Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os abusos evangélicos

A prisão de dois pastores evangélicos brasileiros no exterior está gerando muita polêmica. Alguns não entendem como e por que os mesmos abusaram tanto de seus fiéis e sempre ficaram impunes dentro do Brasil. A única explicação que me ocorre é que a história deles (e de outros vigaristas travestidos de religiosos) é absolutamente compatível com as tradições brasileiras.

Em 1500, os portugueses aqui chegaram e rapidamente abusaram dos índios: apropriaram-se de suas terras, de suas índias e privaram-nos de suas religiões e culturas. Alguns séculos depois, os descendentes dos primeiros colonizadores para cá trouxeram os africanos que, como escravos, e portanto, coisas, sofreram abusos tão grandes ou maiores que os legítimos possuidores da terra. O mundo girou e cá estamos nós na atualidade. Somos todos descendentes de índios, negros e portugueses. Todos misturados aos netos e bisnetos de italianos, japoneses, alemães, polacos etc., que aqui chegaram a partir do final do século 19 e rapidamente se integraram ao patrimônio genético brasílico. Racialmente, somos quase integrados. Socialmente, vivemos numa rígida estratificação social: de um lado os ricos, que controlam o Estado; de outro os pobres, que suportam o peso do Estado e dele pouco ou nada auferem.

Propaganda enganosa ou estelionato?

Há algum tempo publiquei no CMI as seguintes observações:

‘Recentemente, num desses programas evangélicos televisivos, um destes que prometem a salvação, libertação, descarrego ou coisa que o valha, um dos membros da platéia se levantou e se disse curado. Atrás do infeliz, que foi imediatamente capturado pelas lentes das câmeras ávidas de propaganda fácil e possivelmente enganosa, vinha alguém carregando uma cadeira de rodas. O tal curado, que seria paralítico, paraplégico ou vítima de poliomielite, andou claudicante em direção ao púlpito sob efusivos aplausos da platéia.

Ver a cena tão comovente, providencial e provavelmente bem ensaiada, sugeriu-me algumas questões interessantes. Coisas estúpidas, como: e, se o dito curado estivesse apenas representando, não estaria ocorrendo propaganda enganosa ou estelionato?

A primeira hipótese, não descartei de plano, pois se a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos espectadores de programas religiosos é duvidosa, não é tão induvidosa sua não aplicação à relação entre o canal de TV e os telespectadores. As redes de televisão prestam um serviço e, como tal, podem muito bem estar sujeitas às regras do CDC.

A hipótese de estelionato, também não descartei imediatamente. Meus conhecimentos de Direito Penal são limitados, mas mesmo assim não posso deixar de notar que estes programas evangélicos visam indiretamente a arrecadação de fundos para as igrejas que os patrocinam.

O episódio mencionado no início pode não passar de uma encenação. Isto pode ser facilmente provado mediante uma perícia médica no indivíduo que abandonou a cadeira de rodas e andou, ou através da análise de seu histórico médico anterior e posterior ao milagre. Comprovada a fraude, somos obrigados a concluir, sem dúvida alguma, que as pessoas foram induzidas a colaborar com a igreja que patrocina o programa mediante um ardil. Se os elementos do estelionato – quais sejam, vantagem ilícita e fraude – ocorreram, ou podem ter ocorrido, por que o Ministério Público do Estado de São Paulo não fez nada? Mistério!?!

O MP paulista declarou guerra à baixaria na TV. O João Kleber, cujo programa não assistia nem assistiria, que o diga. Todavia, se considerarmos os abusos que podem estar sendo cometidos nos saravás evangélicos televisados, que vão ao ar todas as noites, sou obrigado a concluir que o João Kleber pode ter sido vítima de uma injustiça. Afinal, por que seu programa, que continha apelações, aberrações e fraudes com conotação sexual, não pode ir ao ar se a população de baixa renda pode estar sendo vítima de engodos religiosos igualmente apelativos e fraudulentos que visam indiretamente arrecadação de fundos?’

Privilégios ilegais

O comentário acabou virando denúncia. Os acontecimentos recentes envolvendo duas personalidades do mundo evangélico no exterior confirmaram minhas observações. A possibilidade de responsabilizar os desvios e desmandos dos exploradores da fé existe e ocorre. Mas, não no Brasil. Nossa trágica tradição parece não permitir que a legislação seja rigorosamente aplicada contra alguns cidadãos, ou como diria um célebre autor inglês, contra ‘os mais iguais’.

