Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Onde o perigo é estar vivo

Desta vez o morto foi ele. Um dos mais de 6.630 que foram assassinados em Ciudad Juárez desde que começou a guerra do presidente mexicano Felipe Calderón contra o narcotráfico, há três anos e meio. Mas ele, por seu trabalho, simbolizava uma democracia na qual os jornalistas se autocensuram para viver mais um dia ou são assassinados sob o império da impunidade (caso de 97% dos crimes, segundo dados do Ministério Público). Ele tinha 21 anos, e em seus sonhos partidos encontrou uma cidade que já não existe.

O morto é Luis Carlos Santiago Orozco. Em maio, havia começado a praticar para ser um dos fotógrafos de El Diario. Há pouco mais de uma semana, conseguiu seu objetivo. Cobria o noticiário geral.

Na quinta-feira, 16 de setembro, milhares de juarenses cruzavam a fronteira para El Paso (Texas) para desfrutar (sem risco de morte) os dias de festa mexicana pelo bicentenário da independência da Espanha. Na noite anterior, o prefeito de Juárez havia lançado o tradicional grito ‘Viva México!’ numa praça vazia, numa cidade sem ânimo para comemorar, onde todo dia se celebra a sobrevivência diária.

A câmera na mão e o sorriso

Luis Carlos Santiago e Carlos Manuel Sánchez Colunga participavam nesse dia festivo de um curso de fotografia. Chega a hora de comer. Decidem ir juntos. Vão no Nissan Platina cinza que pertencia ao filho de Gustavo de la Rosa, o inspetor da Comissão Estatal de Direitos Humanos que denuncia desaparecimentos, tortura e assassinatos de soldados e policias federais e, por isso, está ameaçado de morte.

No concorrido Rio Grande Mall, entre a Avenida López Mateos e o Paseo Triunfo de la República, duas das principais vias de Juárez, bem perto de El Diario, disparos. Ninguém viu muito, como sempre, para continuar vivo. De um veículo em movimento, dois outros jovens dispararam neles. Luis Carlos morreu dirigindo, segundo o relatório policial. Ao que parece, sua morte foi instantânea. Ele levou vários tiros no rosto. Com Luis Carlos, são 11 os jornalistas assassinados no México neste ano. Carlos Manuel Sánchez salta com sua câmera, entra no centro comercial e pede ajuda. São garotos que sonharam ser repórteres fotográficos no momento mais perigoso para isso em Ciudad Juárez.

A Procuradoria de Justiça investiga se o ataque tinha como alvo o filho do inspetor ameaçado, que emprestou o veículo para Luis Carlos, com os assassinos se confundindo.

Lembro-me de Luis Carlos na última cobertura que fizemos juntos, dez dias antes de ele ser assassinado. Tirava fotos de pais de garotas desaparecidas que, em frente da Procuradoria-Geral da República, pediam para as autoridades não se esquecerem delas. O que não fizeram em 17 anos. Prefiro lembrá-lo assim, com sua câmera na mão e o sorriso de paixão por um jornalismo que começava a descobrir. Com sua morte, mataram todos nós.

Meu vômito de justiça

Na edição do último domingo (19/9), El Diario lançou um editorial intitulado ‘O que querem de nós?’, no qual pedia aos traficantes que dissessem quais as regras para que o meio jornalístico não sofra mais ataques e assinalava que os cartéis são ‘as autoridades de fato nesta cidade porque os poderes legalmente instituídos não conseguiram fazer nada para impedir que nossos companheiros continuem caindo, apesar de repetidamente o termos exigido’. Em dois anos foram assassinados dois de seus jornalistas. No total, são 22 repórteres mortos no México desde que o presidente Felipe Calderón assumiu, em dezembro de 2006, segundo dados do Comitê de Proteção aos Jornalistas.

Num país onde foram assassinadas mais de 28 mil pessoas, Ciudad Juárez registrou o maior número de mortos. Los muertitos, como são chamadas as vítimas no jargão jornalístico de Ciudad Juárez, deixam mais de 10 mil órfãos. As autoridades, ao não fazerem nada, se convertem em sicários que hoje cortam cabeças.

Sou jornalista na cidade catalogada como a mais perigosa do mundo. Nem sempre encontro espaços para publicar minhas matérias. Meu blog, Ciudad Juárez, en la sombra del narcotráfico, surgiu da necessidade de contar, sem ter de esperar por um editor. De contar o que meus colegas juarenses não podem contar. Sem autocensura, porque eles, sim, é que estão em perigo. Em meu blog não há grandes investigações. O que há são crônicas da vida diária desta cidade, vista com meus olhos. Que me ajudam a me sentir viva em meio à morte constante. É meu vômito de justiça.

Por que a droga se transforma num fantasma?

Não tenho medo, caso contrário não estaria vivendo em minha querida Ciudad Juárez. Mas reconheço o perigo. A única coisa que me dá medo é não fazer o que sinto que devo fazer. Tomo minhas precauções, embora saiba que se nos quiserem matar nos matarão, e não acontecerá nada. Esse perigo aumenta se não nos vendermos nem aos narcos nem às autoridades corruptas.

A pressão para não informar é cada vez mais forte, sobretudo das autoridades mexicanas. Dos colegas corruptos. Dos policiais federais. Recebemos golpes numa cobertura e ameaças de plantarem drogas em nossa casa se informarmos sobre as extorsões contra a população e sobre as violações de direitos humanos. Isso se converteu em algo cotidiano. Liberdade de imprensa não existe em Ciudad Juárez.

Preciso tentar devolver a voz aos que dela foram privados. Não sei se meus retratos das vítimas servirão para algo, para refletir sobre essa chamada guerra ao narcotráfico. Só sei que não posso fazer outra coisa além de contar o que vejo aqui.

Sinto um amor cheio de dor por Ciudad Juárez, a primeira cidade em que pisei no México, há 13 anos. Meu coração nascido na Espanha se converteu em puro juarense. Aqui encontrei a vida que não encontrei ao chegar nos EUA: essa alegria dos juarenses, que levam a vida como um instante fantástico, que pode acabar de repente. Para mim, El Paso (Texas) era a morte, não tinha nada. Agora, trocaram-se os papéis: a vida está em El Paso, com a fuga de milhares de juarenses.

O perigo, que antes era para as mulheres pobres, jovens e belas, se democratizou. O assassinato de mulheres continua. Os mortos são os únicos que estão a salvo. Esta é uma cidade em guerra, de edifícios incendiados, abandonados, casas à venda, extorsões, sequestros. Uma cidade militarizada, com detenções constantes. Uma cidade de 1,3 milhão de habitantes que está desaparecendo: há 116 mil casas abandonadas, segundo dados da administração municipal de Ciudad Juárez, e mais de 10 mil empresas fechadas.

Um leitor me perguntou: por que a droga (que chega da Colômbia) se transforma num fantasma viajante ao cruzar para El Paso, Estados Unidos? Ainda não tenho a resposta. Você tem?

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Jornalista