Devemos despartidarizar o caso Battisti. Na Itália, dos fascistas que apoiam o Berlusconi até os ex-comunistas, todos querem sua extradição. Já no Brasil, quando o ministro Tarso Genro lhe concedeu asilo, a primeira reação da revista Veja – que não é um órgão de esquerda – foi favorável à decisão (depois, mudou de ideia). Já a Carta Capital, que se situa à esquerda e apoiou o governo Lula, contesta, com bons artigos, o asilo concedido. Nós, brasileiros, estamos divididos nesse caso, mas nossa divisão não opõe direita e esquerda, governo e oposição.
De todo modo, não cabe aproximar a situação italiana da brasileira, nem trinta anos atrás, nem hoje. Aliás, o que me preocupa é: por que no Brasil a questão Battisti, que mal nos diz respeito, assume significados tão diferentes dos que tem na Itália? Aqui, tivemos uma ditadura que ninguém elegeu e que nos legou uma economia em crise, inflação altíssima, uma dívida externa e social das mais elevadas no mundo. Contra ela, muitos se bateram, de distintas formas. Este jornal a criticou e sofreu longa censura, sem recuar em seus valores liberais. Oposicionistas pacíficos foram assassinados, como Rubens Paiva, cujo filho Marcelo escreve nestas páginas [do jornal Estado de S.Paulo]. A hoje presidente Dilma se insurgiu mais radicalmente, mas sempre contra o mesmo regime ilegítimo. Aqui, a opressão e a ilegitimidade marcavam o governo. Já na Itália, o governo era legal e também legítimo. O terror italiano foi ilegal e ilegítimo.
Estratégias inéditas
Comparar quem hoje está em nosso governo aos terroristas italianos carece assim de base, no passado, porque em 1970 os governantes da Itália eram eleitos e os do Brasil, não. Mas também carece de base no presente. A presidente Dilma propôs em seus discursos de campanha, e novamente no de posse, uma sociedade de classe média. A ideia de justiça para o governo atual é a de uma sociedade em que a classe média se amplie. Não há nada menos marxista, menos leninista, do que esse tipo de sociedade: uma sociedade de classes, mas na qual a desigualdade é reduzida. Não há nada menos terrorista do que isso – porque a classe média, em condições normais, quer a prosa e não a épica, a banalidade e não o heroísmo, o consumo e não a destruição.
Não pretendo discutir a culpa ou não de Battisti – assunto sobre o qual muito se escreveu, muito li, mas que não tenho condições de julgar. Apenas lembro que uma das grandes contribuições da América Latina ao mundo foi o valor do asilo político, que salvou muitas vidas. Os crimes de que Battisti é acusado são políticos. O que soa estranho, no caso, é que seu grupo não lutava contra uma ditadura, mas contra uma democracia, tal como hoje, na Colômbia, as FARC e os paramilitares. Não posso admirar quem toma em armas contra uma democracia. Mesmo imperfeita, ela é superior à ditadura – e a democracia só melhora com mais, não com menos, democracia. Mas resta que os crimes foram políticos e não é trivial distinguir o crime político extraditável do não extraditável.
A exceção que permitiria extraditar criminosos políticos valeria quando fossem, na verdade, crimes contra a humanidade. Esse conceito se apurou durante a II Guerra Mundial, travada contra líderes esmerados em sua maldade. Para puni-los, a segunda metade do século XX construiu duas estratégias inéditas, mas sucessivas e opostas. A primeira foi seguida em Nuremberg e em Tóquio contra as potências derrotadas do Eixo fascista e depois, na Argentina, contra uma das piores ditaduras da América do Sul: foi julgar os autores de crimes hediondos contra a humanidade. Mas só valeu no começo, porque a maior parte das ditaduras da América Latina sequer foi a juízo.
Páginas sujas
A segunda estratégia foi criada por Nelson Mandela e Desmond Tutu na África do Sul: consistiu em abrir espaço para a verdade, como meio para a reconciliação. Dizer toda a verdade sobre os crimes, sobretudo os do apartheid, mas também os do outro lado, foi condição para o perdão recíproco. Assim a África do Sul conseguiu resultados melhores do que a Argélia que, nas semanas após sua (merecida) independência da França, massacrou numerosos colaboradores árabes da potência colonial, deixando o país em frangalhos e expulsando a mão de obra europeia que poderia ajudar a construção do novo Estado, ainda que essa mão de obra estivesse manchada pelos crimes do passado.
O modelo sul-africano é o melhor que temos. Por isso, surpreende que pessoas favoráveis à extradição de Battisti, afinal de contas apenas um possível terrorista numa luta contra seu governo, se oponham à apuração da verdade em nossa ditadura militar. Apuração essa que só pode visar, na lição do Arcebispo Tutu, à reconciliação. Nenhum país ganha, escondendo sua história e, em especial, suas páginas sujas. A melhor reconciliação se baseia no reconhecimento de que as pessoas que mandaram ilegitimamente no Estado brasileiro cometeram crimes, e quais foram. O que quer que achemos da remota e pequena história de Battisti, não podemos deixar de encarar esta nódoa que, ela sim, pertence a nossa história.
******
Professor titular de Ética e Filosofia Política da USP