Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os limites do dever de informar

A cena, que se seguiu aos três assassinatos de torcedores, era dramática: um cavalheiro não identificado, de costas, informava a um repórter de TV (dos bons) que a guerra estava declarada: o negócio era atacar e matar integrantes de outras torcidas organizadas, ou simplesmente torcedores de outros times.

O repórter fez o que devia: gravou a entrevista e divulgou-a. Mas cabe aí uma discussão: terá o repórter feito tudo o que deveria?

Se o entrevistado informou que sairia daquela entrevista com o objetivo de cometer crimes de agressão e morte, não deveria o repórter, como qualquer cidadão, chamar a polícia? Este colunista não tem uma posição firmada – exceto a de que o tema precisa ser discutido. Quando é que um jornalista, sabendo da intenção criminosa de um entrevistado, deve limitar-se a reportá-la?

Vamos um pouco mais longe: ao entrevistar aquele cavalheiro ocultando sua identidade, não estará a imprensa ajudando-o em seus intuitos de agredir e matar, impedindo que os cidadãos ameaçados o reconheçam e evitem sua presença?

Imaginemos que aquele cavalheiro da entrevista efetivamente mate alguém e seja flagrado por alguma câmera. Caberá ao jornalista que o entrevistou, e que é um dos poucos a conhecer sua identidade, denunciá-lo? Ou a posição especial do repórter, que lhe permitiu saber das intenções do criminoso, o impedirá de se manifestar – como um padre, que sabe das coisas em função do segredo do confessionário e não as divulga? Este é um bom debate – o dos limites da ética.



Bandido é bandido…

O episódio das fitas supostamente gravadas com telefonemas de pessoas envolvidas no caso Santo André revela um comportamento esquisitíssimo de nossa imprensa. Primeiro, por tratar um criminoso condenado, o juiz João Carlos da Rocha Mattos, como se merecesse fé pública; segundo, por dar crédito a fitas gravadas ilegalmente, sob falsos pretextos, e que a Justiça mandou destruir. Rocha Mattos manteve cópias em seu poder (ou supostas cópias, quem há de saber?), sabe-se lá com que intenções, já que legalmente não poderia utilizá-las. Se o juiz, preso e condenado, consegue colocar suas fitas em circulação, seus propósitos ilegais estarão sendo realizados – e com a colaboração da imprensa.



…e vice-versa…

A utilização de Rocha Mattos pela imprensa, entretanto, é mais grave do que parece. O juiz foi condenado por vender sentenças – o que significa que, por sua ação, deixa bandidos soltos e põe inocentes na cadeia. E é gente como essa que, em determinado momento, vai monitorar o nosso trabalho de jornalistas?

Este colunista não se lembra de ter lido em lugar algum que o juiz Rocha Mattos, embora cumprindo pena, continua recebendo integralmente seu salário – digamos, uns 22 mil reais mensais.

A propósito, uma pergunta que não foi feita: como é que o juiz, preso em Tremembé, no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, foi para Brasília? Avião de carreira? Quem pagou sua passagem? Jatinho? Jatinho de quem?



…e é sempre assim

Outro caso curioso é o do mensalão. Para a imprensa, quem fala a verdade é exclusivamente o réu confesso. À frente de todos, Roberto Jefferson; depois dele, Marcos Valério e Delúbio Soares. Parece que, como Santo Antônio, todos têm a língua isenta de mentiras. A pilantragem se resumiria às mãos e aos bolsos.

Já quem não é réu confesso sofre um massacre. Este colunista jamais votou em José Dirceu, embora os esparsos contatos que com ele manteve tenham sido cordiais. Dirceu vem apanhando tanto da imprensa que anexo a esta coluna um texto favorável a ele. O autor é Eduardo Guimarães, contumaz missivista de jornais, duro crítico da imprensa (e que odiará ler minha opinião sobre ele: é o mais petista dos petistas). Eduardo Guimarães, num só artigo, defende Dirceu e o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Vale, especialmente por divergir do pensamento único. Eis o texto:

Aconteceu na Venezuela… e no Brasil

Eduardo Guimarães

A história brasileira poderá vir a registrar um momento de vergonha suprema para o país se se concretizar a cassação do mandato do deputado José Dirceu. Daqui a uma centena de anos, quando a bruma das paixões políticas tiver se dissipado, os historiadores irão rever o processo de tentativa de destruição da força política mais representativa de amplos setores desta sociedade que é o PT, e ficarão perplexos. Não entenderão como foi possível condenar sumariamente um líder político da expressão de Dirceu sem uma única prova, enquanto que líderes de outras facções – Eduardo Azeredo, por exemplo –, contra os quais havia tais provas, foram poupados.

Num futuro mais distante, historiadores verão as imagens de tribunais de exceção disfarçados de sessões de entretenimento – como por exemplo o programa do jornalista-humorista-tucano Jô Soares – e denunciarão, tarde demais, o tragicômico engodo a que foi submetido este país. Procurarão entender como foi possível que num país dito democrático o direito de defesa de homens públicos fosse ignorado de forma tão ditatorial, procurarão entender como foi possível suprimir a presunção da inocência vigente nas democracias e como conseguiram a proeza de tornar provas irrefutáveis as meras opiniões dos adversários dos petistas. Tentarão entender como foi possível implementar, sem o uso da repressão de Estado – o instrumento maior dos censores nas ditaduras –, a censura absoluta aos milhões de brasileiros que divergiram de meia dúzia de empresários do setor de comunicações e de algumas dúzias de leões-de-chácara que se auto-intitulavam ‘jornalistas’.

