar que correntes religiosas majoritárias influenciem o Estado e suas políticas. Por outro lado, não se pode negar a tradição dos santos católicos no cotidiano: “Não quer dizer que no feriado de Nossa Senhora Aparecida todas as pessoas se dirijam à basílica. Muito pelo contrário, elas vão para o futebol, para a praia, elas aproveitam o feriado”. Para o deputado, não é possível separar toda a identidade e a cultura brasileira da influência das religiões, mas é preciso perseguir a laicidade em nome do Direito de crer e de não crer dos indivíduos. Formado dentro dos preceitos do catolicismo e admirador da arte sacra, o deputado diz que muito dos seus valores vêm do cristianismo.

Dines ponderou que existe uma inegável herança da religião na cultura brasileira, mas que as confissões devem se afastar do Estado. Um dos exemplos desta proximidade é a presença do deputado Marcos Feliciano à frente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Impregnado de doutrinas religiosas radicais, o pastor enfrentou forte oposição e, no entanto, permanece no cargo. Para o deputado Jean Wyllys, o fato é inaceitável: “Eu acho inadmissível tanto que a igreja católica tente influenciar as políticas de Estado quanto os neopentecostais, sobretudo os fundamentalistas religiosos como o deputado-pastor Marcos Feliciano, [queiram fazê-lo] sem considerar, por exemplo, o conhecimento, os saberes dos povos, a própria ciência moderna. Ele desconsidera tudo isso para fazer uma interpretação literal da Bíblia e tentar, a partir dela, legislar para um povo que é plurirreligioso”, sublinhou o deputado.

Jean Wyllys lembrou que, interessados na capacidade de transformar fiéis em eleitores, diversos partidos convidaram pastores carismáticos para fazer parte de seus quadros e ressaltou que a consequência disso para a laicidade do Estado é grave. “Esses pastores tomaram gosto pela política e começaram a desenvolver uma fantasia totalitarista de que vão transformar o Brasil em uma teocracia cristã. Isso é apavorante. Não é uma teoria da conspiração minha. Eu tenho visto isso todos os dias nos discursos feitos aqui”, disse o deputado. Para ele, a bancada neopentecostal fere os princípios da Constituição ao trabalhar contra a promoção do bem de todos, sem discriminação.

“Há deputados que subiram na tribuna da Câmara para dedicar o mandato a Jesus, por incrível que pareça, e para dizer que ele vai conduzir o mandato de acordo com o que está na Bíblia. Eu não tenho nada contra a Bíblia, pelo contrário, é um livro maravilhoso do ponto de vista literário e histórico, mas ele fundamenta a crença de um grupo de pessoas. Pode ser o grupo majoritário, mas ainda é de um grupo de pessoas”, afirmou o deputado. Para ele, é preciso defender as minorias das paixões das maiorias.

 

 

Os púlpitos eletrônicos

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 694, exibido em 23/7/2013

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.

Esta edição foi gravada para ser exibida num dos feriados decretados pela prefeitura do Rio de Janeiro, para facilitar a mobilidade das legiões de jovens peregrinos de todas as partes do mundo que se reúnem no Rio na 28º Jornada Mundial da Juventude que, como sempre, será assistida pelo sumo pontífice.

É a primeira viagem ao exterior do primeiro papa nascido nas Américas, o jesuíta argentino Francisco, eleito em março deste ano. As emocionadas homenagens e as devoções produzidas por um evento religioso dessa dimensão constituem uma oportunidade para mostrar ao mundo um Rio de Janeiro diferente daquele que aparece durante o carnaval.

É também uma oportunidade para voltarmos a examinar, com a merecida seriedade, a questão do Estado secular e laico, previsto em nossa Constituição, e continuamente atravessado pela transformação da nossa mídia eletrônica em púlpito religioso pelas confissões majoritárias: católicos e evangélicos.

A nossa insistência justifica-se duplamente: se o Estado democrático de direito é por obrigação isonômico, as concessões e a programação das emissoras de rádio e televisão devem obedecer aos mesmos critérios igualitários em matéria religiosa.

Não é o que acontece. Além disso, qualquer fissura no edifício republicano – por mais insignificante que seja – tenderá a ser continuamente ampliada.

É um risco que não vale a pena correr, sobretudo em momentos tão tensos como os que estamos vivendo.

Para avaliar e refletir sobre uma questão tão delicada e transcendental, contamos com a colaboração do deputado federal Jean Wyllys, do filósofo Roberto Romano e, aqui ao meu lado, do historiador Daniel Aarão Reis.

 

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