Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Os assassinatos em série nos EUA

O resultado não será exato como uma conta feita em matemática, mas é possível armar equações explicativas da relação entre padrões civilizatórios e determinadas afecções mentais. A velha histeria, por exemplo, é uma doença da representação, no sentido de que a sexualidade reprimida se exprime, teatralmente, na fala e no corpo, de modo perturbador. Já a paranóia tem mais a ver com uma patologia dos efeitos da educação totalitária sobre o sujeito. E na síndrome obsessiva, detectam-se os traços de formações religiosas que perderam a sua força histórica e coletiva, mas terminam reeditadas em sofridos ritos privados.

Superficial que seja, esta generalização serve como intróito para uma abordagem menos ‘noticiosa’ de alguns dos aspectos da onda de gratuitos assassinatos em bloco nos Estados Unidos. Só no mês de março passado, seis deles foram registrados pela imprensa internacional. No sétimo, ocorrido no início de abril, foi vitimado um professor pernambucano em estágio de pós-doutoramento, que se achava num centro cívico encarregado da seleção de imigrantes idosos. Seu corpo crivado de balas foi enterrado no Recife, em pleno Domingo de Páscoa.

Põem-se em pauta, assim, ocorrências típicas da realidade norte-americana. Numa ponta, o tema do serial killer, muito explorado pela indústria cinematográfica dos EUA, em que um psicopata espaceja uma série de suas vítimas gratuitas. Na outra, também um suposto psicopata, senão sociopata, assassina uma série aleatória de pessoas, só que numa mesma ação, em forma de chacina, geralmente num espaço comunitário qualquer.

Sentimento de fracasso

No caso da chacina, habitualmente praticada com armas de alto poder de fogo, a explicação mais imediata vincula-se à venda indiscriminada de armas e à conseqüente cultura da violência por parte da cidadania média, em especial no âmago do que se denomina ‘América profunda’. No enterro do professor pernambucano, segundo a imprensa, foi este o ponto levantado por parentes e amigos da vítima.

Mas pode ser muito mais complicado do que isto, aliás dificíl de se abordar sem o recurso do jargão psi. O fato é que quando o pesquisador se debruça sobre a organização psicodinâmica profunda dos indivíduos – portanto, sobre o desenvolvimento do processo de identificações, angústias e defesas – depara com uma configuração do caráter e um estilo de comunicação que funciona como um sistema de equilíbrio, relacionado tanto ao mundo interno quanto ao entorno psicossocial, o universo, digamos, desejante do sujeito. Esse universo constitui, talvez mais do que o mundo interno das fantasias, uma barreira à compreensão, uma vez que a dinâmica do meio social em que se move o indivíduo é uma totalidade diversificada de situações e experiências nem sempre palpáveis.

No entanto, uma abordagem apenas epidérmica do universo civilizatório norte-americano já é capaz de fornecer indicações valiosas ao mais leigo dos cidadãos. Primeira, a enorme pressão societária sobre o indivíduo para vencer no jogo competitivo: a alternativa entre ser winner ou loser está posto num pano de fundo social de pura ferocidade e de inconfessas mistificações. Por exemplo, durante muito tempo, o mercado de trabalho norte-americano foi ideologicamente construído como um modelo a ser seguido pelo resto do mundo, inclusive a avançada Europa. Com relação a esta última, organismos financeiros chegaram levantar a tese da ‘eurosclerose’, ou seja, deficiência de dinamismo econômico frente ao mercado de trabalho americano, supostamente mais flexível e mais apto a gerar postos na cadeia produtiva.

Estudos recentes demonstram, entretanto, que as taxas padronizadas de desemprego nos EUA sempre deixaram de lado a precariedade e a subutilização do trabalho. E a instabilidade sistemática – como bem se sabe, fator de enfraquecimento da sociabilidade e de fortalecimento do sentimento regressivo de fracasso, a condição do perdedor, do loser – vem aumentando desde o início dos anos 1980, como resultado da desconstrução neoliberal dos mercados tradicionais de trabalho.

Lição proveitosa

Ainda assim, a economia é apenas parcialmente explicativa. Em termos psicossociais, é lícito para a forte hegemonia interna característica dos EUA, onde cada indivíduo, de raiz ou de imigração (os EUA são um país de imigrantes) imbuí-se facilmente do sentimento de pertença e de orgulho pátrios. É uma hegemonia política consolidada pela fantástica produção em série do parque industrial (hoje paulatinamente transnacional), pelo poderio militar, pela difusão mundial dos valores de classe média, enfim, pelos reflexos dessa seriação padronizada e mitificada até mesmo num certo estilo burlesco de dança – as jovens majorettes nos campos de futebol, as coreografias sincronizadas dos espetáculos musicais da Broadway etc. – em que a estética da série avulta ao primeiro plano.

O serial killer e a chacina em série devem ser vistos como espasmos convulsivos, doentios de um padrão civilizatório problemático. Não que esses fenômenos deixem de ser possíveis em outros países, e na verdade se sabe da ocorrência episódica de um ou de outro em diferentes regiões do mundo. Mas sua recorrência, o seu intrigante sistematismo, é coisa do Norte todo poderoso.

Talvez se possa extrair daí alguma lição proveitosa sobre o peso social das contradições entre elevado progresso tecnológico e baixo desenvolvimento cultural e mental. Sobre isto terá muito a dizer o jornalismo de profundidade ou de amplo esclarecimento, em tempos oportunos.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro