Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os media e a construção da ideia de Direitos Humanos

A problemática que nos impulsionou a escrever este artigo partiu de uma indagação que seguramente não é só nossa: o fato de a mídia dar, de um modo em geral, mais visibilidade a determinados temas em detrimento de outros pode comprometer o entendimento e, por consequência, o comprometimento da sociedade com questões que não estão na iminência de suas (da sociedade) necessidades sócio-políticas e culturais mais imediatas, como o atentado aos Direitos Humanos, por exemplo?

Habermas (2003, p. 221) aponta que ‘enquanto antigamente a imprensa só podia intermediar e reforçar o raciocínio das pessoas privadas reunidas em um público, este passa, agora, pelo contrário, a ser cunhado primeiro através dos meios de comunicação de massa’, ou seja, a imprensa, em determinado momento histórico, assume a função de legitimadora de certas questões, passando a atuar como ‘agenda coletiva’ (SODRÉ, 2002) de interesses pautados pelos preceitos mercadológicos.

Invisibilidade e supervisibilidade

Para ilustrar e, por consequência, possibilitar um melhor entendimento do que nos propomos a discutir, vamos enumerar algumas questões de modo a facilitar o raciocínio de todos:

1. Uma pesquisa realizada em 2004 pela ANDI – Agência de Notícias do Direito da Infância – indica que a maior parte das matérias jornalísticas (24,9%) concernentes aos Direitos Humanos estão relacionadas com segurança, guerra, violência e conflitos armados. Temas como fome, pobreza, exclusão e desigualdade (2,6%), educação (2,2%) e renda, trabalho e desemprego (1,1%) apareceram com menor frequência. A pesquisa analisou 1.315 textos – reportagens, artigos, editoriais e entrevistas – veiculados em 57 jornais de todos os estados brasileiros;

2. No dia 7 de janeiro de 2008, uma família de oito pessoas, incluindo três crianças, é brutamente assassinada em uma pequena cidade do interior do Maranhão, estado mais pobre da federação, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,636. O crime é quase que ignorado pela grande mídia, sobretudo pela televisão;

3. No dia 29 de março de 2008, menos de três meses após o crime maranhense, a menina Isabella Nardoni, filha de uma família de classe média paulista é morta, supostamente pelo pai com auxílio da madrasta, em São Paulo, estado mais rico da federação. O caso ganha grande repercussão nacional;

4. Boaventura de Sousa Santos informa que Richard Falks, escrevendo em 1981 sobre a manipulação da temática dos Direitos Humanos nos EUA pelos meios de comunicação de massa, denuncia a dualidade entre uma ‘política de invisibilidade’ e uma ‘política de supervisibilidade’, citando como exemplo do primeiro a ocultação total, pelos media, das notícias sobre o trágico genocídio do povo maubere em Timor Leste (que ceifou mais de 300 mil vidas), e como exemplo do segundo, a exuberância com que os atropelos pós-revolucionários dos direitos humanos no Irã e no Vietnã foram relatados nos EUA;

Questões econômicas vs. existenciais

5. É necessário dizer que a abordagem feita por Falk se situa na esfera internacional. Contudo, provendo uma analogia com os casos brasileiros, é possível apontar uma co-relação dos procedimentos de supervisibilidade e de invisibilidade, proporcionados pela mídia nacional, com os imperativos econômicos do capitalismo. Ou seja, a exploração, em termos midiáticos, de um caso envolvendo uma família pobre, em um Estado igualmente pobre, por circunstâncias toscas (os assassinos estariam motivados pela existência do valor de dez mil reais em posse das vítimas, o que acabou não se confirmando), em detrimento de um assassinato (igualmente bárbaro, vale ressaltar) de uma menina de família abastada, em um bairro nobre da maior metrópole do país e que é a capital do estado mais rico da federação, rende muito mais em termos de audiência e, por consequência, garante mais lucro a essas empresas. Esse é só um aspecto da questão;

6. Outro aspecto da questão é que, ao ignorar a chacina da família maranhense (invisibilidade) e supervalorizar o assassinato da menina Isabella (supervisibilidade), a grande mídia estaria se eximindo de discutir temas (como o atentado aos Direitos Humanos, por exemplo) que há muito são ignorados pelos centros de poder periféricos do Estado (para usar uma expressão de Foucault) e que são muito bem apontados pela pesquisa à qual nos referimos no primeiro item;

7. No primeiro caso existe uma relação direta entre a forma como o caso se deu e por que ele se deu, ou seja, mortes brutais e a ignorância estatal para com estes indivíduos, ao não prover as necessidades básicas destes, como educação, alimentação, saneamento básico, segurança etc.;

8. No segundo caso a mesma lógica não se verifica. Disso é possível deduzir que a violência que acomete crianças e jovens de um modo em geral nas mesmas condições de Isabella não tem relação (pelo menos em um primeiro momento) com questões econômicas, mas com outras instâncias que sejam elas éticas, morais, espirituais, existenciais, enfim, aquelas situadas fora das instâncias econômicas.

Interesses privilegiados

O resultado dessa postura se reflete diretamente na percepção que a população passa a ter sobre os seus próprios direitos. É o que aponta a pesquisa ‘Lei, justiça e cidadania’ realizada pelo CPDOC da FGV em parceria com o Iser, de 1995 a 1996. Como bem informa Dulce Chaves Pandolfi (1999, p. 48-49) ‘solicitados, por exemplo, a citar três direitos dos brasileiros, a maioria dos nossos entrevistados não foi capaz de fazê-lo’. Segundo a pesquisadora, os direitos políticos apareceram nesta pesquisa em uma hierarquia com apenas 1,6% indicações, mostrando o baixo grau de comprometimento da população com estas questões. No que se refere à questão relacionada a criminalidade, que é o que mais nos interessa nesse momento, indagados sobre a afirmativa de que ‘os bandidos não respeitam os direitos dos outros, por isso não devem ter os seus direitos respeitados’, 63,4% dos entrevistados concordaram com a afirmativa. Embora a pesquisa da ANDI não esteja relacionada à do CPDOC, é possível perceber uma co-relação entre a forma como a mídia aborda a questão dos direitos, em especial os Direitos Humanos e a forma como a população assume como sua uma opinião que não é necessariamente sua, legitimando a postura dos media em uma relação que leva muito estudiosos da comunicação a indagar: quem nasceu primeiro: a mídia ou a opinião pública?

Desde que a venda da parte redacional está em correlação com a venda dos anúncios, a imprensa, que até então fora instituição de pessoas privadas enquanto público, torna-se instituição de determinados membros do público enquanto pessoas privadas – ou seja, pórtico de entrada de privilegiados interesses privados na esfera pública.

Só assim se torna possível entender a indagação que fizemos no início desta discussão.

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Bibliotecário e estudante de Direito, Rio de Janeiro, RJ