Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Globo

MERCADO EDITORIAL
Rachel Bertol

Mutações no país dos livros

‘Quem busca profusão de polêmicas e profundas reflexões literárias, tal como existia mais freqüentemente no passado, quando o tempo parecia existir em sobra, talvez até as encontre na França. Afinal, é o país dos sonhos literários, com suas flores maléficas e seus miseráveis. Mas não será óbvio, algo de se deparar ali na banca da estação do metrô.

A revista literária mais vendida no país, a ‘Lire’, cem mil exemplares por mês, foge de certo padrão conhecido de intelectual francês. O objetivo, conta o editor adjunto Philippe Delaroche, é abordar todos os assuntos relativos aos livros, do best-seller ao mais sisudo dos escritores. E com o enfoque na reportagem. É um contraponto à tradicional ‘Magazine littéraire’, que mantém o padrão de publicar dossiês sobre um autor ou tema (como a melancolia, recentemente), mas não deixa de oferecer notícias e entrevistas.

Os nostálgicos, portanto, talvez não possam olhar para a França como o modelo de algo tal como deveria ser. Suplementos como o ‘Monde des Livres’, do jornal ‘Le Monde’, que há pouco passou por uma reforma gráfica para dar mais leveza às suas páginas, publicam resenhas, mas dão também bastante espaço a notícias.

Há ainda outros fatores que indicam mudanças na realidade dos livros na França. A própria atividade da edição se transformou. Muitas editoras nasceram ligadas às suas ‘revues’, como a ‘Nouvelle Revue de France’ (que ainda existe), da Gallimard, e eram em geral mais ideológicas e menos mercadológicas. Extremamente competitivo, o mercado editorial se concentra na mão de poucos a partir de uma série de fusões e aquisições. Mesmo processo que ocorre no mundo todo.

Enquanto a globalização muda rapidamente os mercados, as novas mentalidades se configuram lentamente. No Brasil ou na França, e talvez até nos EUA, sonhos de países desfazem-se – o que há 50 anos sonhava-se para a França do futuro choca-se com o presente, avisam os imigrantes incendiários nos subúrbios. Depois dos mercados, a própria literatura sofre mutações.

– A literatura se internacionaliza – afirma o diretor da editora Le Seuil, Pascal Flamand.

Obras abordam a delícia dos pequenos prazeres

Mais do que uma tradicional ‘literatura francesa’, hoje esta idéia parece às vezes em xeque: a globalização leva mais facilmente o centro à periferia e esta ao centro. Sobretudo quando a própria França se pergunta quem são os franceses, vide as polêmicas provocadas pelos jovens imigrantes (‘eles são franceses’, reafirmavam os políticos na TV, revelando as dúvidas que existem a respeito).

Que escritores se destacam nesse contexto? Michel Houellebecq? Certamente. Politicamente incorreto, em seu mais recente livro, ‘A possibilidade de uma ilha’, criou um protagonista mergulhado em preconceitos direitistas, desesperançado e desesperado. Trata-se de uma crítica ao estado geral de superficialidades e cinismos – embora nada apreciado por muitos intelectuais. Uma literatura que se enquadra também numa certa tradição ‘libertina’ francesa.

No ângulo oposto, lembra Isabelle Gallimard na entrevista abaixo, estão autores quase auto-ajuda, cujo perfil lembra Lya Luft, com uma narrativa poética a exaltar a delícia dos pequenos prazeres e das possibilidades da vida. Algo direto e prático, diferente das voltas intelectuais das tradicionais obras de ciências humanas, que tanto sucesso já fizeram no país. Há ainda o enorme sucesso dos quadrinhos e dos livros para jovens.

Tudo isso, porém, não é absoluto: o passado convive com o presente em muitos aspectos. E o mercado editorial francês é rico e diverso. Mas são os novos caminhos, novas realidades que se distanciam de antigos ideais.

