Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O primado da violência

Mascarados e vestidos de preto, os adeptos da tática de protesto Black Bloc protagonizaram inúmeras cenas de baderna nas últimas semanas. Depredação do patrimônio público, ataques a instituições privadas e confronto com as forças de segurança marcam a atuação desses jovens autodenominados anarquistas. Minguou a grande massa pacífica de brasileiros que foi às ruas pedindo mudanças na agenda política do país e o combate à corrupção, e agora os Black Blocs dominam o noticiário sobre os protestos.

A tática de protesto Black Bloc surgiu nos anos 1980, na Alemanha, e cresceu com as mobilizações contra o neoliberalismo e o capitalismo da década seguinte. Com a popularização da internet, ferramenta essencial para a mobilização dos manifestantes, e a crescente insatisfação com a economia, o grupo ganhou força.

Os Black Bloc não têm uma pauta de reivindicações única. Sua atuação é restrita às ruas e não há canal de diálogo com os governos. De acordo com a página do Black Bloc no Facebook, existem vários grupos, com diferentes táticas, que atuam em manifestações para questionar o “sistema vigente”. Repórteres, cinegrafistas e fotógrafos que cobrem os protestos são constantemente hostilizados por manifestantes radicais e também pela polícia. Nos protestos do Sete de Setembro, um jornalista da Globonews que cobria o evento com um telefone celular foi agredido. Em uma tentativa de conter a agressividade dos Black Blocs, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou um projeto de lei que proíbe encobrir o rosto em atos públicos. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (17/9) discutiu a relação da mídia com os Black Blocs.

Alberto Dines recebeu três convidados no estúdio do Rio de Janeiro: a antropóloga Yvonne Maggie, o sociólogo Ignacio Cano e o jornalista Arthur Dapieve. Professora titular do Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Maggie é autora de livros e artigos e tem um blog no portal G1. Ignacio Cano é doutor em Sociologia pela Universidad Complutense de Madrid e professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É especialista em direitos humanos, violência e segurança pública. Arthur Dapieve trabalhou no Jornal do Brasil, na revista Veja Rio e no jornal O Globo, onde escreve uma coluna no Segundo Caderno. Tem dez livros publicados, entre ficção e não ficção, e é professor do Departamento de Comunicação da PUC-Rio.

Quem tirou o povo das ruas?

Antes do debate ao vivo, em editorial, Dines questionou se quem expulsou a massa de manifestantes das ruas foi a repressão policial ou a violência dos Black Blocs. “Nossa mídia tem pressa em colocar o ponto final nos debates, não gosta de esticar as controvérsias, aparentemente com receio de dar voz àqueles dos quais discorda. A legitimidade da violência política vem sendo discutida há 300 anos e não apenas nas assembleias, academias e também na literatura”, relembrou Dines. A imprensa, na opinião do jornalista, precisa discutir os fenômenos gerados pela “realidade mutante” (ver íntegra aqui).

Ainda antes do debate no estúdio, a reportagem exibida pelo programa mostrou a opinião do ex-militante Vladimir Palmeira, que organizou expressivas manifestações populares nos anos 1960. Para ele, a ação dos adeptos do Black Bloc se pauta pela política, não é apenas uma tática. “Eu, como sou pela liberdade de opinião e de expressão, pouco me importo que os Black Blocs briguem com a polícia. Mas acho um equívoco que eles vão se misturar à manifestações que têm outro conteúdo e outra forma. Então, é como se eles surfassem nas manifestações”, criticou Palmeira. Para ele, é preciso examinar esse fenômeno dentro da realidade atual do país: “Há conjunturas de natureza revolucionária onde as coisas que são impossíveis nas épocas de normalidade são possíveis. Hoje em dia, no Brasil, não me parece que ajude um tipo de confronto como o que nós estamos vendo – de confronto não só com a polícia, mas de depredação. Não parece recomendável nem parece atender àquilo que a consciência de junho refletia”.

O deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), ressaltou que ainda é cedo para analisar os efeitos da atuação dos Black Blocs. “São garotos, muito jovens, fruto de uma indignação muito grande, e fruto também de uma crise brutal de representatividade. Representatividade não só partidária, não só no parlamento, mas nos próprios movimentos e que dão sinais de novos movimentos, novos métodos que a gente pode discordar, pode concordar, mas o mais importante nesse momento é tentar entender”, disse o deputado. Para ele, o projeto de lei que proíbe o uso de máscaras é um equívoco: “É um momento onde o parlamento deveria responder com leis que pudessem trazer mais transparência, trazer um pouco mais de participação cidadã, de radicalismo na democracia. [Há] projetos de lei que tramitam nessas casas que podiam dar respostas muito mais úteis à sociedade nesse momento”. O deputado acredita que essa lei poderá levar a um acirramento ainda maior na relação entre polícia e manifestantes.

