Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Oba-oba para ato rotineiro

No dia 15/9 (sexta-feira), a Folha de S. Paulo publicou com destaque, incluindo chamada de capa, a notícia “Lembo manda SP indenizar 174 ex-presos da ditadura”. Além de dizer que o governador de SP autorizou o estado “a pagar todas as indenizações devidas a ex-presos políticos da ditadura militar”, o texto contém a afirmação, atribuída a Lembo, de que “liquida-se assim um período histórico amargo e tortuoso de nosso país”. Vai além a colunista Mônica Bergamo, atuando (mal) como repórter: “Num primeiro momento, Lembo pensou em priorizar os ex-presos mais velhos e os que sofriam de alguma doença crônica. Acabou decidindo indenizar todos”.

Infelizmente, isto não é verdade. Há cerca de 800 ex-presos políticos cujas indenizações estão fixadas, mas que vão continuar na fila de espera. Pouco menos do que 200 pagamentos é o que o governo paulista tem efetuado em cada um dos últimos anos. Nada mais fez do que manter a rotina em 2006. Se continuar assim, terminará só em 2010 ou 2011.

Por má-fé da fonte ou por mau entendimento da colunista/repórter, deu-se aos ex-presos políticos a impressão de que a agonia finalmente terminara; em sua maioria, ficarão agora mais frustrados ainda. E apresentou-se como homenagem ao 85º aniversário de D. Paulo Evaristo Arns, o que não passa de mais um marco do escalonamento mesquinho de pagamentos que deveriam, sim, ser efetuados de uma vez por todas – afinal, os beneficiários são idosos e estão morrendo sem que essa miragem se materialize.

Atraso de décadas

Curiosamente, é a segunda vez que Mônica Bergamo cria confusão nessa área. Em maio, anunciou na coluna social o lançamento em SP do livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, como se fosse um cidadão qualquer, deixando de esclarecer que se tratava do antigo comandante da Oban (depois DOI-Codi) – órgão do aparelho repressivo da ditadura no qual, segundo Elio Gaspari, morreram pelo menos 40 pessoas suspeitas de militância revolucionária e contra o qual foram apresentadas 502 denúncias de tortura. Uma enxurrada de mensagens de antigos perseguidos políticos e seus parentes foi enviada à Folha e a Mônica, sem resposta. O assunto mereceu artigo neste Observatório da Imprensa.

Aparentemente, os editores lhe deram a chance de redimir-se da gafe anterior. O resultado foi patético – como, aliás, tem sido toda a cobertura do processo de reparações às vítimas da ditadura nos principais veículos. Em julho, por exemplo, a grande imprensa praticamente ignorou a edição de uma medida provisória do governo federal escalonando de 2007 a 2016 o pagamento das indenizações retroativas da anistia federal.

Trata-se de um acumulado dos valores que os ex-presos políticos teriam recebido caso a União houvesse instituído num prazo razoável seu programa de anistia. Como só tomou essa providência com atraso de décadas – em julho de 2001, para oferecer reparações por direitos atingidos principalmente no período 1968/1973 –, não há como questionar a legitimidade desse retroativo.

A conta-gotas

Da mesma forma que no caso de São Paulo, os beneficiários são em sua maioria idosos e morrem a cada semana. Poucos sobreviverão até 2016, para receberem tudo que a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça lhes concedeu.

E há, também, um aspecto odioso: nos casos que foram priorizados na ordem de marcação de julgamentos, o pagamento do retroativo já foi providenciado. E, conforme eu denunciei em 2004 (e o próprio Ministério Público Federal, por mim acionado, ratificou), essa priorização às vezes se deu mais em função de favorecimento a amigos da corte e a celebridades do que obedecendo aos critérios técnicos estipulados pela Comissão de Anistia.

Agora, aqueles a quem o Planalto queria pagar, já pagou – incluídas aí as tais “indenizações milionárias” que tanta celeuma causaram. Os demais anistiados vão receber a conta-gotas, durante 10 anos, as quantias bem menores a que fazem jus. Estabeleceu-se, portanto, uma nítida desigualdade no tratamento de casos idênticos. E tudo isso é olimpicamente ignorado pela grande imprensa, apesar das tentativas das entidades de ex-presos políticos (e da minha própria insistência) em colocar o assunto em discussão.

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Jornalista, ex-preso político, autor do livro Náufrago da utopia (Geração Editorial, 2005)