Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os discursos da notícia: posição crítica ou alinhamento?

Em 1915, o proprietário do jornal O Estado de S. Paulo, Júlio Mesquita, afirmava em seu programa editorial as diretrizes do que seria o bom jornalismo, dentre as quais, ‘a prática do jornalismo de opinião, com participação apartidária na política nacional’.

Não é difícil compreender o motivo do estranhamento de quem lê, no texto, a associação entre ‘apartidarismo’ e ‘jornalismo de opinião’ feita por Mesquita. Principalmente, se notarmos que a defesa que ele faz na verdade pode ser equiparada a uma defesa da imparcialidade jornalística.

Mas o estranhamento diante da associação entre imparcialidade e jornalismo de opinião só é possível porque, a partir de meados do século 20, estabeleceu-se no Brasil que imparcialidade é algo inerente ao jornalismo de informação, constituindo-se a partir daí uma ‘memória futura’ do que seriam as qualidades inerentes do jornalismo. O que merece uma breve explicação histórica.

Imparcialidade e ‘neutralidade’

Nos anos 20 e 30, nos EUA, e nos anos 50, no Brasil, surge o que uma vez chamamos de ‘objetivismo jornalístico’, uma composição discursiva que previa a possibilidade de o jornalista ater-se de forma pura e neutra aos fatos. Tratava-se da mais apaixonada defesa da ‘transparência da linguagem’, já vista em um campo profissional, só comparável ao neopositivismo de Carnap, do qual, aliás, é de certa forma contemporânea e tributária.

A diferença, no entanto, é bem grande, na medida em que o principal autor do Círculo de Viena está tratando de ‘linguagem lógica’, formalizada. O jornalista trabalha com linguagem natural e a constituição de sentidos nesta se dará sempre histórica e ideologicamente (ideologia aqui vista apenas como espaço de relações de poder), o que chamamos tecnicamente de ‘opacidade’.

O que importa, neste momento, é apenas afirmar que a chamada imparcialidade na era do discurso objetivista tornara-se tão somente ‘neutralidade’, a mesma do físico diante de um átomo, embora hoje já se saiba que nem no laboratório é possível esta tal neutralidade.

‘Jornalismo crítico’

Como naturalizamos o sentido de ‘imparcialidade’ enquanto ‘neutralidade’, ‘esquecemos’ (outro efeito discursivo sobre a memória) que encontramos nos tribunais um exemplo de imparcialidade – a jurídica – que é pautada na opinião e no veredicto e que tem como pressuposto a não consonância a priori com interesses do réu ou da vítima.

Se, por um lado, a ‘imparcialidade lógica’, ou neutralidade, nos é bastante improvável, a imparcialidade jurídica parece ser uma prática saudável, embora não obrigatória, visto que a party press é praticada em países de jornalismo avançado, mas com o cuidado ético de explicitar esta opção ao leitor.

Ganharíamos muito se a imprensa deixasse a dubiedade para os humoristas. Ou assume a postura de ‘imprensa partidária’, alertando de forma digna e ética a decisão ao leitor, ou dobra-se às necessidades de uma real ‘imparcialidade jurídica’, o que significa não estar ligada a priori a interesse de facções partidárias, mas sim, à defesa da sociedade.

É esse compromisso com o apartidarismo que nosso jornalismo, especialmente o político, poderia assumir, caso realmente seja da sua intenção pôr em ação o que a Folha de S. Paulo denominou certa vez como ‘jornalismo crítico’. Se tomarmos o jornal que se auto-intitula o mais plural do gigante Estado brasileiro, veremos que a Folha de S. Paulo está enfrentando algumas dificuldades para desalojar-se de uma posição partidária e assumir definitivamente a posição crítica, a começar pela má compreensão do que seja ‘crítica’.

Resultados nada animadores

Um posicionamento crítico, no sentido que a Folha deseja atribuir, é necessariamente um posicionamento não alinhado. Ao se alinhar a uma das facções políticas, perde-se a condição de crítica (enquanto ‘discernimento’), visto que o argumento fica embotado, viciado.

Em outras palavras: o alinhamento político, seja a posições do governo (a famosa imprensa chapa branca), seja a posições da oposição (que eu chamaria de chapa branca de oposição, apenas), significa a falência de qualquer projeto crítico, e o grande prejudicado (na medida em que quase não temos veículos que o pratiquem verdadeiramente) é a população, que estaria melhor se contasse com veículos críticos às duas posições, governo e oposição.

