Durou treze dias, quase duas semanas, o protesto contra o aumento das passagens do transporte urbano em São Paulo. O movimento, que se espalhou por uma dezena de capitais, ainda desafia estudiosos de questões sociais, e demonstra a força de milhares de anônimos nas ruas, sem orientação partidária e movidos por palavras de ordem improvisadas e generalistas.
Na quinta-feira (20/6), a imprensa noticia o recuo do governador e do prefeito, mas não pode afirmar que a crise acabou. Uma nova manifestação está marcada para a tarde desse dia, e tudo indica que será a maior de todas, e possivelmente a mais festiva, com a convergência entre o movimento original, surgido entre acadêmicos das regiões centrais da cidade, e os focos de protesto que começaram a aparecer nos dois últimos dias em bairros da periferia.
No encontro dessas duas correntes pode se escancarar o abismo que representa historicamente a grande chaga da sociedade brasileira – ou pode se dar, enfim, o grande encontro entre as duas frações de um país que já foi chamado de Belíndia.
A expressão foi inventada pelo economista mineiro Edmar Bacha em 1974, quando tinha ainda 32 anos de idade, numa fábula intitulada “O rei da Belíndia”, na qual retratava a sociedade desigual criada pelo regime militar, que dividia os brasileiros em duas categorias sociais como se vivessem em países distintos – a Bélgica da classe média abastada e a Índia, dos miseráveis.
As duas últimas décadas registram uma redução dessas diferenças, e uma classe de renda média que emergiu graças à estabilização da moeda e às políticas sociais de distribuição de renda está arquivando o país ficcional de Bacha no nicho das fábulas econômicas. Mas ainda restam grandes diferenças culturais e de oportunidade entre as duas porções de Belíndia.
O custo das tarifas de transporte público pode ser amenizado com alguma determinação política e boa matemática, conforme se demonstrou na quarta-feira (19). Mas a má qualidade do ensino, a precariedade do sistema de saúde e a insuficiência da infraestrutura são deficiências históricas que demoram a ser sanadas.
O fenômeno gerado pelos jovens do Movimento Passe Livre produziu a reversão do aumento das passagens, mas não há hipótese de um milagre no que diz respeito às outras questões, que só serão superadas no longo prazo se houver a mesma determinação política – que a pressão popular pode estimular.
Entre ilusão e utopia
O teste de maturidade do movimento será esse: consolidar a onda de protestos em um instrumento permanente de ação política. Mais interessante, porém, é a possibilidade do encontro de duas massas de manifestantes: aquela que conseguiu reverter o aumento das tarifas desfilando pelas avenidas centrais da cidade, e aquela que mais se beneficia dessa conquista, que vai marchar das periferias para o centro. Será também o teste definitivo de uma forma de organização que pode ser chamada de “caórdica” – porque parece improvisada e aleatória, mas produz uma ordem objetiva e efeitos concretos.
Os jornais de quinta-feira (20) passam ao largo dessas questões e ignoram a possibilidade do encontro entre os dois Brasis. As edições se concentram em analisar as consequências do recuo dos governantes em relação às contas públicas, fazem análises sobre quem ganha e quem perde politicamente e tentam decifrar a força orgânica das ruas.
>> A Folha de S. Paulo questiona: “Cai a tarifa – quem vai pagar?”
>> O Globo destaca a queda das tarifas e suas consequências políticas: “O efeito das manifestações”.
>> O Estado de S. Paulo tenta explicar os bastidores da decisão: “Lula e Dilma pressionam e Haddad cede”, diz o título da reportagem central.
Quem quiser saber como o movimento passou da Avenida Paulista para a Avenida M'Boi Mirim não pode ficar apenas lendo jornais ou assistindo o noticiário da televisão. A extensão do movimento para a periferia pode ser observada em canais alternativos da internet, como o Pós TV, que transmitiu ao vivo, sem edição nem cortes, as primeiras mobilizações na periferia.
Definida como uma plataforma midiativista de jornalismo ao vivo, integrada a redes sociais, a iniciativa não depende de anunciantes. As imagens são captadas e compartilhadas por e com qualquer aparelho conectado à rede, principalmente smartphones, e o Pós TV garante absoluta liberdade de expressão aos participantes.
Se vier a ocorrer o encontro das duas correntes na Avenida Paulista, uma delas terá a cobertura da mídia tradicional, a outra virá acompanhada das novas mídias sociais.
O evento poderá resultar numa celebração da vontade popular ou no fracionamento do movimento em novas, intermináveis e inalcançáveis demandas.
Talvez seja o momento da conciliação de Belíndia em um país mais democrático, ou talvez venha a marcar a linha divisória entre antigas ilusões e uma nova utopia.