Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O fiasco do jornalismo investigativo

O primeiro teste que definiria o nível profissional do jornalismo investigativo da mídia tradicional brasileira foi um fiasco total: na madrugada de terça (6/8) para quarta-feira, TVs e rádios consumiram o dia todo veiculando a versão da PM de São Paulo, segundo a qual um menino de 13 anos, Marcelo, havia cometido a chacina do século: de uma só vez, matou pai, mãe, avó e tia-avó e se suicidou. O jornalismo da mídia tradicional engoliu tudo sem questionar nada e, em alguns casos, chegou a chamar o menino de serial killer (assassino em série).

Mas 24 horas depois, com a reação da população, os mesmos veículos reagiram, inclusive a TV Globo: começaram a veicular as mesmas suspeitas da população, segundo as quais um menino como Marcelo não possuía as características para cometer crime tão hediondo.

O questionamento é, ou deveria ser, a regra número um do jornalismo, especialmente o investigativo. A primeira suspeita sobre a existência de algo duvidoso, nesse caso, adviria do fato de a PM ter concluído sua investigação e perícia em menos de 24 horas. Quando os veículos de grande audiência, como o jornalismo da TV Globo, divulgaram a primeira versão da PM paulista sobre o crime, o espanto da população foi tão grande, com um crescente número de telefonemas de cobrança, a ponto que a emissora caiu na real: voltou atrás e na quinta-feira (8/8) partiu para o ponto de onde deveria ter começado: questionar o veredicto da PM.

A que público se destinava essa versão?

A chacina está coberta de mistérios, mas há uma suspeita consensual na inteligência da PM paulistana: os crimes foram cometidos por uma só pessoa que conhecia os hábitos da família: uma bala na cabeça de cada, o chefe da família estava dormindo; a mulher dele, cabo da PM, foi subjugada; após o que, numa casa vizinha também uma avó e uma tia foram assassinadas e, como num filme de horror, o próprio matador, o menino Marcelo, de 13 anos, filho do casal de policiais, depois de ir para a escola tranquilamente, suicidou-se. A PM de São Paulo atribui aos crimes ao menino Marcelo, que não deu sinal de nervosismo na escola depois da chacina.

Essa chacina ocorre menos de 15 dias depois do desbaratamento da primeira quadrilha formada por 11 PMs e dois delegados da polícia civil, acusados de cometer pelo menos 100 crimes nos últimos dois anos em SP, e a menos de 10 dias da constatação de que o comando da maior parte dos crimes no estado é dirigido de dentro das penitenciárias de segurança máxima, como Tremembé, através dos mais sofisticados equipamentos eletrônicos, como o relógio usado nos últimos filmes por James Bond.

Ao se apressar em difundir essa versão, confirmada pelos seus peritos, a PM de SP deveria ter refletido duas vezes. E nessa reflexão deveria incluir duas assertivas: o público a quem essa versão se destinava seria constituído de gente burra, incapaz de questionar sua versão ou poderia correr o risco de ser desmentida pela própria família das vítimas – que não acredita até agora nessa estória? Até onde a sociedade brasileira poderá reagir à montagem de uma versão para uma chacina tão agressiva?

Sensação de insegurança

Não é preciso recorrer a Sherlock Holmes, personagem criado pelo médico e escritor britânico Arthur Conan Doyle para desvendar os crimes misteriosos do começo do século 17 para o início do século 18 na Inglaterra, para se perceber que a versão da PM de SP é, no mínimo, escabrosa e recheada de contradições, já identificadas por familiares das vítimas, que não acreditam na versão do comando da corporação: se Marcelo era destro, por que atirou com a mão esquerda? Por que nas mãos dele não foram encontrados vestígios de pólvora se os crimes foram à queima-roupa? Por que a PM não incluiu perícia independente no exame dos crimes ao identificar essas contradições?

Com um contingente de 420 mil policiais, as PMs (dados de 2008) são uma força fundamental no controle social brasileiro. Maior corporação do país, a PM-SP tem 110 mil policiais e, para o bem ou para o mal, é onde são gerados os principais programas de treinamento de tropas em tempos de paz. Estarrecida com a chacina e, na mesma proporção, com a versão da PM, a sociedade paulista – hoje mais do que nunca, e qualquer pesquisa pode indicar isso – confia cada vez menos na sua polícia. Não é exagero supor que o verdadeiro matador da família tenha assistido de camarote, sem temor algum, à difusão da versão da PM.

Nos últimos dois anos, a criminalidade cresceu tanto no Brasil, a partir de São Paulo, que já caberia ao governo federal promover uma revisão geral na atuação das PMs, uma espécie de auditoria correcional destinada a descontaminar a corporação como um todo para: a) tornar obrigatória a presença de perícia independente em casos como esse de São Paulo; b) corrigir falhas administrativas como a que permitiu a formação de um depósito de explosivo dentro de uma cidade, como ocorreu em Maceió ano passado; e c) maior funcionalidade ao trabalho interno das corregedorias nas PMs, que vivem abarrotadas de sindicâncias inconclusas.

Por essa e por outras, é impossível encontrar quem não esteja convencido de que a impunidade vem aumentando a sensação de insegurança no país.

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Reinaldo Cabral é jornalista e escritor