Ordem nos protestos

Breno Melaragno, presidente da Comissão de Segurança Pública da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), classificou a iniciativa da Alerj de proibir as máscaras como inconstitucional. “Toda a questão ligada ao direito de manifestação, que passou a ser regulada por essa lei estadual com todos esses erros e equívocos [e] vícios constitucionais, também passa por uma questão de competência. No entendimento da OAB isso é uma matéria federal, só o Congresso Nacional pode regular [e] regulamentar esse direito de manifestação”.

Paula Máiran, presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, disse que a entidade vai reagir às agressões aos jornalistas: “Nós estamos produzindo um relatório de casos e também estamos organizando uma audiência pública para a qual já tivemos aprovação da presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal do Rio de Janeiro”, disse Paula. A representante do sindicato afirmou que todo caso de violência contra jornalistas é um atentado a liberdade de imprensa.

O sociólogo Marcelo Castañeda, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, explicou que o Black Bloc é uma tática que se constitui exclusivamente nas lutas de rua. Para ele, a cobertura dos meios de comunicação sobre o movimento tem sido parcial e incompleta: “A mídia, junto com outras instâncias de poder, vem atuando em um processo de criminalização dessa prática. Eu vejo também que, por outro lado, ao focar no Black Bloc, nos mascarados ou nos vândalos, a mídia deixa de enfatizar as pautas que estão nas ruas. Vem sendo encoberto por uma discussão em torno dos Black Blocs, da violência deles, sem mencionar a violência policial”.

No debate ao vivo, a antropóloga Yvonne Maggie contou que fez parte de um grupo de artistas e intelectuais que entregou ao secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, uma carta pedindo uma saída pacífica para as manifestações. A antropóloga explicou que a ideia era intermediar o diálogo entre manifestantes e forças de segurança para romper com o domínio da polícia na relação com os participantes dos protestos. Para ela, o encontro foi significativo porque simboliza novas formas de interlocução com a polícia, sobretudo para quem viveu a ditadura militar. O grupo levou propostas de especialistas na área de segurança pública, como a presença do Corpo de Bombeiros nos eventos.

Novas formas de protesto

A antropóloga, que foi às ruas no Sete de Setembro e pôde ver de perto o confronto, disse que o Estado “abandonou a população à sua sorte” durante as manifestações. Maggie propôs que intelectuais, estudiosos e jornalistas dialoguem com os manifestantes: “É preciso trazer a paz. É uma juventude que precisa ouvir algum sinal de apoio porque todas as reivindicações que começaram com o [Movimento] Passe Livre são justas, singelas e importantíssimas”. Maggie avalia que a grita contra a imprensa tradicional é um equívoco e ressaltou que há movimentos contraditórios caminhando lado a lado nos protestos. Enquanto uns agridem a mídia, outros a defendem.

Admiradora de movimentos pacifistas que mudaram o mundo, como o feminismo, Ivonne Maggie enfatizou que toda a mudança que ocorre atualmente no Brasil é recente e difere de outros momentos da história do país. A antropóloga comentou que não se pode ver os adeptos da tática Black Bloc como uma massa única porque há diferentes ideologias por trás do movimento. Para ela, é essencial manter uma ponte que não seja através da polícia. “A polícia estava falando, as forças de segurança estavam falando e você não estava dando voz a essas pessoas que precisam ser ouvidas”, disse a antropóloga.

Dines lamentou que, ao contrário dos anos 1960, hoje as manifestações organizadas descambem para a violência. Para Arthur Dapieve, quando os protestos partem para a violência acabam beneficiando o infrator. Agora, a questão está centrada na segurança pública e não mais no Estado: se o governo antes estava acuado, agora está “soberbo”. Dapieve sublinhou que as alas mais violentas impuseram uma lógica interna de confronto que acabou alijando outros setores que estavam protestando em junho. “Eu acho que era natural que, mais cedo ou mais tarde, esses segmentos se desmobilizassem um pouco. Não dá para haver uma revolução permanente na rua”, disse o jornalista. Para Dapieve o esvaziamento foi acelerado pela presença dos “pitboys de passeata”.

