O Brasil multirracial será o palco de dois grandes eventos esportivos nos próximos anos. Em 2014, sediará a Copa do Mundo e dois anos depois abrigará os Jogos Olímpicos. Na semana em que se comemora o Dia da Consciência Negra, o Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (19/11) pela TV Brasil discutiu como a mídia lida com o preconceito no esporte e lembrou o exemplo de países onde o jogo foi revertido e o racismo converteu-se em convivência pacífica. Apesar de grave, o tema não é destaque na imprensa mundial.
No fim de outubro, o jogador africano Yaya Touré, do Manchester City, foi hostilizado pela torcida do time CSKA Moscou em uma partida pela Liga dos Campeões da Europa. De acordo com o jogador, integrantes da torcida o chamaram de “macaco” e imitavam o animal cada vez que o atleta estava com a posse da bola. A atitude abertamente racista ocorreu justamente em meio a uma campanha em prol da tolerância racial. Após os insultos, o time russo foi punido. Diante da polêmica, o jogador ameaçou organizar um boicote de atletas negros à Copa do Mundo que será realizada em Moscou, onde casos de preconceito são frequentes.
Para examinar esta questão, Alberto Dines recebeu três jornalistas especialistas em cobertura esportiva no estúdio do Rio de Janeiro: Luiz Fernando Gomes, Maurício Fonseca e Tim Vickery. Luiz Fernando Gomes é editor-chefe do Grupo Lance! Foi editor de Cidades do Jornal do Brasil, editor-chefe de O Dia, editor-executivo do Jornal da Tarde e editor-executivo do Jornal da Globo, da TV Globo. Mauricio Fonseca escreve a coluna “Panorama Esportivo”, do jornal O Globo. Cobriu cinco Copas do Mundo, três Copas das Confederações, duas Copas América e foi assessor de imprensa do Flamengo. Tim Vickery é inglês radicado no Brasil; faz cobertura de futebol sul-americano para a BBC da Inglaterra e para os canais SBS da Austrália e ESPN dos Estados Unidos, e escreve para a revista World Soccer.
Da elite para as massas
Antes do debate no estúdio, Dines afirmou, em editorial, que o futebol nasceu como esporte de elites, jogado por pessoas brancas, mas outras etnias logo se interessaram e o jogo se popularizou. “Como símbolo de uma miscigenação que o tornou universal, nosso primeiro grande astro foi o centroavante Friedenreich, filho de um comerciante alemão e uma lavadeira negra que brilhou nas primeiras décadas do século 20. A história do beisebol nos Estados Unidos não foi diferente: mas a abertura deu-se mais tarde. O esporte, e mais especialmente o futebol, talvez sejam os segmentos mais abertos da sociedade brasileira onde negros e afrodescendentes gozam de todos os direitos e têm acesso irrestrito. Não é assim na Europa, sobretudo na Europa contemporânea, onde o racismo combinado com a política domina amplos setores populares e vai aos estádios promovendo espetáculos degradantes”, disse Dines [ver abaixo a íntegra do editorial]. Para ele, a Fifa é uma “máquina registradora” que só se sensibiliza com dinheiro e lucro.
No debate ao vivo, Maurício Fonseca explicou que Yaya Touré é um dos principais atletas da África e já foi eleito duas vezes como melhor jogador do continente. Já passou por times de peso, como o Barcelona, e sempre se mostrou politizado. Fonseca lembrou que após a série de ofensas que Touré sofreu, o jogo precisou ser interrompido. “Está chegando a um ponto em que vai ter que se tomar uma atitude”, disse. O jornalista destacou que essa foi a primeira vez em que um astro internacional do esporte protestou contra o preconceito de forma tão veemente. “Ele vai tentar convocar um movimento para se fazer alguma coisa porque imagina em uma Copa do Mundo, com todos vendo, uma situação constrangedora como esta para o ser humano.”