Os historiadores do futuro assistirão, novamente, o tribunal de exceção em que se constituía o ‘programa’ Jô Soares e ficarão embasbacados quando virem uma mulher chamada Lúcia Hippolito mentir para milhões de telespectadores dizendo que o referendo que manteve no poder o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, foi um recurso ditatorial dele para permanecer no poder, ele que sofreu tentativa de golpe de Estado e que enfrentou democraticamente um referendo que foi convocado por seus opositores… e venceu.

Não tenho dúvidas de que os historiadores do futuro registrarão as tentativas de golpe de Estado das mídias da Venezuela e do Brasil como marcos no processo de libertação das massas latino-americanas. As derrotas dos senhores feudais midiáticos nos dois países terá feito outros povos desta região do mundo se levantarem contra a opressão dos senhores feudais em geral. Os negros pobres e miseráveis, a partir das derrotas das mídias de Brasil e Venezuela, serão levados às universidades; o dinheiro público terá passado, pela primeira vez na história, a ser distribuído em larga escala entre aqueles que não tinham nem o que comer; as massas de pobres e miseráveis, então, derrotarão as classes média e alta e a mídia em eleições livres. E os nomes dos ditadores midiáticos e seus leões-de-chácara serão inscritos desonrosamente na história.

Estou sonhando? Isso é porque a maioria de vocês não viu o que a mídia da Venezuela fez com Chávez e, apesar disso, ele a derrotou. Perto da venezuelana, a mídia brasileira está sendo ‘democrática’ nos ataques ao governo que se opõe a seus patrões, a elite. É, pois, totalmente possível derrotar a mídia. Eu vi isso acontecer na Venezuela e se Deus quiser, com exceção do derramamento de sangue que houve no país vizinho, verei acontecer o mesmo no Brasil.



Jornalista de sucesso

Maurício de Sousa, o mais bem-sucedido criador de histórias em quadrinhos do Brasil, está completando 70 anos. Vale a pena recordar como começou sua carreira: era repórter de polícia da Folha de S.Paulo, e fazia plantões no DEIC, a principal delegacia de São Paulo. Nas horas vagas, desenhava. Rapidamente o jornal descobriu que seu talentoso repórter policial era mais talentoso como desenhista. Maurício foi um sucesso instantâneo, mas quase perdeu o bonde: cansado de receber as tirinhas no último instante, atrasando o fechamento, o capitão da Folha, Octavio Frias de Oliveira, decidiu demiti-lo. Maurício fez uma contraproposta: deixaria de ser empregado e venderia tiras à Folha. Frias topou; e Maurício virou, além de desenhista, empresário do desenho. Nunca mais parou de crescer.



Peculiaridades

1. Por que a Land Rover põe todos os seus anúncios no caderno de Política dos jornais? A decisão de parar de produzir no Brasil faz parte da Economia; as características dos modelos importados da Inglaterra caberiam melhor no caderno de Automóveis. Política, só mesmo se concluírem que o Land Rover de Sílvio Pereira foi o fato mais importante que aconteceu na empresa.

2. Este colunista adora piadas pesadas, insinuações bem formuladas, duplos sentidos. Mas existe lugar e hora para tudo. Ver um anúncio na internet, dirigido nominalmente a cada leitor, com a frase ‘Troque seo óleo com Valéria Souza!’ é chocante. Não é engraçado: é grosseiro. E o redator bem que poderia dar uma olhadinha no dicionário. ‘Seo’, com todo o respeito, é a mãe.

3. Maravilhoso aviso num hotel de Brasília: ‘Para melhor atendê-lo, a piscina está interditada’.

4. Deve ser coincidência, claro. Mas o café que se serve no Senado, produzido em Londrina, Paraná, é o Café Odebrecht. E aí vem o pior: segundo a caixa, o produto é embalado em ‘auto vácuo’. Não deve ser vácuo automático: o mais provável é que seja embalado em ‘alto vácuo’.



Socialismo ídiche

A sede de tudo estava no Bom Retiro, na Casa do Povo, um reduto socialista judeu que cultivava o ídiche (língua derivada do alemão, falada pelos judeus da Europa) e não o hebraico (a língua falada em Israel) – sim, este também foi um tema de grandes debates na comunidade judaica. Ali estava também o TAIB, Teatro de Arte Israelita Brasileiro, berço de grande número de atores, atrizes, diretores e roteiristas. Eram tempos em que a esquerda mundial dialogava com a esquerda judaica e considerava que, entre regimes feudais, religiosos e absolutistas como os árabes, e um país democrático como Israel, não havia escolha possível. Foi neste ambiente que o ativista socialista José Sendacz, grande orador, elaborou discursos, palestras, teses, entrevistas, sempre tendo como tema o socialismo. Parte da obra dispersa de Sendacz, sempre em ídiche, foi traduzida e reunida em livro, que acaba de ser lançado em São Paulo: Um Homem do Mundo, com comentários de Moacyr Scliar e Luiz Izrael Febrot. Vale a pena.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados