O Globo cria um cenário de contradições na imprensa brasileira desde que publicou, no domingo (7/7), reportagem denunciando que o Brasil foi um dos alvos preferenciais da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, segundo documentos revelados pelo ex-técnico da instituição Edward Snowden. O mapa publicado pelo jornal carioca mostra que o Brasil esteve entre os países mais visados pela espionagem americana, na companhia de China, Rússia, Irã e Paquistão.
Embora não tenha acessado o conteúdo das comunicações, o volume do monitoramento denuncia o gigantesco sistema mantido pelo governo americano durante toda uma década. O interesse dos jornais se concentrou principalmente na questão geral da quebra de privacidade nas comunicações, evoluindo rapidamente para o problema do ataque à soberania do país e das demais nações espionadas.
Mas a quebra sistemática do sigilo das trocas de informação entre particulares ou envolvendo autoridades tem um risco ainda mais controverso, que é a possibilidade de o governo dos Estados Unidos ter monitorado comunicações de negócios de empresas brasileiras com fornecedores ou clientes internacionais. Esse tipo de informação privilegiada coloca em xeque o mito da liberdade comercial e, teoricamente, quebra o princípio da igualdade de condições que supostamente governa o capitalismo globalizado.
Uma empresa americana de petróleo pode mapear a estratégia de investimentos da Petrobras, por exemplo, pela simples identificação dos interlocutores de alguns dirigentes da petrolífera brasileira. Da mesma forma, todo o setor agrícola dos Estados Unidos pode se beneficiar do rastreamento de informações do agronegócio brasileiro.
Se a espionagem americana no Irã e no Paquistão é motivada por questões de segurança, o monitoramento das comunicações na China e no Brasil deve ter outras razões, uma vez que esses dois países estão fora do mapa principal do terrorismo internacional. Não foi por acaso que a reunião ministerial convocada pela presidente da República para discutir o assunto, segundo o Globo, tinha como preocupação central a possibilidade de monitoramento político, comercial e industrial.
Provavelmente criado após os atentados de 11 de setembro de 2001, o sistema de espionagem derivou posteriormente para outras funções, denominadas genericamente como “observação de lideranças”.
Soberania e privacidade
As revelações de Edward Snowden provocam também muita discussão nas redes sociais sobre invasões de privacidade, tema sempre presente nos comentários do Facebook. No entanto, tudo indica que o sistema de monitoramento das agências americanas tinha alvos específicos e, mesmo que continue em operação, dificilmente teria condições de sequer distinguir identidades de pessoas sem interesse estratégico.
Os alvos dos espiões eram governantes, dirigentes de empresas com atuação internacional e, naturalmente, os levantamentos de instituições como a Embrapa, que monitora o sistema agrícola nacional.
Para o “big brother” real, soberania e privacidade são expressões sem sentido. Para a imprensa brasileira, que viaja na fantasia da suposta “liberdade de mercado”, fundada no mito da livre concorrência, fica complicado admitir que a crença na absoluta autonomia dos negócios privados é pura ilusão.
A indignação presente nos textos e manchetes parece autêntica, mas seria interessante contextualizar o momento em que supostamente os serviços de espionagem dos Estados Unidos estabeleceram sua base de monitoramento por satélite em Brasília.
Embora a informação esteja lançada apenas de passagem no noticiário, é preciso destacar que os documentos desviados por Snowden e divulgados pelo Globo se referem a operações realizadas em 2002. Nesse período, o sistema hoje conhecido como Big Data, que permite armazenar e administrar uma quantidade incalculável de dados, era um recurso disponível apenas para alguns governos e grandes empresas.
Na década passada, o governo dos Estados Unidos estava preocupado com as chances do candidato Lula da Silva vencer as eleições presidenciais, e não se pode descartar a possibilidade de ter havido alguma conivência ou omissão de autoridades brasileiras na implantação do projeto.
Embora a importação de equipamentos por representações diplomáticas esteja protegida pelas normas internacionais, essa é uma pauta que deveria instigar a curiosidade dos jornalistas: como os americanos conseguiram montar e operar sigilosamente tal aparato em plena capital do Brasil?