Para Fonseca, a Fifa não é veemente ao orientar os árbitros sobre como proceder em casos de racismo. A federação deveria tomar atitudes mais rígidas, como estabelecer que os juízes interrompam a partida se a torcida tenha uma postura racista. “Não existe isso, é só uma recomendação. As multas são ridículas. Um clube de futebol que paga 800 mil euros por mês para um jogador paga um multa de 14 ou 15 mil dólares. Ele tira do bolso e paga. Tem que se tomar uma série de medidas para que isso seja coibido”, propôs o entrevistado. Ameaças como a de Yaya teriam uma forte repercussão porque pelo menos 40% dos jogadores são negros.
Campo espelho da rua
Apenas com uma profunda mudança na sociedade será possível combater o racismo nos estádios. Maurício Fonseca comentou que a seleção alemã conta com três jogadores negros, o que seria impensável há algumas décadas. “A sociedade fez um movimento e o futebol foi absorvido pelo movimento social”, disse jornalista. Ele ressaltou que jogadores árabes e turcos também sofrem discriminação quando atuam fora de seus países de origem.
Dines questionou o porquê de poucos negros ocuparem o cargo de técnico de times de futebol. Maurício Fonseca comentou que atualmente, no Brasil, a primeira divisão tem apenas um treinador negro: Cristovão Borges, do Bahia. Ex-jogador, Cristóvão passou para a comissão técnica e agora comanda o time. “Eles reclamam muito que não têm chances por serem negros. O Cláudio Adão volta e meia está com essa bandeira. O Paulo Cesar Caju também reclama que há preconceito. Eu acho que há mesmo”, disse o jornalista.
Luiz Fernando Gomes ponderou que não é possível dissociar o futebol da sociedade porque o esporte acaba sendo um reflexo dela. Alguns povos aprendem as lições da história e evoluem, como a Alemanha, na questão da igualdade racial. O jornalista afirmou que a situação nos campos da Rússia é um desdobramento do que se passa nas ruas, onde o racismo ainda é uma realidade. “O futebol russo e do Leste Europeu, refletem a cultura vigente na sociedade, o momento que ela vive”, disse Luiz Fernando. Para ele, a Fifa tem uma atuação de “fachada” diante do comportamento racista das torcidas: “Ela estende uma faixa no início do jogo, faz uma cartinha, os jogadores fazem um discurso e pensa que isso resolve o problema. Isso está muito longe de resolver”, afirmou.
Crime e castigo
O racismo no futebol é latente, de acordo com a avaliação do jornalista: “Quando aparece uma oportunidade, ele surge”. Para Luiz Fernando, a CBF deveria ter posições firmes contra a discriminação nos campos de futebol. As sanções para torcedores e clubes deveriam ser baseadas no Código Penal e não ficarem restritas apenas ao âmbito esportivo. “Uma Copa do Mundo e uma Olimpíada fazem sentido como evento esportivo quando servem como plataforma para uma manifestação social”, disse o editor do Lance!. A Copa que será realizada na Rússia pode ser um marco na transformação da sociedade.
Tim Vickery chamou a atenção para o fato de que o racismo é um problema da sociedade que se manifesta também no futebol – não é um fenômeno restrito a este esporte. Assim como o futebol é palco para comportamentos racistas, pode ser uma plataforma para medidas que combatam a discriminação. Para ele, há situações diferentes. Na Europa Ocidental, por exemplo, o maior problema é a assimilação dos imigrantes. No Brasil e nos Estados Unidos, ainda pesa o legado do trabalho escravo. Já no Leste Europeu, onde a comunidade negra é pequena, há uma rejeição ao que parece estranho. Vickery propõe a punição como medida de educação. O entrevistado contou que na Inglaterra, durante a década de 1970, a questão racial era muito forte. Nessa época, os primeiros negros chegaram aos campos do Reino Unido e foram duramente rechaçados. A extrema-direita, inclusive, se infiltrava nas torcidas organizadas.
