Por que as políticas de microcrédito ainda engatinham? Como a confusa legislação do terceiro setor impede seu funcionamento? Quais são os motivos para a falta de recursos ao movimento de direitos humanos? O que a CPI das ONGs trouxe para a imagem do setor? Voluntariado corporativo dá certo? Como a mídia retratou o trabalho social realizado por organizações de origem privada? Por que é difícil ser transparente ou avaliar corretamente os impactos das ações?
As perguntas são apenas alguns exemplos dos temas que pautaram a agenda do movimento social no Brasil em 2007 e, invariavelmente, terão destaque no debate em 2008. A pedido do GIFE, especialistas de distintas áreas fazem um panorama sobre os temas mais importantes do ano e avaliam seus impactos futuros.
O Brasil possui uma legislação para o terceiro setor fragmentada, contraditória e conflituosa. A situação torna-se ainda mais negativa quando analisada a conturbada relação entre sociedade civil organizada e governo, que trabalha, muitas vezes, de forma ambivalente, ora concedendo imunidades e isenções, ora cancelando-as de forma arbitrária. Nesse contexto, o advogado Eduardo Szazi, especialista em terceiro setor, fala sobre as principais mudanças na área.
Política de voluntariado
‘Em 2007, o Terceiro Setor viu a implantação do incentivo fiscal ao esporte na esteira do Pan, já com olho nas Olimpíadas e, principalmente, na Copa de 2014. Mostrou que a mobilização nacional em torno de uma causa pode, até involuntariamente, criar condições para que projetos sociais passem a ter melhores instrumentos de financiamento.
Em 2008, veremos se o caso de L. (a adolescente encarcerada com presos adultos no Pará) poderá influenciar o custeio de iniciativas de proteção aos direitos humanos, tão carentes de incentivos e apelo mercadológico para o patrocínio corporativo.
Veremos, também, a criação do portal federal dos convênios, como uma resposta do Executivo à instalação da CPI das ONGs, por iniciativa da oposição. No cenário internacional, também cresceu a preocupação de financiadores, governos e acadêmicos com a accountability do setor, havendo sido editados diversos livros muito instigantes.’
O voluntariado é uma grande oportunidade para a América Latina em termos econômicos, sociais e até políticos. Assim, a pesquisadora das Nações Unidas Taryn Nelson dá início ao informe Legislação Nacional do Voluntariado: Uma Visão Comparativa, de sua autoria, no qual conclui que cada país latino-americano precisa urgentemente de uma política nacional de voluntariado.
Consistência e profissionalização
No Brasil, as práticas de cooperação têm ganho fôlego, principalmente no interior das empresas. Especialmente para o redeGIFE, a pedagoga Telma Sobolh, presidente do Departamento de Voluntários da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein, fala sobre a importância do tema.
‘A competitividade do mercado globalizado transformou de maneira significativa a gestão de pessoas no mundo coorporativo. O fator humano tornou-se ferramenta eficaz para enfrentar um ambiente constante de renovação, caracterizado por complexidade e incerteza elevadas. Em meio a isso, a realidade do voluntariado é impactada por essa onda de mudanças.
Missão, visão e valores do voluntariado prosseguem intactos. Ética, integridade, solidariedade, compromisso e respeito às diferenças individuais continuam integrando a cartilha pela qual rezam essas pessoas. Hoje, no entanto, não basta ter boa vontade com a causa. Discutem-se formas de gerenciamento, eficiência, aplicação de recursos. A promoção do voluntariado como estratégia empresarial exige, portanto, consistência, coerência e profissionalização.’
Fundações comunitárias
No cenário internacional, assim como no Brasil, cresce o interesse pelas fundações comunitárias. Fundações comunitárias são organizações da sociedade civil que atuam em uma base territorial definida, articulam investimentos de uma ampla gama de investidores, são geridas por representantes da comunidade local e criam mecanismos de sustentabilidade que permitem investimentos locais de longo prazo. Lucia Dellagnelo, fundadora e coordenadora-geral do ICom-Instituto Comunitário Grande Florianópolis, traz um panorama sobre o tema:
‘O crescente interesse pelas fundações comunitárias pode ser atribuído a diversos fatores, mas no caso do Brasil parece estar associado à sua capacidade de articular e potencializar investimentos em uma determinada comunidade.
