Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O horror e o limite da linguagem

Este é um daqueles momentos em que o jornalismo se defronta com os limites da linguagem: não há como descrever, ainda que de forma aproximada, o que aconteceu no casa de shows Kiss, da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, na madrugada de domingo (27/1).

Os números dão uma dimensão da tragédia, os elementos que se juntaram para agravar as consequências do incidente conduzem os sentimentos na direção da indignação, mas mesmo assim estaremos muito distantes do significado do acontecimento em sua plena extensão. E mesmo que as imagens técnicas, demonstrando mais uma vez seu predomínio nos tempos atuais, avancem na explicitação do fato em si, ainda resta a dor para ser descrita.

Os jornais de segunda-feira (28/1) tentam superar a perplexidade, mas essa é a expressão que define exatamente até onde pode chegar a narrativa especializada: quanto mais as palavras e as imagens nos aproximam da verdade, menos aceitável ela se torna.

Nas primeiras páginas dos diários, os próprios números se desencontram: a Folha de S.Paulo e o Globo falam em 231 mortos; o Estado de S. Paulo diz que foram 233. O esforço de reportagem produz listas de vítimas, mas quanto maior o número delas, mais distante fica o leitor do drama de cada uma daquelas famílias.

O inaceitável é produto da “imprudência, das falhas na fiscalização, da ganância. A revolta pede providências para que tragédias assim não se repitam”, diz o cronista Luis Fernando Verissimo no Estadão.

As redações se dedicam a pesquisas e vão buscar outros fatos correlatos em outros tempos, em outros lugares, mas cada tragédia tem sua dor muito específica e as comparações apenas realimentam a perplexidade: o que poderia ter sido feito para evitar tantas mortes?

Como pode uma casa noturna aceitar a presença de uma multidão muito acima de sua capacidade? Como podem as autoridades permitir o funcionamento de um estabelecimento sem alvará, sem saídas de emergência, sem luzes de sinalização, forrado de material altamente inflamável, sem brigada de combate a incêndio, com extintores vazios ou quebrados?

Quanto mais informações oferecem os jornais, mais perguntas se acumulam e nenhuma delas conduz a uma resposta aceitável.

Morrer em Santa Maria

O Estadão fala em “série de erros”, o Globo se refere a “descaso”, todos os jornais destacam o fato de que algumas mortes podem ter sido provocadas porque os seguranças tentaram impedir os jovens em desespero de escapar da boate, porque julgavam que pretendiam sair sem pagar a conta.

Mas nenhum dos grandes diários de circulação nacional foi capaz de produzir um perfil dos donos da casa noturna, apontar antecedentes, explorar indícios de relações viciadas entre eles e as autoridades encarregadas de fiscalizar o funcionamento de estabelecimentos desse tipo.

O Diário de Santa Maria informa em sua edição online que a casa noturna pertence a Mauro Londero Hoffmann e Elissandro Callegaro Spohr. Segundo o site do jornal carioca O Dia, Spohr é réu em processo criminal por lesão corporal grave. Jornais gaúchos dizem que eles podem ter a prisão preventiva decretada.

Nos próximos dias, a imprensa vai seguir buscando responsáveis, vai acabar descobrindo que há muitas outras ratoeiras armadas por aí, à espera de jovens ansiosos por diversão. Os jornalistas vão constatar que essas armadilhas estão espalhadas pelas cidades do litoral, onde milhões de pessoas passam o verão. Haverá muita cobrança, algumas dessas casas serão vistoriadas, mas antes do carnaval chegar tudo terá voltado ao que era na véspera, porque não faltam regras para serem quebradas.

Quando ultrapassa certos limites, a tragédia paralisa e embota o instinto investigativo e nem mesmo a disponibilidade de muita tecnologia é capaz de expandir a capacidade de significar a realidade.

É preciso admitir que há acontecimentos que simplesmente não podem ser descritos e que a mediação é apenas um recorte numa fração da realidade. Talvez por isso, dois dos grandes jornais nacionais, o Globo e o Estado de S.Paulo, aceitaram a oferta do midiático poeta gaúcho Fabrício Carpinejar, que publicou em seu blog e enviou às redações o poema intitulado “Tragédia em Santa Maria”.

Diz o poeta: “Morri em Santa Maria hoje/ Quem não morreu?/ Morri na Rua dos Andradas, 1925./ Numa ladeira encrespada de fumaça”.