RACHEL BERTOL participou em novembro de programa do Ministério da Cultura da França de visita a agentes do meio editorial francês’

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‘Temos uma vida bastante doce na França’

‘Isabelle Gallimard é editora da Mercure de France, subsidiária da mítica Gallimard, fundada por seu avô Gaston Gallimard no início do século XX e hoje sob o comando de seu irmão Antoine. Localizada no sexto ‘arrondissement’ de Paris, um dos mais abastados bairros da capital, a Mercure de France é uma pequena casa editorial, repleta de charme, com muitos autores contemporâneos e destaque para as mulheres. Há ainda uma coleção de retratos autobiográficos de personalidades e outra com títulos de História, que resgata correspondências dos séculos XVI, XVII etc. Alguns dos principais autores franceses que já passaram e passam pela Gallimard não raro transitam pela Mercure, sempre em família.

Entre as grandes editoras francesas, a Gallimard é uma das poucas indepententes.

ISABELLE GALLIMARD:A única com a Albin Michel. A Gallimard, além da Mercure France, tem a Table Ronde, a Denoël, entre outras empresas. Acredito que seja a quarta maior editora, depois de Hachette, Editis e Seuil-La Martinière. Gallimard e Flammarion estão no mesmo patamar. Entre as maiores, é a única independente com administração familiar.

Qual o perfil da Mercure de France?

ISABELLE: Publicamos cerca de 60 títulos por ano, sobretudo a literatura contemporânea. Recentemente, lancei o livro de uma libanesa-brasileira que escreve em francês: ‘Les enfants de la place’, de Yasmina Traboulsi, se passa no Brasil, onde infelizmente não consegui que fosse publicada. Talvez tenham achado suas histórias banais. Nossa coleção mais geral é a Azul, de literatura francesa.

Fala-se muito que na França não haveria muitas novidades literárias. Concorda?

ISABELLE:De jeito algum. Chegamos a ter dificuldade de escolha: há uma pletora de títulos, gêneros, histórias. É verdade que acusaram, em determinado momento, a literatura francesa de ser muito voltada sobre o próprio umbigo, em parte devido ao Novo Romance. Mas agora passamos para outra coisa. Há mesmo uma veia fantástica na França, por exemplo com uma autora como Marie Ndiaye, de 35 anos, mestiça, metade senegalesa. Talvez não venda centenas de milhares de exemplares, mas é incensada pela critica. Acabamos de lançar dela ‘Auto-retrato em verde’ e há quatro anos ela ganhou o Prêmio Femina por ‘Rosie Carpe’. Há um autor interessante na Gallimard, Régis Jauffret, que acabou de receber o Femina com um romance completamente não-realista, ‘Asilo de loucos’, ao mesmo tempo dramático e repleto de humor negro.

Quais são os autores de mais gosta?

ISABELLE: Le Clézio, na minha opinião, é um dos grandes autores franceses contemporâneos. Já escreveu cerca de 40 livros e mora entre a França e o Novo México, é um viajante. E também Patrick Modiano, com seu universo próprio, inclassificável. Um grande talento.

Acredita numa renovação literária que vem dos países francófonos, como os da África?

ISABELLE: Sim. Há uma emergência da literatura francófona importante. Na Mercure de France eu publico muitos antilhanos, martinicanos ou guadalupenses, com uma língua muito rica e, às vezes, com palavras do francês antigo. Sinto prazer ao lê-los, para mim tem um lado muito poético. Há uma redescoberta, ainda mais este ano, que será dedicado aos países francófonos. O Salão do Livro (em março) vai girar em torno da francofonia. Há ainda todos os africanos: é algo novo. Faz uns dez anos que começaram a chegar na literatura. Minhas lembranças de ler um autor africano antes são mínimas.

Há os autores franceses de origem estrangeira. Seriam francófonos também?