Diante da fragmentação e fragilidade institucional que predominam no terceiro setor brasileiro, a criação de uma plataforma institucional que permita articular os recursos técnicos e financeiros torna-se atraente para investidores e para pequenas organizações comunitárias. Além do mais, as fundações comunitárias, através de seus fundos de sustentabilidade, permitem que os investimentos realizados sejam replicados ao longo do tempo, criando assim autonomia em nível local’.
Empresa e sociedade
‘Organizações devem deixar de ter uma visão romântica sobre sua história e perceber que a memória é um diferencial estratégico para sua gestão.’ A conclusão da fundadora e diretora do Instituto Museu da Pessoa, Karen Worcman, evidencia quão benéfico podem ser os investimentos na criação de centros de memória em empresas, institutos e organizações não-governamentais.
Quem argumenta sobre o tema é a gerente de Projetos Sociais da Fundação Bunge, Cláudia Calais.
‘Investir em preservação patrimonial – por meio dos centros de documentação e memória, mais do que a preservação da história da corporação, por meio de relatos de funcionários, protótipos de produtos, imagens e publicações – significa investir estrategicamente na qualificação dos negócios e na legitimação da relação da corporação com a sociedade. Nestes espaços estão organizadas as mediações entre a empresa e a sociedade e a história da organização, ali preservada, colabora com os gestores na definição de futuros rumos do negócio.’
Prioridade, abrangência e qualidade
Para Veet Vivarta, secretário-executivo da Agência de Notícias pelos Direitos da Infância (Andi), os jornalistas têm melhorado o seu trabalho na cobertura de temas sociais. No entanto, ele afirma que ainda há muito trabalho a ser feito:
‘Em termos de espaço editorial, a cobertura que a imprensa brasileira dedica às questões sociais e ambientais seguiu, em 2006, a tendência de expansão que vem se consolidando ao longo dos últimos 15 anos. Em especial – mas sem pretensão de esgotar a lista – é possível destacar a atenção dirigida pelos veículos às áreas de educação, violência, enfrentamento das desigualdades e mudanças climáticas. Esse importante avanço do jornalismo tende a encontrar limites, entretanto, em pelo menos três aspectos:
Prioridade: com freqüência a agenda sócio-ambiental é tratada como secundária, se comparada aos assuntos de cunho econômico e político; abrangência: alguns focos temáticos específicos ainda encontram dificuldade em garantir presença na pauta; qualidade: faltam profissionais devidamente capacitados para lidar com a complexidade de determinadas questões.’
Recursos não se potencializam
A filantropia familiar é um elemento tradicionalmente existente na sociedade brasileira. Em depoimento, o presidente do Instituto de Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), Marcos Kisil, explica como essa cultura está em modificação.
‘Embora venha conseguindo reduzir suas desigualdades sociais, conforme aponta o Relatório de Desenvolvimento Humano 2006 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o país ainda ocupa a décima posição entre os países mais desiguais do mundo. Assim, falar de investimento social familiar é de fundamental importância para o desenvolvimento nacional, desde que esses recursos sejam colocados de forma inteligente, buscando o benefício público.
No investimento social familiar, identificamos que ele ainda não é valorizado como um bem da família. Ele não é colocado como um valor familiar a ser transmitido através das gerações. Assim, podemos encontrar numa mesma família diferentes membros fazendo sua filantropia de maneira isolada e independente. Esse comportamento torna-se tão enraizado que, muitas vezes, é difícil para a família identificar a possibilidade de trabalho conjunto dentro de uma filantropia familiar organizada que poderia se transformar em um investimento social de maior alcance, significado e resultados. Cada membro da família se comporta com base em sua decisão pessoal: seu coração fala mais forte do que a razão e o resultado é que não se pensa o impacto coletivo que essas doações poderiam ter. Os recursos dispersam-se e não se potencializam.’
Impactos sociais importantes
A comunidade como protagonista nos processos de transformação social é uma das vertentes do conceito de desenvolvimento comunitário. Para explicar a importância da prática, o redeGIFE pediu à presidente da fundação Tide Setúbal, Maria Alice Setúbal, um panorama sobre o tema:
‘Referida há vários anos pelas organizações sociais brasileiras, notadamente no campo do investimento social privado, a definição conceitual do termo desenvolvimento comunitário e, como conseqüência, a sua configuração em projetos sociais, só agora começa a ter um delineamento mais claro. Hoje, na Rede Gife e no Brasil, já é possível reunirmos diversas organizações que têm como foco de atuação o empoderamento de comunidades tendo como objetivo a sua autonomia para conquista da melhoria da qualidade de vida num dado território.