O Brasil tem uma Constituição escrita. Entretanto, alguns estão acima dela e outros nem são tratados como titulares dos direitos assegurados pela mesma. O abuso que alguns (os ricos e seus proxenetas) cometem a outros (os pobres) é uma instituição antiga e se perpetuou após o fim da colônia, do império e da primeira, segunda e terceira Repúblicas.

Os donos do Estado (dentre os quais destacamos todos que têm condições financeiras para concorrer a cargos eletivos ou podem se dar ao luxo de financiar campanhas eleitorais) desfrutam privilégios ilegais. Estão acima da Lei. Cometem crimes e ficam impunes. Mesmo quando abusam, se dizem vítimas e o Estado os indeniza. A mídia e a população reconhecem isto, de certa maneira. Que estranhamento causou a prisão domiciliar do juiz corrupto? Quão severa foi a punição dada aos que queimaram o índio Galdino? Quanta indignação despertou a apreensão das montanhas de dinheiro com a filha do senador ou com o deputado evangélico? O que fizemos diante da omissão das autoridades?

Os modernos capitães-do-mato

Ao lado e abaixo dos privilegiados estão aqueles que têm condições de invocar a proteção estatal e, portanto, podem pagar advogados, custas processuais etc. Os brasileiros de classe média têm horror aos mais pobres e temor dos ricos. Encolhem-se para desfrutar de alguns direitos. Desde que não afrontem os privilégios dos donos do Estado, podem viver relativamente em paz. Em paz e no entanto intranqüilos, em razão da percepção de que há algo de muito errado neste país que paradoxalmente existe porque se desmancha a olhos vistos.

Na base da pirâmide social estão os menos iguais. São os pobres, desvalidos, cortiçados e favelados que não têm privilégios porque suas contas bancárias são magras e não têm direitos porque raramente têm acesso ao Estado. Muitos, com muita razão, encaram o Estado como o inimigo que cobra tributos indiretos por serviços que não fornece em razão dos privilégios que distribui aos ‘mais iguais’. A única face do Estado que os ‘não-cidadãos’ conhecem é a do policial fardado que abusa da violência e fica impune, ou do servidor público carrancudo, dentre os quais se destacam alguns juízes e promotores, que atendem mal as pessoas pobres porque são oriundos das classes mais favorecidas ou porque renegam a origem humilde em razão do recalque ou do orgulho advindo da nova condição. ‘O senhor sabe com quem está falando?’ parece ser a frase preferida dos policiais militares e da maioria dos servidores de alto escalão, o que comprova que uns e outros são os modernos capitães-do-mato.

Futebol na TV e carnaval

Neste contexto, ninguém deve estranhar os abusos cometidos pelos pastores evangélicos. O campo em que eles semeiam é bastante fértil. Sua platéia está acostumada ao abuso e a todos os abusos sempre disse amém!

Os políticos, que sempre estão a abusar dos eleitores (cuja maioria é oriunda da mesma classe de que saem os fiéis) fornecem aos religiosos paradigmas importantes e interessantes de abusos e impunidade. Os pastores observam e copiam os políticos, que por sua vez aprenderam com seus colegas de profissão toda sorte de traquinagens.

Os fiéis e eleitores vítimas de pastores e políticos são, em geral, os mesmos operários que sofrem abusos nas fábricas brasileiras. E nem é preciso ser muito perspicaz para perceber que os nossos empresários copiam os modelos fornecidos pelos empresários internacionais, que aqui se instalam para fazer aos empregados o que não ousam sequer imaginar nos seus países de origem.

O Brasil é uma tragifesta. Estamos tão acostumados aos abusos que achamos que eles são naturais, desejáveis… e, por que não dizer, até divinos.

Não podemos contar com os políticos. Não devemos acreditar nos pastores. Não temos razão para confiar no Estado. E nunca seremos tratados como iguais pelos ricos. Vivemos porque vegetamos. Curiosamente, nunca fazemos revoluções. Somos brasileiros. Então, assistimos futebol na TV e desejamos novos carnavais. Êta vida besta, sô!

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Advogado, Osasco, SP