O jornalista explicou que mudanças na área cultural foram determinantes para o esporte, sobretudo quando integrantes do movimento punk e do reggae se integraram a partir do movimento Rock Against Racism. “A semente estava plantada. Depois, vieram as punições. As punições são importantes nesse contexto”, disse o correspondente. Recentemente, em um jogo do Santos na Vila Belmiro, a torcida teve um comportamento ofensivo ao imitar um macaco para ridicularizar um jogador. De acordo com Vickery, se o caso tivesse ocorrido na Inglaterra nos dias atuais, os torcedores seriam identificados, processados e banidos do estádio.
Vickery contou que o primeiro jogador negro a defender a seleção inglesa, na década de 1960, escreveu um livro de memórias há dois anos onde considera que este ainda é um processo em andamento.
Problema antigo
Tim Vickery comentou há muitas queixas sobre a atuação de Joseph Blater à frente da Fifa, mas que a gestão do inglês Stanley Rous também foi controversa. “A causa que era mais próxima ao coração dele foi a tentativa de colocar a África do Sul da época do apartheid volta à Fifa. A África do Sul, depois do massacre de Soweto, em 1960, foi expulsa. Stanley Ross conseguiu colocá-la de volta”, lembrou Vickery. Hoje, os ingleses se orgulham do sucesso do país em combater o racismo dentro dos campos, mas esquecem do passado preconceituoso que atrapalhou o desenvolvimento do futebol. O jornalista ponderou que se os ingleses acertassem as contas com a história poderiam passar os bons exemplos com humildade.
Dines questionou se a imprensa consegue transmitir para a sociedade o grave problema do racismo no futebol. Luiz Fernando Gomes acredita que no dia a dia a mídia não cumpre esse papel. Os veículos só tratam do assunto quando há um caso emblemático, e não há continuidade. Tim Vickery fez um apelo para que a imprensa brasileira não use mais o termo “gringo” para se referir aos estrangeiros: “Agora que o Brasil está sediando o mundo, essa palavra ignorante tem que sair da imprensa”, sugeriu o jornalista. Ele lembrou que em 1982, quando a Inglaterra disputava com a Argentina o território das Malvinas, a imprensa sensacionalista inglesa insultava os jogadores argentinos que atuavam no Reino Unido.
Abaixo o racismo
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 710, exibido em 12/11/2013
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Em decorrência da greve dos funcionários da EBC ficamos impedidos de apresentar o programa com os requisitos habituais. E a transmissão do amistoso entre as seleções do Brasil e do Chile em Toronto nos obrigou a gravar esta edição.
Vamos tratar justamente de futebol e também de racismo em função do Dia da Consciência Negra que transcorre amanhã [20/11]. O nobre esporte bretão começou restrito às elites, jogado exclusivamente por brancos, mas ao popularizar-se ganhou nova vibração e novas cores.
Como símbolo de uma miscigenação que o tornou universal, nosso primeiro grande astro foi o centroavante Friedenreich, filho de um comerciante alemão e uma lavadeira negra que brilhou nas primeiras décadas do século 20. A história do beisebol nos Estados Unidos não foi diferente: mas a abertura deu-se mais tarde. O esporte, e mais especialmente o futebol, talvez sejam os segmentos mais abertos da sociedade brasileira onde negros e afrodescendentes gozam de todos os direitos e têm acesso irrestrito. Não é assim na Europa, sobretudo na Europa contemporânea, onde o racismo combinado com a política domina amplos setores populares e vai aos estádios promovendo espetáculos degradantes. Isso 80 anos depois de uma sangrenta guerra mundial acionada justamente pelo ódio racial.
A Fifa é uma máquina registradora que só se sensibiliza com dinheiro e lucro, especialmente nesta era Blatter, o suíço que deveria ser banqueiro ou relojoeiro, sem a menor sensibilidade humana e política. Esta omissão da Fifa diante da onda racista nos estádios produziu pela primeira vez na história do futebol uma ameaça de boicote à Copa. Por parte dos jogadores negros, especialmente africanos.
E a próxima Copa será jogada no Brasil, terra de Friedenreich, Leonidas, Zizinho, Didi, Pelé, Ronaldinho e milhares de outros. Esta é a manchete desta edição do Observatório da Imprensa – abaixo o racismo!