Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O tartufismo da imprensa

A escandalosa “descoberta” de que o governo dos Estados Unidos espiona todo mundo, inclusive seus aliados, provoca na imprensa brasileira um debate que se parece com a grande obra teatral de Molière, “O Tartufo, ou o Impostor”.

Artigos, editoriais e elaboradas reportagens tentam apresentar como um problema político, diplomático e sobretudo moral a revelação de que o governo americano não respeita a soberania alheia. Mas o mais interessante é notar como a imprensa dissimula o fato de que o interesse central dos americanos por obter informações privilegiadas no ambiente da globalização não é a segurança. Como sempre, o que move as forças globais é a economia. A novidade é a sofisticação das tecnologias digitais de comunicação e informação.

Há dez anos, quando algumas empresas brasileiras começavam a conquistar espaço no mercado externo, principalmente nos Estados Unidos, na Europa e na China, multiplicaram-se as encomendas de seus concorrentes multinacionais de dossiês sobre determinados setores da economia nacional. Empresas de consultoria produziram milhares de páginas sobre setores estratégicos, como o agronegócio, a indústria de aviação e o petróleo.

Boa parte desse material foi obtida com espionagem pura a simples: por exemplo, numa indústria do Sul do Brasil, executivos alemães que se encontravam em visita oficial, supostamente para um intercâmbio de tecnologia, faziam fotos do entorno da fábrica, onde havia um trecho de mangue que era motivo de questionamento por parte de ambientalistas. Pouco depois, uma ONG de origem europeia discutia a qualificação da empresa brasileira para fazer negócios na Europa, alegando problemas no sistema de tratamento da água. O relatório da ONG tinha fotos dos lugares visitados por aqueles executivos.

Acontece que os debates promovidos pela imprensa brasileira sobre a espionagem americana se resumem a dar espaço para manifestações de indignação, quase sempre limitadas à suposta ocorrência de invasões de privacidade.

A resposta oficial do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, de que a ação de seus bisbilhoteiros tem como preocupação principal “entender o mundo”, é uma rara manifestação de honestidade no contexto das relações entre governos. No entanto, há muito mais a ser dito, e a imprensa brasileira foge da questão principal e escamoteia o que realmente interessa.

A farsa do livre mercado

A motivação central dos espiões americanos não está na Síria, no Egito, no eterno conflito árabe-palestino ou no Irã. Essa é uma agenda específica. O terrorismo é um quesito importante da política americana, mas a maioria das histórias sobre invasão de mensagens eletrônicas de cidadãos comuns, por conta do risco de ataques terroristas, tem muito de fantasia alimentada pelo cinema.

A declaração de Obama, de que a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês) não bisbilhota e-mails e telefonemas das pessoas comuns, é tão sincera quanto inócua. Também não se trata simplesmente de ataque à soberania das nações, embora esse seja um aspecto digno de ser ressaltado.

As melhores análises sobre o escândalo da espionagem americana devem ser feitas em contextos como o da reunião do G-20, que acontece nesta semana em Petersburgo, na Rússia. Ali, o Brasil e a Argentina tentam manter aberto o espaço para intervenções protetoras em suas economias, contra o ataque maciço dos europeus e americanos, que pretendem aumentar as medidas restritivas ao comércio global. O Brasil e seu principal parceiro na América do Sul querem impedir a inclusão, no documento final da cúpula, de restrições a novas medidas de estímulo à exportação.

Por que razão a imprensa separa os dois assuntos, mantendo o caso da espionagem em evidência no noticiário internacional e evitando relacionar a bisbilhotice americana ao contexto da concorrência econômica? Porque a revelação de que a matriz do capitalismo usa a espionagem como recurso do Estado para interferir no comércio mundial coloca em xeque os dogmas do liberalismo econômico.

O fato de que boa parte do aparato de espionagem dos Estados Unidos é usada para monitorar comunicações de autoridades às vésperas de eventos econômicos importantes, e para antecipar decisões estratégicas de empresas como a Petrobras e Embraer, revela que a livre concorrência no mercado global é uma farsa.

Na carta de agosto de 1664, em que pedia ao rei Luís 14 autorização para encenar a peça, “O Tartufo, ou o Impostor”, Moliére observava que a hipocrisia era um dos grandes vícios do seu tempo, um dos mais incômodos e mais perigosos.

Pelo visto, segue sendo uma prática comum no século 21.