ISABELLE:Em princípio não. Os francófonos são os não-franceses. Mas autores da Martinica e do Guadalupe são franceses, franceses de além-mar e mesmo assim entram na categoria de francófonos. Há uma diferença entre um antilhano e um francês do continente. Não é a mesma cultura, nem a mesma literatura. Eles têm uma cultura mestiça, creole, muito bela, mas muito diferente da nossa. Não podemos dizer quando se é um francófono puro e duro. Os limites não são estritos.

No seu catálogo há muitos?

ISABELLE: Nem sei quantos, mas é recente. Este ano, publiquei uns três. Entre os cerca de 15 franceses contemporâneos que lanço, não é ruim. E talvez este ano publique mais. Lançarei um livro de Mehdi Charef, francês de origem argelina e, neste caso, pode-se levantar a questão se ele é francófono ou não. Charef já recebeu a Legião de Honra do governo francês pelos seus méritos artísticos. É cineasta com uma infância completamente analfabeta. É francês, produto da integração. Em seu romance, conta como foram seus primeiros anos na França, por volta dos 10 anos. É exemplar, porque é alguém que realmente saiu do seu buraco.

A literatura permite um olhar mais amplo sobre a situação dos imigrantes?

ISABELLE: Há vozes que falam disso, como Mehdi Charef e outros. Existem também muitos livros sobre as mulheres islâmicas, mas em geral são obras documentais. Na literatura, demora mais a chegar. É preciso que os fatos amadureçam no espírito de uma fatia da população. Mas vai chegar, como chega hoje uma literatura muito violenta na obra de autores africanos, com a qual não estamos acostumados. O que temos ou são livros libertinos, quase pornográficos, ou, na escala oposta, livros muito poéticos, puros, quase místicos.

As literaturas mais violentas dos africanos são sobre a França ou seus países?

ISABELLE: São países imaginários. O autor pode usar nomes que se refiram às periferias da América Latina, mas estar falando da África. Não fui, mas imagino que seja a mesma coisa: a mesma miséria, as crianças na rua, o poder do narcotráfico.

Na França não se fala muito do poder da droga.

ISABELLE:Entre nós, falamos muito. Talvez não queiram falar na TV. Mas há até uma hipótese, de que a violência nos subúrbios explodiu por causa da vontade do governo de erradicar o tráfico de drogas. A polícia andou fazendo buscas.

Os franceses não estão acostumados com a violência…

ISABELLE: Em geral, temos uma vida bastante doce na França. Às vezes os franceses não param de reclamar, mas as pessoas têm muita sorte de viver aqui. É um país próspero e temos a segurança social. Vive-se muito melhor aqui que nos EUA. É uma tranqüilidade de espírito, há uma doçura de viver, que existe certamente em outros países da Europa. Mas mesmo na Inglaterra a vida é mais dura que aqui.

Os leitores franceses têm mudado muito?

ISABELLE: Percebemos que há desinteresse pelas ciências humanas, que, em outras épocas, estiveram muito em moda, com Barthes etc. Havia realmente um gosto. Hoje é um dos setores menos bem-sucedidos. O que funciona muito bem são os livros para jovens e os de auto-ajuda, que ensinam a como se sentir melhor na própria pele, como criar seus filhos etc. Refletem a ansiedade das pessoas. Há o dever de ser feliz e se não somos felizes, é um problema.

E quais são os seus autores de maior sucesso?

ISABELLE:Entre os recentes, Christian Bobin, muito apreciado, poético, quase místico. Ele escreve sobre pequenas coisas do cotidiano: como ser feliz ao apreciar uma bebida, ao escutar o canto do pássaro. Tivemos um outro autor assim, de sucesso fenomenal, que é Philippe Delerm, cujo best-seller, ‘O primeiro gole de cerveja’, lançado há quatro anos, ainda vende bem. Delerm escreve sobre pequenos prazeres em minúsculo: o prazer de beber uma boa cerveja depois de uma caminhada; de preparar uma boa refeição. Não chega a ser ficção, mas há muita poesia, por isso é publicado como se fosse ficção. É uma espécie de narrativa poética.’

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