Black Blocs vs. imprensa

Dapieve comentou que a imprensa “apanha da polícia e dos manifestantes” durante os protestos. “Acaba ficando quase lisonjeiro para a imprensa ficar nessa situação, embora seja muito grave. Ela está ali tentando cobrir. Tirar a imprensa da manifestação não interessa à maior parte da população. A imprensa tem que estar lá para mostrar o abuso policial e também o transbordar da violência por parte de alguns grupos de manifestantes”, disse o jornalista. Dapieve comentou que não ficou espantado que a polícia estivesse tentando colocar a imprensa de lado, mas sim que manifestantes hostilizassem a mídia porque, a partir de um determinado momento, os veículos de comunicação apoiavam as reivindicações dos protestos.

Na avaliação do pesquisador Ignacio Cano, parte a violência contra a imprensa se deve ao fato de ela representar o establishment. “Houve muitas acusações sobre uma cobertura de boa parte da imprensa que era injusta, parcial. Embora seja contraproducente, quem quer transparência tem que querer a imprensa lá. Eu acho que parte de agressividade foi decorrente do que os manifestantes percebiam que era uma cobertura muito parcial”, analisou o sociólogo. Cano disse que os setores violentos são minoritários, a grande maioria dos manifestantes é pacífica.

“A gente tem que ficar atento para os dois extremos. É claro que pessoas que se organizam para jogar coquetel molotov, que planejam ataques violentos, têm que ser monitoradas, fiscalizadas e processadas. Por outro lado, a reação do Estado em muitos casos está sendo exagerada. Nós temos vários casos de manifestantes Black Blocs sendo processados por quadrilha armada”, exemplificou o sociólogo. Alguns deles estão sendo tratados como membros de grupos de extermínio, o que é um absurdo na opinião do pesquisador. “Nós temos desde o início do processo duas narrativas em confronto. A narrativa dos vândalos e do povo na rua. Em um determinado momento, a narrativa do povo na rua foi amplamente vitoriosa. E até os meios [de comunicação] que começaram chamando aquilo tudo de vândalos, tiveram que recuar. Agora, na medida em que há uma desmobilização, o que é natural em um longo processo, acabam sobrando setores mais radicais e mais violentos, mas o Estado não pode recorrer com a truculência jurídica”, criticou Cano.

 

A mídia na semana

>> Nenhum magistrado brasileiro jamais foi tão pressionado pela imprensa como o decano do STF, ministro Celso de Mello, que amanhã [quarta-feira, 18/9] deverá dar o voto de desempate na questão dos embargos infringentes do julgamento do mensalão. Teme-se que, se o ministro aceitar os embargos, adie-se por mais um ano a sentença final de alguns réus. O chamado “voto de Minerva” a ser exercido por Celso de Mello é uma referência à deusa grega, símbolo da sabedoria. A pressão da mídia é indevida, insensata e nada sábia.

>> O México bateu os Estados Unidos e nossa mídia não deu a menor importância. A vitória mexicana sobre o vizinho do norte não é para ser comemorada por ninguém, mas é uma gravíssima advertência para nós: um estudo da ONU constatou que o México passou a ser o país mais gordo do mundo, os americanos ficaram em segundo lugar. Setenta por cento dos adultos mexicanos têm sobrepeso e trinta e três por cento são obesos, porém há duas décadas eram subnutridos. A culpa é do fast food das redes multinacionais e também das bebidas carbonadas e açucaradas como a Coca-Cola e Pepsi-Cola que os mexicanos consomem em quantidades colossais. Por que este campeonato não foi notícia no Brasil? Simplesmente porque o McDonald’s e a Coca-Cola são patrocinadores da Copa de 2014 e nenhum veículo jornalístico quer correr o risco de ser cortado das campanhas de publicidade.

>> A direita aparelhada na grande mídia resolveu desancar em coro o presidente Obama, apresentando-o como vacilante, inseguro, diante do agravamento do conflito na Síria. A legião conservadora chefiada pelo Opus Dei chegou até a valorizar a figura do autoritário Vladimir Putin, o inimigo declarado dos valores ocidentais, só para comprometer a imagem do primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Agora terá que engolir o que os especialistas consideram uma vitória de Obama – o prazo de uma semana para que a Síria indique onde está o seu arsenal de armas tóxicas.

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Lilia Diniz é jornalista