Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os pontapés nossos de cada dia

Os cronistas esportivos chamam a cena que abre uma partida de futebol como ‘pontapé inicial’. Não parece emblemático que um espetáculo comece com um pontapé? Já houve um tempo, que infelizmente não é mais o nosso, em que o locutor anunciava: ‘Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo.’

Parece mesmo sintomático que a abertura de uma partida seja o tal pontapé. E olha que, ao pé da letra, o lance inicial nem é lá um pontapé; é um toquezinho leve, simples, singelo até, um passe curtinho de um atleta para outro, de pé em pé, como se fosse de mão em mão.

Pergunte-se a jornalistas, narradores, repórteres, cronistas esportivos e todos que militam nesse esporte: por que não chamam esse ato de ‘abertura’? Por que não ‘toque inicial’? Ou ‘primeiro ato’? Ou ‘ato inicial’? Por que tem que ser pontapé?

Reflitamos: se o toque inaugural, tão leve e inofensivo, carrega toda essa carga negativa, toda essa simbologia de violência, o que se esperar de outros lances, de outras cenas, de outros atos relacionados ao futebol?

‘Coisas do futebol’

Desde cedo, muito cedo, o futebol nos impõe a supervalorização da macheza e da virulência. Antes de a criança entrar na escola, antes mesmo de aprender a ler e a escrever, ela já ouviu (e repetiu) que ‘futebol não é pra moça, futebol é pra macho’.

Crescemos sob chutes, chutões, petardos, pontapés, pancadas, canhões, pauladas. No campo de jogo, seja numa pelada ou em jogo profissional, cospe-se a torto e a direito, xinga-se o juiz, o bandeirinha, o adversário e até mesmo o companheiro.

‘Futebol é assim mesmo!’, dizem todos, ou quase todos, nos rádios, nas TVs, nos jornais, nas revistas, nos portais da internet. E essa frase ecoa nas arquibancadas, nas gerais, nas cadeiras, nas esquinas, nas barbearias, em todos os lugares.

‘Futebol é assim mesmo!’ é a desculpa ampla, geral e irrestrita. Já estamos todos (ou quase todos) acostumados, conformados, resignados, doutrinados, catequizados por essas justificativas, essas desculpas, as tais ‘coisas do futebol’.

E ai de quem se insurge contra as tais coisas do futebol. Pode-se questionar o celibato clerical, pode-se duvidar da palavra presidencial, pode-se questionar o voto obrigatório. Só não se pode querer mudar as tais ‘coisas do futebol’.

Mãos agarram, derrubam, dão socos

Resignados, fazemos ouvidos moucos a mil coisas do futebol, entre elas os cânticos de guerra, os xingamentos, as agressões verbais e um palavrório infestado de preconceitos. Que cronista esportivo se posiciona firmemente contra os xingamentos do campo e da arquibancada?

O que se vê, o que se ouve, o que se lê é sempre a justificativa esfarrapada: ‘Isso é do jogo, é do calor da disputa, cabeça quente.’ Quando a seleção nacional está jogando e um atleta brasileiro ‘mostra a caixa de ferramentas’ (tem revólver lá dentro?), locutores e repórteres exaltam a jogada violenta.

Nós já nos acostumamos com as ‘coisas do futebol’. Achamos ‘normal’ que todos xinguem uns aos outros. O que não pode, sob pena de prisão, é um argentino vir aqui chamar um jogador brasileiro negro de negrito.

No cotidiano, porém, de domingo a domingo, a torcida pode chamar de ‘veados’ os árbitros, os assistentes e os atletas adversários. A equipe adversária pode ser chamada de ‘timinho’ ou ‘time de putas’.

No campo, se pés e bocas são armas de guerra, as mãos não ficam atrás. Mesmo fazendo o sinal da cruz na entrada de campo ou apontando o dedo indicador para os céus, mãos bobas agarram, seguram, prendem, derrubam, bolinam e dão tapas, socos e gravatas.

Uma zona de conflito

Quase sempre criado e disseminado pela crônica esportiva, o palavreado do futebol é carregado de termos e expressões de violência. Tem retranca, time defensivo, time ofensivo, time agressivo. E ela, a violência, se sentindo a dona do pedaço, toda onipotente e onipresente.

Até a regra traz expressões que evocam violência! Tem-se tiro livre, tiro livre direto, tiro livre indireto, tiro de meta, tiro de canto. É tanto tiro que mais parece um tiroteio, um grande bombardeio.

Chutador, artilharia, atirador, artilheiro, matador, confronto direto, eliminação, time ofensivo, campo inimigo, guerra, combate, duelo e ela, a expressão das expressões dessa batalha, o ‘mata-mata’ (que significa jogo eliminatório).

Atos, fatos, cenas, enredos, papéis, personagens, palcos, platéias…quase tudo no mundo da bola gira em torno de um cenário que parece ser de guerra, de violência, combate, batalha. O estádio e seu entorno viram uma zona de conflito, uma Faixa de Gaza a separar duas equipes, duas torcidas, dois exércitos.

Uma loucura, um vício

Há táticas e técnicas, hinos e bandeiras, escudos e uniformes, heróis e vilões. O palco (campo de jogo) é chamado campo de batalha; praça esportiva é praça de guerra. E o papel principal desse filme é destinado ao artilheiro, orgulhosamente intitulado de herói, ídolo, endeusado como matador (outrora chamado goleador).

No vôlei e no basquete não se mata nem se morre. E olha que, ao contrário do futebol, esses dois esportes não admitem empate numa partida, sempre terá que haver o vencedor e o vencido.

O vôlei celebra o maior pontuador, o melhor saque, o melhor bloqueio. O basquete destaca o cestinha; aliás, o ex-atleta Oscar, maior ídolo do basquete nacional, tem o singelo apelido de ‘Mão Santa’.

Pelé, por exemplo, imortalizou uma comemoração de gol que é um soco; um soco no ar, é verdade, mas um soco. Atos e palavras de reis carregam simbologia. Outro ‘rei’, Reinaldo (craque do Atlético Mineiro nos anos 70/80), preferia comemorar os gols com um gesto majestoso – erguia um braço em punho, protestando contra a ditadura militar.

E as torcidas de futebol? Essas formam um capítulo à parte, a começar pelos nomes: Fúria, Mancha, Comando, Facção, Gangue, Falange. Com elas, drogas, cânticos de guerra, bombas caseiras, armas de fogo, caveiras como símbolos. São pequenos exércitos preparados para a guerra de todo domingo.

O universo do futebol é um produto com ‘defeito de fabricação’, um universo cheio de pecados originais, uma metáfora de guerra. O futebol é sangue, suor e violência – seja dentro ou fora dos gramados. É uma loucura, uma cachaça, um vício. E nós somos os culpados – por atos, gestos, palavras e omissões.

Porque poderia ser apenas uma brincadeira, mas, infelizmente, não é, não tem sido.

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Jornalista, baiano, radicado em Brasília, pós-graduado em Jornalismo Literário e Gestão da Comunicação nas Empresa