Alberto Dines, em seu artigo ‘As lágrimas das carpideiras oficiais‘ (OI de 2/8/2005), critica a disparidade na reação apresentada aos diversos tipos de assassinatos, tanto por setores de governo quanto pelos veículos de mídia, como se também no homicídio existissem vítimas mais iguais que outras.
Ali, após comentar o enaltecimento de umas e o esquecimento de outras, ao final parece querer atribuir semelhante conduta a uma rubrica recém-inaugurada nessa contabilidade de bombeiros com que determinados políticos pretendem dar conta da atual exposição de práticas notoriamente sabidas e consentidas, ainda que não com a amplitude de personagens e malhas ora desveladas.
Engano. A morte, principalmente entre nós, preserva as mesmas distinções de classe, posição, origem, prestígio, gênero, geração, funcionalidade física, orientação sexual e identidade de gênero presentes nas relações intervivos. Produto das lentes através das quais percebemos os indivíduos e organizamos as relações sociais. Tais condicionantes são refletidos pelos formadores de opinião ao reagirem ou divulgarem os fatos. Exemplos nos veículos de informação encontramos à farta, diariamente. Também aqui nesse Observatório, pelo silêncio que vinha destinando [ver abaixo seleção de links para textos sobre mídia e criminalidade publicados no Observatório].
Afinal, delinqüência tradicionalmente sempre esteve associada aos setores populares e marginalizados, nunca merecendo tratamento ‘nobre’, ao nível de temas outros – política, economia, conflitos internacionais. Exceto quanto a vítima ou é integrante do campo profissional ou das parcelas mais elevadas da sociedade.
Não falo de glamourizar a pobreza ou os estigmatizados e as formas de violência de que são vítimas, mas de dar equânime problematização a um leque maior dos temas pautados pelos órgãos de comunicação, para além dos costumeiramente mais próximos do segmento produtor/leitor desse espaço de reflexão que se constitui este Observatório.
Matéria tendenciosa
Não me recordo de nenhuma pesquisa de opinião abordando a ascensão nos índices de crimes motivados pelo preconceito contra os homossexuais de ambos os sexos (homofobia), por exemplo. Nem mesmo no período de realização das chamadas Paradas do Orgulho GLBT, eventos de massiva mobilização nacional, não vi o tema ser pautado.
Tomemos como análise as duas últimas semanas do mês de julho. Mais de cinco casos fatais de violência contra homossexuais ocorridos em diversos estados do país foram noticiados, sem maiores aprofundamentos, repercussões. Presentes os costumeiros requintes de perversidade – de ateamento de fogo a esfacelamento de crânio por pedrada –, restaram no limbo das manchetes policiais.
Os órgãos de investigação criminal, em continuidade com a sua tradição de vincular orientação sexual e identidade de gênero com delinqüência (pedofilia, drogas etc.) e passionalidade, espelhando o preconceito de seus integrantes, dá continuidade à naturalização dessa forma de homicídio específica e simplesmente não concluem a apuração. É a crença no princípio da retribuição merecida.
Os jornais se limitam a proceder ao registro. Não havendo vocalizadores capazes de exigir e acompanhar apuração e punição, restam na vala da banalização, como algo da natureza mesma de seres exóticos, bizarros.
Enquetes, discussões, artigos, editoriais repercutindo a seqüência macabra? Não há para quê! A direção do programa Fantástico, da Rede Globo, entendeu que seria mais esclarecedor e positivo para o processo nacional de construção de uma cidadania mais solidária e inclusiva levar ao ar em 31/8/05 matéria tendenciosa sobre a ‘recuperação’ de homossexuais perseguida por grupos religiosos, sem ouvir ambas as partes e seguida de uma votação-relâmpago.
Sem repercussão
Enquanto isso, o Centro de Referência Contra a Violência e Discriminação ao Homossexual (CERCONVIDH/DDH-RJ), fruto da construção coletiva do movimento homossexual brasileiro, embora figure na estrutura administrativa do governo do Estado do Rio, luta bravamente para suprir a carência de recursos de toda ordem e seguir garantindo a prestação de seus serviços, sendo o Disque Defesa Homossexual o mais conhecido – telefones: (21) 3399-1303/1304. Embora divulgue periodicamente aos veículos de comunicação seus dados estatísticos sobre as múltiplas formas de violência homofóbica que chegam pelas denúncias recebidas, nada é publicado, repercutido, problematizado. Apenas exemplificando, das 150 denúncias recebidas de janeiro até 29/04/2005, 18,66% eram referentes à agressão física, verbal e ameaça, de agressão e de morte; 9,33% tratavam-se de denúncias de homicídio.
O Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam), da UERJ, por seu turno, publica os resultados de suas pesquisas em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Nupacs/UFRGS), com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC/Ucam) e o Nuances – Grupo pela Livre Expressão Sexual, sobre o mesmo assunto, realizadas entre os participantes das Paradas GLBT.
Os dados apresentados pelos integrantes da de Porto Alegre em 2004 e divulgados em 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho Gay, informam que dos 368 ouvidos, ‘63,7% declararam ter sido vítimas de alguma forma de violência, sendo que destes 64,8% sofreram agressão verbal ou ameaça, 16,7% agressão física, 10,6% chantagem ou extorsão, 6,1% violência sexual e 1,9% foram vítimas do golpe conhecido como ‘Boa noite, Cinderela’’. Também não se repercutem esses resultados.
Leque de temas
Em junho, a Anistia Internacional publicou o livro Sex, Love and Homophobia, de Vanessa Braid, onde constata elevação nessa forma de violência, apesar das significativas vitórias do movimento mundial dos homossexuais em prol de uma cidadania digna. Uma das novidades que o estudo apresenta é o reconhecimento de que as lésbicas e mulheres bissexuais são as maiores vítimas da intolerância e do preconceito, ao contrário da crença popularmente disseminada. Realidade que a ONG Um Outro Olhar, que luta em prol dos direitos das lésbicas brasileiras, denuncia aos movimentos feminista e homossexual há vinte e cinco anos.
Porém, reproduzindo a mesma ótica, ainda que não deliberadamente, nada disso é percebido como relevante o bastante a ponto de suscitar seja pautada a forma com que a mídia (não) discute o tema. A consulta no mecanismo de busca interno desse Observatório, através da palavra ‘homofobia’, apresenta apenas quatro registros como sendo a totalidade do acervo. Nenhum dos quais, porém, aborda a questão de forma direta e no contexto brasileiro.
Nesse sentido, o artigo do jornalista Alberto Dines tem o condão de acender esperanças de que esta lacuna até aqui presente venha a ser em breve preenchida, ampliando o leque de temas através dos quais monitora ‘o desempenho da mídia brasileira’. Com o que estará igualmente aprofundando e ampliando sua consolidação como um legitimado monitorador da qualidade da prestação desse serviço público.
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Mestranda em Política Social pela UFF