Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Zé da cultura

A passagem de José Aparecido de Oliveira no governo de Brasília (1985-88) teve a marca da conciliação. A primeira retomada ocorre pelo seu estilo festeiro e provocador. Ele devolve ao brasiliense uma cidadania cosmopolita de vanguarda (presente na utopia abortada da Capital inteligente dos anos 60) e tira Brasília do ranço e rancores militares quando a Capital era um simulacro de ‘governo legal’ com bobos da corte de vários matizes e promiscuidades servis marcadas principalmente em uma imprensa reacionária.


A segunda conciliação deve ter ocorrido em seu próprio plano pessoal quando udenista (ferrenha oposição a JK e a própria construção da cidade) ele, exatamente o Zé, é quem luta em todas as frentes para conseguir o tombamento da cidade pela Unesco, em 1987. Amigo e secretário de Jânio (declaradamente deprimido e hostil com a Capital), Zé demonstra nesta guinada de paixão pela cidade um traço extraordinário da sua conduta pública e política: a cordialidade impulsiva de quem vive na adrenalina das ousadias.


Mesmo que institucionalmente tenha sofrido horrores com a penúria das verbas para o recém criado Ministério da Cultura (uma praga reveladora da miopia dos estadistas travados pela confusão entre arte-entretenimento-cultura), Zé lançou as bases intelectuais para o que chamamos hoje de Complexo Cultural da República com o Museu, o Teatro Nacional, Biblioteca Nacional e toda área da Esplanada.


O impacto de estilo e a performance esteta do Zé, na cidade, foram fundamentais para a descompressão dos anos de ditadura. Quem vive em outras cidades brasileiras, já estratificadas e com ritmos próprios de legitimação comunitária dos espaços urbanos, festas, points, casas de arte, centros culturais, becos, botecos, agitos, núcleos de discussões, circuitos de convivência, lendas e legendas não consegue imaginar o grau de controle, censura e manipulação que era sobreviver e resistir em Brasília.


O impacto de um governador descontraído no carisma e que desconstruia o gueto se fez rápido. Chamado jocosamente de ‘zé das medalhas’, brindou fartamente o peito dos excluídos e o resgatou gente que antes era enxotada e demitida das redações ao menor sinal de ameaça inteligente a canalhocracia vigente. Índios (principalmente Sapaim e Aritana, dois Yawalapiti, que compartilhavam de caminhadas pelo Parque e beberagens medicinais da tribo), negros, mulheres, comunistas, artistas e ecologistas.


Consciência ambiental


Foi na área do meio ambiente onde Zé Aparecido percebeu logo o dramático colapso em curso na Capital. Espantou ao criar um Instituto de Tecnologias Alternativas quando Al Gore não era moda e seqüestro de carbono não tinha virado grife de consciência culpada. Exorcizou a granja do Golbery e instalou ali o ITA para abrigar uma confraria de doces bárbaros e cabeças do ‘mundo alternativo’ que deixaram documentos e propostas, hoje, proféticos.


Claro que o tal colapso de Brasília veio pela força natural da conspiração da mediocridade vigente no país e sua massa manipulada por mídia e grana. A devastação, potencializada nos anos Roriz, aterrou nascentes, olhos d´água, destruiu matas ciliares, multiplicou loteamentos criminosos para produzir currais messiânicos eleitorais, pulverizou lençóis freáticos com a estúpida invasão dos condomínios classe-média e seus poços artesianos que alimentam piscinas etc, etc, etc.


Zé ao convidar os criadores Lúcio e Oscar sempre aguçava o componente ambiental no vetor do desenvolvimento. E não rimava prazer e dor: queria beleza e sonho. Jamais, outra vanguarda como homem público, desvinculava a cultura do processo de transformação coletivo. Na melhor linha estrutural de Aloísio Magalhães (criador do Centro Nacional de Referência Cultural) tentou trabalhar na base dos equipamentos públicos para criar condições de acesso e informação aos que não eram convidados para as festas nem podiam pagar ingressos. Obteve avanços tímidos na criação destas redes populares, mas criava o melhor dos oxigênios para deflagrar a invenção: garantia a liberdade.


Outro ato marcante do Zé no sentido de manifestar que uma cidade é de todos e resulta do que fizermos dela ocorreu quando propôs uma ciclovia popular na beira do Lago. Teve que desobstruir a orla, na marra. Comprou briga feroz com as invasões das mansões dos novos ricos (os mesmos que se acham elites para o deleite de suas alienadas claques).


Brasília respirava depois da cassação cívica imposta pelo golpe militar que queria a cidade como redoma – a tal bras-ilha – asfixiada como um quintal do SNI e campo de equitação dos generais em seu quartel hightech. Este Zé que não era um Zé qualquer muito menos um ninguém, era um Zé que se aproximava tanto do comum que fazia história, mesmo quando estava distraído. Este Zé desejava a cultura no centro institucional do Estado. Até hoje essa percepção de vanguarda para mudança de atitudes e revolução pacífica ainda não foi totalmente assimilada pelos ‘núcleos duros de poder’, leia-se as esferas ditas pragmáticas da grana e os xerifes ideológicos da opinião única.


Portanto foi uma honra estar em plena Esplanada dos Ministérios, no horário em que ele falecia. Projetava um mix de fotos minhas (viagens nacionais pelos Pontos de Cultura) e do Arquivo Público num trabalho intitulado O Candango na Cultura do Brasil. A projeção estava marcada para o início da noite do dia 19 no teto oval do Museu da República, área externa, ao lado da Rodoviária. Local que Zé sempre esticava num pastel esperto com caldo de cana e onde autorizou a construção de um Gran Circo Lar tocado pela Elaine Ruas.


Na projeção atendia o convite do francês Rene Pic que trouxe para a cidade o 4° Simpósio Internacional de Iluminação. Ao saber que Zé deu no pé, autorizados pelo atual Secretário de Cultura, Silvestre Gorgulho (amigo e assessor de comunicação de Zé quando governador) apenas acrescentamos, em laser, sobre as fotos do povo brasileiro e brasiliense, um ‘obrigado zé’ pelo respeito às diferenças, pelo incentivo à diversidade, pela exaltação a inteligência que instiga e cria.


Zé partiu com homenagem montada e tudo na Capital que amou e tentou preservar. Tradição e ruptura, pompa e deboche, humor e indignação, coração quente e uma paixão pelo Brasil que não tinha tamanho nem melindres na hora de explodir. Brasília vai comemorar os 20 anos de patrimônio em dezembro deste ano e ao ver imagens dos candangos, negros, índios, brancos, caboclos e mestiços projetados no ovo ou cuscuz cósmico do Niemeyer, na hora em que Zé passava, foi uma emoção coletiva dos que sabiam da sua importância e até para quem não sabia (o pessoal da rodoviária deixou as filas para ver a projeção). Todos contritos em um ato público, solidários, ao ar livre, abertos, sob o céu do Planalto, sem cães farejadores, sirenes, choques, medo, porrada e aquele ameaçador ‘vamos dispersar, vamos dispersar!’. A Brasília que o Zé queria era esta.


Obrigado! O humano é o nosso maior patrimônio. A cidade tinha poros. Fechados os porões.

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Jornalista