A realização de uma conferência pública possibilita um planejamento participativo das políticas de gestão. Através dessa mobilização, que pode envolver diversas etapas nos municípios, estados e federação, o governo convida os cidadãos a dar suas propostas e discutir os desafios de um determinado campo social. No Brasil, as conferências datam de 1941, quando aconteceu a primeira Conferência Nacional de Saúde. Nesses anos, muitos avanços foram registrados, como a criação do Sistema Único de Saúde e do Programa Saúde da Família.
No governo Lula, o processo de planejamento participativo ampliou-se para outras áreas como juventude, mulheres, direitos humanos, segurança, meio ambiente, criança e adolescente e cultura. A caixa de pandora, no entanto, permaneceu intocável nos sete últimos anos. Discutir políticas públicas para a comunicação continuou um assunto indigesto, principalmente, para o ministro e ex-repórter da Rede Globo Hélio Costa, representante da ala mais conservadora da composição governista. ‘O Brasil não precisa conferência para democratizar a comunicação porque já está democratizada’, afirmou em 19 de março último.
Como resposta ao descaso, movimentos sociais aglutinaram forças em torno do clamor pela democratização da comunicação e pró-conferência. Em 23 estados brasileiros, foram criados comitês para esse fim. Pressões, iniciadas através de articulações com ministros como Tarso Genro, Gilberto Gil, Dilma Rousseff e Franklin Martins, chegaram ao presidente Lula no Fórum Mundial do Pará. ‘Ainda em 2009 teremos uma Conferência de Comunicação’, comprometeu-se o governante. Entre improvisos e má-vontade dos gestores públicos, como os tucanos José Serra e Yeda Crusius, que não convocaram a etapa estadual, todos os estados brasileiros realizaram suas conferências e elegeram seus delegados para a Confecom que começou no dia 14 de dezembro. Durante esse processo, a caixa de pandora começou a abrir e foram reveladas as disputas e articulações em torno das políticas públicas de comunicação.
Evitar controle editorial
A retirada dos empresários dos grandes conglomerados midiáticos, reunidos em entidades como a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) e Associação Nacional dos Jornais (ANJ), demonstrou sua total intransigência para o diálogo. Esses empresários só aceitam discutir a regulamentação digital porque, para eles, o mercado já garante a democracia da comunicação nas mídias analógicas e qualquer restrição compromete a liberdade de expressão. A lei do mais forte que impera nesse mercado garante os privilégios desses conglomerados.
Já as empresas de telecomunicações, lideradas pela Telebrasil, e a associação dos conglomerados de radiodifusão nanicos (Bandeirantes e Rede TV!), representadas pela Associação Brasileira de Radiodifusão (Abra), querem também a regulamentação das mídias digitais e ficaram na Confecom para defender isso. No entanto, os objetivos dessa legislação para a Abert e para a Abra-Telebrasil são totalmente divergentes. Enquanto os empresários dos grandes conglomerados desejam uma legislação para impedir as empresas de telecomunicações de produzir conteúdo, a Abra-Telebrasil reivindica a possibilidade de convergência digital. Assim, as telefônicas podem ampliar sua área de atuação no mercado distribuindo conteúdo audiovisual para mídias digitais, como celulares e TVs a cabo.
As redes nanicas buscam sua sustentabilidade evitando serem engolidas pelos grandes conglomerados. Para isso, essa nova regulamentação dá condições de realizar acordos comerciais com as empresas de telecomunicações. Essa composição já foi uma conquista para os empresários da comunicação. A Conferência Nacional da Comunicação ficou, assim, para segundo plano, pois o lobby legislativo se tornou a prioridade. Por isso, a sociedade civil empresarial ameaçou, nas vésperas da abertura da Confecom, retirar-se, caso não tivesse o voto de 60% dos delegados e, pelo menos, um representante de cada segmento nos Grupos de Trabalho. A prioridade passou a ser evitar qualquer ameaça à liberdade de mercado pelo controle social. A Abra, entretanto, adotou, num segundo momento, a postura de negociar com os diversos segmentos, costurando apoios para alguns de suas propostas e conquistando a simpatia do governo federal. A pauta de proposta da Abra se estendeu para evitar qualquer controle editorial e permitir a publicidade de qualquer produto que não tenha sua venda proibida, como por exemplo, o cigarro.
Três grandes avanços
Do outro lado, a sociedade civil não empresarial defende uma abrangente diversidade de propostas sendo sintetizadas em controle público, nova legislação para a radiodifusão, lei da imprensa, produção de conteúdo regional e plural, regulamentação profissional do jornalismo e fomento à comunicação comunitária e à educomunicação. A criação de conselhos municipais, estaduais e federal de comunicação e do Conselho Nacional de Jornalismo são as principais reivindicações para o controle público, abominado pelos empresários. Essa participação social se constitui uma forma de possibilitar a discussão e averiguação do papel social das mídias. A fiscalização é outro clamor para simplesmente garantir o cumprimento pelas emissoras das leis que proíbem abusos como a formação de oligopólios. A nova legislação para radiodifusão reivindica principalmente uma revisão nos sistemas de outorgas para evitar a propriedade cruzada, o monopólio em cruz e a concentração horizontal.
A organização das concessões com paridade entre a quantidade de emissoras públicas, privadas e estatais completa as propostas legislativas. Liderada pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a categoria luta por uma nova Lei da Imprensa que garanta o direito de resposta; a pluralidade de versões em matérias controversas; o direito do jornalista de não assinar matéria; a obrigatoriedade dos jornais em oferecer serviço de atendimento ao público; a implantação de penas de advertência moral ao invés de criminais; regras de transparência sobre os donos das mídias; a responsabilidade solidária das empresas de comunicação em todos os delitos e a delimitação das penas da lei de imprensa às condições financeiras dos condenados. Para completar essa qualificação do jornalismo, a Fenaj propõe a obrigatoriedade do diploma a fim de formar profissionais com capacidade de se tornarem mediadores sociais para possibilitar a missão de promoção do debate público com visibilidade para as diferentes vozes.
A produção de conteúdo que respeite a regionalidade, a produção independente, o interesse público, a alteridade cultural, a visibilidade das minorias e as finalidades artísticas e educativas das emissoras reúnem as preocupações da sociedade civil. Já as propostas de fomento à comunicação comunitária reivindicam um fundo público que dê sustentabilidade aos projetos, uma legislação que viabilize o serviço de radiodifusão comunitária com aumento de canais e potências e uma Secretaria específica que agilize os processos de autorização. A comunicação precisa transformar-se em políticas de cultura que promova a inclusão social. A educomunicação cumpre, neste contexto, o papel de promover a produção midiática nas escolas; de estimular a leitura crítica da mídia, através principalmente de observatórios e fóruns e de promover a educação nos meios de comunicação.
A Confecom já registra três grandes avanços. Primeiro, abriu oficialmente a caixa de pandora dos interesses ocultos da comunicação. Reivindicações que antes se conheciam em especulações agora estão em relatórios, moções e propostas. Segundo, essa abertura instigou o debate público sobre a democratização da comunicação. Esse assunto, que anteriormente estava restrito para poucos pesquisadores, encontra-se ampliado em diversos grupos. Terceiro, o início do diálogo entre empresários, poder público e movimentos sociais criou um cenário nunca imaginado: o debate público e plural sobre políticas de comunicação.
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Jornalista, mestre em Comunicação pela UFPE, professor de ensino superior e assessor de comunicação