Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O protesto da imprensa contra o judiciário

A pergunta da urna eletrônica da última edição deste Observatório (‘O protesto da imprensa contra a censura é uma intimidação ao judiciário?’) deveria propiciar um pouco de autocrítica sobre o poder de fogo da imprensa, capaz de construir ou destruir reputações e afetar a confiabilidade de instituições que são necessárias também à defesa da liberdade de imprensa.

Não me esqueci do período em que jornais e revistas sofriam censura regular e sistemática, por órgãos governamentais de então, sem a menor possibilidade de buscar defesa ou proteção junto ao Poder Judiciário, sede em Estado de Direito e Democrático adequada para que sejam dirimidas questões que envolvam limites e/ou violações de direitos.

Todavia, os tempos são outros. Portanto, invocar o período de exceção como precedente que pudesse justificar a reação contra as promotoras de Justiça, por força da insurgência diante da publicação de entrevistas com candidatos a prefeitos antes de iniciado o período legal de campanhas eleitorais – e o juiz eleitoral que fixou as multas contra os jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo – é fazer tempestade em copo d’água, ou dar tiro de canhão para caçar borboleta. A desproporção tomou caráter, sim, de intimidação. Intimidação é conduta típica de quem se sente poderoso(a). De fato, o poder da imprensa é incomensurável. Nos tempos atuais, é inegável que quem detém a informação, ou a capacidade de manipulá-la, detém o poder.

Quem aceitaria se expor?

Editoriais e articulistas renomados não pouparam adjetivos para tachar as promotoras de Justiça e o juiz eleitoral de ignorantes, despreparados, chegando a ridicularizar o texto da representação e da sentença. Certos profissionais da área jurídica, que vieram engrossar o coro do achincalhe, do deboche, do escracho, foram até alçados à condição de juristas, termo esse que reservaria a bem poucas pessoas. Que saudades de um Raimundo Faoro!

Tudo se apresentou como se os jornais todos fossem oráculos dos deuses, só se conduzindo pelo estrito compromisso com a mais honesta informação. Ora, sabemos todos que caciques políticos, de norte a sul, leste a oeste deste país detêm, entre tantos negócios, jornais, além de emissoras de rádio e de TV – este Observatório fez extenso trabalho para apontar o elevado número de parlamentares que têm concessão de rádio e TV [ver ‘Concessionários de radiodifusão no Congresso Nacional: ilegalidade e impedimento‘ e ‘Rádios comunitárias – O coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)‘]. Só para citar os mais conhecidos clãs: de ACM, do ex-presidente José Sarney e do ex-presidente Collor de Mello. E por que a propriedade de jornais é sempre tão atraente? Tudo em honra da missão de levar a melhor e mais precisa informação, para que os cidadãos, todos bem informados, façam a melhor escolha? Não nos tomem por ingênuos!

Acreditar que seja possível distinguir entre informação e propaganda eleitoral em dada entrevista é fazer pouco caso da inteligência alheia. Nas ditas entrevistas, em nenhum momento os candidatos se viram numa situação de confronto ou questionamento que os mostrassem sem subterfúgios, lhes retirassem o discurso pré-preparado, de sorte a permitir que o leitor/eleitor os visse sem a maquiagem da propaganda eleitoral. Qual deles aceitaria se expor, dando munição ao adversário que poderia, no futuro, já no período eleitoral propriamente dito, se valer do que foi dito em resposta a uma pergunta mais capciosa, mais elaborada?

O gérmen da destruição

O regramento do TSE que se seguiu só serviu para demonstrar que a questão não estava clara. Mesmo o regramento parece ter descurado da realidade do país, na qual muitos órgãos de imprensa não estão a serviço da informação, mas de seus próprios donos, candidatos a cargos eletivos, ou ligados ao grupo político destes.

A imprensa usou novamente seu poder destruidor de reputações no episódio envolvendo a suspensão por liminar – ou seja, por decisão temporária – de matéria que exporia irregularidades apontadas pelo TCU em relação ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo. Ainda que não tenha sido a mais brilhante ou feliz das decisões, ela era precária, passível de revisão – como o foi – ou reforma por instância superior.

O que não tem reforma, depois de publicada uma matéria, após anos de discussão judicial, ainda que culmine com a condenação do jornal/revista, são os estragos feitos pela notícia, pois a publicação da sentença no jornal/revista – se fizer parte da condenação, e muitos anos depois do episódio, quando quase ninguém se lembra do assunto – sai num cantinho interno das páginas finais de um caderno menos importante, em meio a notas sem nenhuma relevância. O artigo de Carlos Brickmann sobre o direito de resposta, neste Observatório, aborda o assunto [ver ‘A justiça, quando tarda, falha‘].

Na reação dos órgãos de imprensa e seus profissionais contra a denominada ‘censura’, que em muito extrapolou a defesa da indispensável liberdade de imprensa, acabou por incorporar a mesma tática de desqualificar o acusador ou sentenciante, muito usada por advogados criminais – aqueles ‘juristas’ anteriormente mencionados – dos casos nos quais os réus são do andar de cima. Assim, no lugar de contrariar a acusação e/ou a decisão, pelos meios legais adequados, desqualifica a pessoa que ocupa o cargo em instituições criadas exatamente para fazer aquilo que lhes causa embaraço.

Quando a única forma de afirmação da força de uma entidade é a desqualificação de instituições, o gérmen da sua destruição se instala, adentrando-se na senda perigosa do salve-se quem puder.

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Procuradora Regional da República, associada do Instituto de Estudos Direito e Cidadania (IEDC)