A Comissão da Verdade deverá “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período” de 18 de setembro de 1946 (promulgação da Constituição pós-Estado Novo) a 5 de outubro de 1988 (promulgação da Constituição em vigor).
A lei que criou a Comissão segue nisso disposições transitórias da Carta de 1988. Alguns, como Alberto Dines, notaram que ficarão de fora os crimes do Estado Novo. Outros, como Luiz Cláudio Cunha, afirmam que esse arco de tempo foi exigência de chefes militares para camuflar o período crucial, o da ditadura militar de 1964-1985, e assoberbar uma comissão com efetivo exíguo e curto prazo para trabalhar.
Essa extensão temporal permitirá, entretanto, que se examinem crimes até aqui muito pouco conhecidos, como as torturas que militares praticaram contra militares durante a campanha das eleições para a diretoria do Clube Militar, em 1952.
Eleição no Clube Militar
Lê-se no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, consultável no Acervo do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, verbete Clube Militar (redigido ainda durante a ditadura):
“A campanha eleitoral foi marcada, segundo a chapa nacionalista, por uma onda de repressão a seus cabos eleitorais, que eram constantemente presos e espancados.”
Revelar esses fatos será importante para mostrar o grau de feroz antagonismo que existia dentro das Forças Armadas.
O Clube Militar tinha tanta importância política que Getúlio Vargas só lançou sua candidatura à presidência, em 1950, após a vitória da chapa nacionalista para a diretoria do Clube, encabeçada pelo general Newton Estillac Leal, que se tornaria seu primeiro ministro da Guerra.
Também será interessante constatar que a Cruzada Democrática, chapa que impediu a reeleição de Estillac Leal, congregava oficiais com papel de primeiro plano na preparação do golpe de Estado de 1964 e nos governos militares, como Humberto de Alencar Castelo Branco, Sizeno Sarmento, Jurandir Bizarria Mamede, Amauri Kruel, Antônio Carlos da Silva Murici, Golberi do Couto e Silva, Fritz de Azevedo Manso e Ednardo D’Ávila Melo.
O general Ednardo comandava o II Exército quando foi assassinado, pelo respectivo DOI-Codi, o jornalista Vladimir Herzog. Depois do assassinato do operário Manoel Fiel Filho, meses depois, no mesmo local, foi demitido pelo então presidente, general Ernesto Geisel.
Das torturas às bombas
Estudar as violações de direitos humanos ocorridas nesse período será uma contribuição importante da Comissão para a incessante tarefa de reescrever a História do Brasil.
Tentativas de atribuir a tortura a iniciativas desvairadas de subalternos se tornarão menos convincentes. A tortura de presos políticos foi uma peça-chave do Estado brasileiro entre 1964 e 1979.
Depois da decretação da Anistia, não podendo intimidar por esse caminho, militares se dedicaram a cometer atentados (bombas em bancas de jornais e na ABI, cartas-bombas em 1980, quando morreram Lyda Monteiro da Silva, secretária do presidente da OAB Eduardo Seabra Fagundes, e ficou mutilado e cego José Ribamar de Freitas, funcionário da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, tentativa fracassada no Riocentro, em 1981).
Uma lista se encontra na última página do último volume da notável publicação Nosso Século, da Abril Cultural (São Paulo, 1980).
O livro A Direita Explosiva no Brasil – A história do Grupo Secreto que aterrorizou o país com suas ações, atentados e conspirações, de José A. Argolo, Kátia Ribeiro e Luiz Alberto M. Fortunato (Rio de Janeiro: Mauad, 1996) detalha esses episódios.
A tortura como prática corrente da repressão policial-militar, sob a direção dos altos comandos das Forças Armadas, se torna menos difícil de conceber quando se aprende que no início dos anos 50 oficiais do Exército não se constrangeram ao torturar ou mandar torturar colegas de farda em função de uma disputa dentro da corporação. Já estava ali, totalmente cristalizada, a noção de “inimigo interno” importada pela Escola Superior de Guerra do War College americano.