Para dar um exemplo do que digo neste pequeno texto, remeto ao comentário de 27 de dezembro último, do ombudsman do jornal, o sempre equilibrado Mário Magalhães, sobre o incêndio (e as culpas) no Hospital das Clínicas:

‘A Folha não traz declarações do secretário Barradas Barata… Nem do governador Serra. Aparentemente, nem foram procurados para se pronunciar sobre a situação do hospital. Eles não são acusados de nada (…), mas é dever do jornal cobrar a palavra deles. Chama atenção o fato de a Folha não ter tomado nem a providência mais elementar, consagrada pelo próprio jornal, de investigar as despesas públicas… A Folha preconiza, não custa lembrar, um jornalismo crítico‘ (grifo meu).

Se a Folha esqueceu de tomar uma posição crítica também em relação ao governo do Estado – lugar de oposição ao governo federal –, pode ser ou não um caso singular ou uma prática. E a melhor maneira de não ser injusto é fazer o acompanhamento rigoroso da cobertura de outros fatos de importância. Infelizmente, os resultados, pelo visto até agora, não são nada animadores. A atenuante vem do fato de que a Folha não está sozinha nesse barco. Muito pelo contrário.

Uma sábia idiotia

De antemão, devem-se discutir os prejuízos que o alinhamento traria ou traz à legitimidade dos grandes jornais como mediadores do espaço público, do espaço de discussões, do espaço de auto-compreensão da sociedade. Sempre atentos ao fato de que, ao contrário dos países europeus, nossos jornais não assumem mais explicitamente suas vinculações e opções partidárias.

Hoje, a internet vem sendo bem mais plural porque dá acesso direto a quase todas as vozes ideológicas (embora não a todos os indivíduos), por mais incômodas que sejam. Na rede, realmente encontramos a polifonia possível e não somente a aparente, como parecem nos presentear os jornais. Mas a internet é ainda coisa de minoria.

Quando alinhados (ao governo ou à oposição), os jornais acabam tentando apagar o outro sentido possível. Nenhuma sociedade é realmente rica sem, se me permitem, uma doxa-diversidade. Isso não tem nada a ver com ouvir ‘os dois lados’, uma dessas regrinhas jornalísticas que fazem pensar pouco (por que dois e não cinco?). Até porque no próprio texto se pode desqualificar um dos lados, uma das estratégias do que denominamos gerenciamento de opinião (seleção e valoração hierárquica de depoimentos).

Isso tem a ver, sim, com pôr em confronto o maior número possível de idéias díspares sobre as principais questões de nossa sociedade. Mais do que um ato responsável, esta atitude representaria um ato de coragem e de humildade diante da diversidade de opinião.

Mas não é o que acontece. O gerenciamento da opinião, a busca quase neurótica pela monofonia (entronização de uma única voz ideológica) e pela monossemia (sentido único) parece ser a patologia própria da nossa imprensa, principalmente dos grandes jornais.

É graças a esse gerenciamento que o enunciado ‘Especialistas criticam…’ quase sempre aparece no texto para simplesmente ilustrar a posição do veículo. É também graças a essa estratégia que os jornais quase sempre recorrem aos mesmos especialistas para cada assunto. Quando um veículo opta pelo depoimento dos mesmos especialistas, ele compõe elenco. E, aparentemente, ‘elenco’ não é algo que deva fazer parte das vozes da notícia. Tem a ver com os astros que vão compor uma história de ficção.

O que os grandes jornais não perceberam, no entanto, é que esse alinhamento vem fomentando seus próprios pontos de resistência. Isso é quase uma lei social: poder nenhum viverá sozinho, senão acompanhado da sua negação, o mesmo valendo para os discursos do poder.

Diz um provérbio chinês (parece que há um provérbio para cada chinês sobre a Terra) que ‘Quando o sábio aponta para a Lua, o idiota olha para o dedo‘. Ou bem somos idiotas ou, por precaução, é necessário fazer-nos de idiotas, olhando o primeiro o dedo, para depois compreender a escolha dos astros.

A dissonância entre as pesquisas de opinião e a vontade de poder da imprensa mainstream vem mostrando um pouco dessa sábia idiotia. Se a imprensa fosse menos alinhada, possivelmente a população poderia ser mais crítica.

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Lingüista e professor de Jornalismo