Por natureza, o desenvolvimento comunitário pressupõe uma visão holística, integrada e integradora, o que torna a atuação social com esse foco complexa. Reside aí o desafio a ser vencido nos próximos anos: como integrar um planejamento intrinsecamente complexo a uma necessária simplicidade no agir. Vale a persistência, pois o desenvolvimento comunitário proporciona resultados e impactos sociais extremamente importantes para a redução dos elevados índices de desigualdade social que caracterizam o nosso país.’
Valores sustentáveis
O longo caminho na busca pela almejada sustentabilidade parece estar aumentando a ansiedade de muitas empresas em comunicar suas ‘iniciativas de responsabilidade corporativa’ sem o devido cuidado. Não custa dizer que, especialmente nessa matéria, a pressa é a maior inimiga da excelência. Convidado, Paulo Nassar, diretor-geral da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje) e professor doutor da ECA-USP, fala sobre as mudanças na comunicação empresarial:
‘Podemos afirmar que, em 2007, a comunicação das empresas e instituições ganhou maturidade política. No Brasil e na América Latina, começamos a ver a comunicação organizacional inserida como processo fundamental para a discussão dos grandes temas sociais e ambientais atuais, tais como a favelização das cidades, a violência urbana, o desemprego, o analfabetismo, a educação, a saúde e a destruição de importantes recursos naturais, entre eles, a água. São temas como estes, de grande complexidade, que demandam muita informação para os públicos envolvidos e para a sociedade.
Assim, a comunicação, como componente fundamental para a excelência dos relacionamentos públicos organizacionais, ganhou relevância e importância política, na medida em que ela revela os inúmeros pontos de vista dos protagonistas sociais envolvidos na discussão destes temas e, com isso, evita conflitos e possibilita consensos. Neste contexto, a comunicação e o diálogo são construtores de valores sociais e econômicos sustentáveis para a sociedade e para as organizações.’
Alcance do microcrédito é irrisório
Considerados como uma das ferramentas fundamentais para o desenvolvimento local, os programas de microcrédito alcançam apenas 1% de seu público potencial em todo o Brasil. As razões para o baixo grau de penetração dessas iniciativas são, na visão de especialistas, a falta de informação da população, problemas de gestão das instituições creditícias e a inexistência de uma política nacional coerente.
Segundo Manuel Thedim, diretor do Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade (Iets), ainda persiste no país um entendimento equivocado sobre o que seja microcrédito, considerado erroneamente apenas como um ‘empréstimo de pouca monta’. Trata-se, na verdade, tal como defende o especialista, de um ‘crédito voltado para empreendedores com acesso restrito a empréstimos adequados ao seu perfil de renda e ciclo produtivo’.
As facilidades apresentadas para quem busca o microcrédito parecem atrativas, exceto para seu público-alvo. As pouco mais de 200 Oscips e sociedades creditícias registradas pelo Ministério da Justiça mantêm, segundo estimativas aproximadas aferidas por Thedim, 320 mil créditos ativos. ‘Se cruzarmos esses dados com os mais de 20 milhões de possíveis microempreendedores (que trabalham por conta própria) contabilizados pelo Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), o alcance ainda é irrisório’, argumenta.
Controle e burocratização
Informações errôneas, politicagem e acusações veladas foram apenas alguns dos motivos que tumultuaram os bastidores da instalação da Comissão Parlamentar de Inquéritos (CPI), que investiga o mau uso do dinheiro público repassado a variadas organizações não-governamentais, vinculadas ao governo federal.
Conhecida como CPI das ONGs, a comissão tem sido criticada por uma série de especialistas, convictos de que levará, invariavelmente, a uma criminalização generalista das entidades. Para Fernando Rossetti, secretário-geral do GIFE, esses casos não devem ser encarados como regra, já que não refletem o diverso trabalho realizado pelas organizações sociais. ‘O corruptor nesse caso é o Estado, que criou canais para que isso ocorresse’, critica.
O Estado, na visão de Rossetti, deve criar regras e acordos de como prestar contas da maneira mais transparente possível, porém sem dificultar o trabalho das organizações sociais. ‘Quando o Estado se mete a controlar, ele burocratiza o sistema. Isso poderia trazer conseqüências para o trabalho de pequenas entidades, que se tornariam inviáveis sem um amplo respaldo jurídico’, afirmou.
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Da equipe do RedeGifeOnline