Os partidos de direita e conservadores saíram reforçados nas eleições para o Parlamento Europeu e papi Sílvio Berlusconi nem sequer foi chamuscado pela publicação no respeitado diário espanhol El País das fotos das farras que promove em sua mansão na Sardenha (ver aqui).
O fotógrafo italiano Antonello Zappadu não é um paparazzo, é um correspondente de guerra, ultimamente engajado na cobertura da luta do governo colombiano com as FARCs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Não estava interessado em escândalos sexuais (tanto assim que cobriu os rostos dos convivas que não ocupam funções públicas), deixou à mostra apenas o pênis ereto que se supõe ser do ministro tcheco Mirek Topolanek, um reacionário amigo de Bush e Berlusconi. Seus inabaláveis méritos físicos correram o mundo no último fim de semana e a sua explicação desvenda o estado de espírito que hoje domina a Europa: ‘Trata-se de uma fotomontagem socialista’.
Zappadu pretendia denunciar as falcatruas do capo italiano que utiliza recursos públicos e inclusive aviões do Estado para seus bacanais. Estas fotos jamais poderiam ser publicadas na Itália: o país está dominado pelos tentáculos de Berlusconi, a justiça local seria facilmente cooptada a condenar um jornal italiano.
Se o fotógrafo residisse na Itália seria liquidado misteriosamente por algum mafioso. Zappadu vive na Colômbia e declarou que tem mais medo de Il Cavaliere do que de qualquer chefão do narcotráfico.
Dois inimigos
A publicação das fotos por El País dois dias antes das eleições européias aparentemente não prejudicou a direita italiana. Berlusconi passou incólume pelo Noemigate, o escandaloso romance com a amiguinha de 18 anos (que o chama de papi) Noemi Letízia, e culminou com o seu divórcio.
Estamos assistindo a um novo Renascimento – o dos caudilhos. De esquerda como de direita. O chamado Ocidente (que inclui o Velho e o Novo Mundo) não está interessado em valores morais, as classes médias estão viradas para dentro, preocupadas exclusivamente com suas entranhas, seus vinhos, sua glutonia e sua sobrevivência. Suas idéias cabem no Twitter e por meio dele fabrica-se o teflon que torna os caudilhos tão queridos e impermeáveis aos escândalos.
A recessão serviu aos facínoras que tomaram de assalto o poder nos anos 20 e 30 do século passado. Outra recessão, talvez ainda mais forte, poderá produzir caudilhos ainda mais perigosos – os inofensivos, engraçadinhos, futebolistas. Na véspera das eleições, Berlusconi tranqüilizou os italianos garantindo que o atacante Kaká não trocaria o Milan pelo Real Madrid. Mas o craque trocou.
O caudilho tem dois formidáveis inimigos na melhor imprensa européia: o conservador The Economist e o progressista El País. Os dotes do tcheco Topolanek são mais úteis.
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A coisa Berlusconi
José Saramago (*)
Reproduzido do blog do autor, 8/6/2009
Este artigo, com este mesmo título, foi publicado ontem [7/6] no jornal espanhol El País, que expressamente mo havia encomendado. Considerando que neste blogue fiz alguns comentários sobre as façanhas do primeiro-ministro italiano, estranho seria não recolher aqui este texto. Outros haverá no futuro, seguramente, uma vez que Berlusconi não renunciará ao que é e ao que faz. Eu também não.
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Não vejo que outro nome lhe poderia dar. Uma coisa perigosamente parecida a um ser humano, uma coisa que dá festas, organiza orgias e manda num país chamado Itália. Esta coisa, esta doença, este vírus ameaça ser a causa da morte moral do país de Verdi se um vómito profundo não conseguir arrancá-la da consciência dos italianos antes que o veneno acabe por corroer-lhes as veias e destroçar o coração de uma das mais ricas culturas europeias. Os valores básicos da convivência humana são espezinhados todos os dias pelas patas viscosas da coisa Berlusconi que, entre os seus múltiplos talentos, tem uma habilidade funambulesca para abusar das palavras, pervertendo-lhes a intenção e o sentido, como é o caso do Pólo da Liberdade, que assim se chama o partido com que assaltou o poder. Chamei delinquente a esta coisa e não me arrependo. Por razões de natureza semântica e social que outros poderão explicar melhor que eu, o termo delinquente tem em Itália uma carga negativa muito mais forte que em qualquer outro idioma falado na Europa. Foi para traduzir de forma clara e contundente o que penso da coisa Berlusconi que utilizei o termo na acepção que a língua de Dante lhe vem dando habitualmente, embora seja mais do que duvidoso que Dante o tenha utilizado alguma vez. Delinquência, no meu português, significa, de acordo com os dicionários e a prática corrente da comunicação, ‘acto de cometer delitos, desobedecer a leis ou a padrões morais’. A definição assenta na coisa Berlusconi sem uma prega, sem uma ruga, a ponto de se parecer mais a uma segunda pele que à roupa que se põe em cima. Desde há anos que a coisa Berlusconi tem vindo a cometer delitos de variável mas sempre demonstrada gravidade. Além disso, não só tem desobedecido a leis como, pior ainda, as tem mandado fabricar para salvaguarda dos seus interesses públicos e particulares, de político, empresário e acompanhante de menores, e quanto aos padrões morais, nem vale a pena falar, não há quem não saiba em Itália e no mundo que a coisa Berlusconi há muito tempo que caiu na mais completa abjecção. Este é o primeiro-ministro italiano, esta é a coisa que o povo italiano por duas vezes elegeu para que lhe servisse de modelo, este é o caminho da ruína para onde estão a ser levados por arrastamento os valores que liberdade e dignidade impregnaram a música de Verdi e a acção política de Garibaldi, esses que fizeram da Itália do século XIX, durante a luta pela unificação, um guia espiritual da Europa e dos europeus. É isso que a coisa Berlusconi quer lançar para o caixote do lixo da História. Vão os italianos permiti-lo?
(*) Escritor