A internet colocou o mundo ao alcance de um clique. E a segurança dos usuários também. A revelação de que os Estados Unidos montaram uma rede internacional de monitoramento de comunicações mostrou que até mesmo governos e grandes empresas estão vulneráveis. No Brasil, a Presidência da República e a Petrobras, além de empresas e cidadãos, foram espionados. Comunicações do Ministério das Minas e Energia foram alvo da vigilância de entidades de segurança do Canadá, parceiro da Agência Americana de Segurança (NSA, na sigla em inglês). Na vida cotidiana, qualquer cidadão, ao acionar o seu celular ou computador, pode estar exposto aos perigos da rede. Especialistas apontam que o uso de programas de criptografia e a criação de senhas seguras são o primeiro passo para a proteção. Roubo de dados confidenciais e golpes financeiros estão entre os problemas mais comuns na internet.
Em meio à crise diplomática desencadeada pelo caso Edward Snowden, a presidente Dilma Rousseff fez um duro pronunciamento na última Assembleia Geral da ONU. A presidente classificou a atitude dos Estados Unidos como uma afronta, que fere o direito internacional, e defendeu a regulamentação internacional da internet para impedir que a rede seja usada para espionar sistemas de outros países. O governo brasileiro estuda medidas para obrigar empresas multinacionais, como o Google e o Facebook, a armazenarem os dados no Brasil e não no exterior. Hoje, as empresas de datacenter concentram-se nos Estados Unidos e a maioria das transmissões brasileiras passa por servidores norte-americanos. O governo prometeu investir em infraestrutura das redes locais. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (8/10) pela TV Brasil discutiu como os usuários da internet podem se proteger diante da comprovada vulnerabilidade da rede (ver íntegra aqui).
Para debater o tema, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro Eduardo Neger, presidente da Associação Brasileira de Internet (Abranet). Pós-graduado em Direito das Telecomunicações pela Fundação Getúlio Vargas, Neger é especializado em regulamentação de sistemas de telecomunicações e foi integrante da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Em São Paulo, o programa contou com a presença da jornalista Márion Strecker, colunista da Folha de S.Paulo e diretora de Comunicação do Instituto de Cultura Contemporânea. Cofundadora do UOL, foi crítica de arte da Folha de S.Paulo, editora do caderno “Ilustrada” e repórter especial. Liderou projetos de uso intensivo de tecnologia para fins jornalísticos. O diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), Carlos Affonso Souza, foi o convidado em Brasília. O instituto é focado em pesquisas sobre tecnologia, governança da internet e direitos fundamentais. Carlos Affonso é professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Ferramenta libertadora?
Antes do debate ao vivo, em editorial, Dines sublinhou que a rede não é neutra: “A internet pode ser o símbolo da liberdade individual, mas na realidade está mais próxima de ser um par de algemas douradas. A internet tem sido apresentada como panaceia para todos os males da sociedade contemporânea, mas além de ser vulnerável, é perigosa, subversiva, impossível de ser disciplinada, além disso, injusta – sempre a serviço dos mais poderosos”. E acrescentou: “Com o pretexto de aproximar a humanidade, a revolução digital está acabando com a privacidade, com o arbítrio individual e com as soberanias nacionais” [ver íntegra abaixo].
A reportagem exibida antes da discussão no estúdio mostrou a opinião de Demi Getschko, que presidiu o Comitê Gestor da Internet no Brasil. “Espionagem existe desde que o mundo é mundo. O que acontece é que talvez a quantidade – o volume e o grau de profundidade dessa espionagem – seja facilitada pela capacidade enorme de computação que hoje as máquinas têm. Há dez anos isso seria inviável. Hoje os computadores conseguem mastigar uma quantidade enorme de informação e, com isso, evidentemente, conseguem tirar conclusões a partir do que se chama metadados. Existem formas de prever o que um sujeito fará sabendo tudo o que ele fez até agora”, explicou Getschko.
Para o especialista em internet, o usuário precisa se proteger evitando colocar na rede informações desnecessárias e garantindo que a sua máquina não está infectada com algum software que eventualmente vazará a informação. Mas a segurança não depende só do usuário. Provedores de acesso deveriam evitar o vazamento e não colaborar com pedidos de quebra de sigilo nem sempre baseados em ordens judiciais. “Esses dados deveriam ser invioláveis, como imagino o correio antigo era. Eu imagino que uma carta minha que sai da Europa para a África não fosse aberta antes de chegar à África. O que precisaria haver é um acordo entre governos para um comportamento ético nessa área, e quem hospeda esses pontos de troca de tráfego não lançasse mão do privilégio que tem de receber informações de todo o mundo para eventualmente xeretar o que está acontecendo”, disse Getschko.
Público e privado
Pedro Doria, editor-executivo de Plataformas Digitais do jornal O Globo, destacou que é necessária uma aprendizagem no campo digital: “[Ao] partir do princípio de que o que a gente coloca na internet não necessariamente é privado, [começamos] a resolver o problema”. Doria propôs a criação de senhas seguras e o uso de programas de criptografia. “É claro que você tem sistemas de protocolos de transformar em códigos determinadas informações, e grandes sistemas de e-mails usam esses protocolos, que são mais difíceis de quebrar. E aí você realmente precisa de supercomputadores e tudo mais. Coisas que [existem] no Estados Unidos e o Brasil não tem”, explicou o jornalista.
Nelson Vasconcelos, editor-executivo do jornal O Dia, comentou a importância de manter as máquinas sempre atualizadas: “O problema hoje é que os vírus que vêm por aí ajudam a sua máquina a fazer parte de um sistema muito maior, unindo forças de várias máquinas inoperantes contaminadas pelo mesmo programa, que possam de alguma maneira colaborar para derrubar sistemas e fazer alguns estragos, inclusive roubos”. Cabe ao usuário, na opinião do jornalista, uma mudança de comportamento para se proteger na internet. “É o tipo de censura que a gente vai ter que começar a ter no meio digital, assim como tem no dia a dia. Você não vai de qualquer maneira vestido para um boteco ou para a festa, você não fala qualquer coisa na frente de estranhos. No entanto, a gente tem a falsa impressão de que estar na internet é estar livre de olhos e pessoas que estejam interessadas no que você está comentando, fazendo, lendo, escrevendo”, exemplificou Vasconcelos.
O fato de grandes empresas de internet estarem estabelecidas no Brasil, na opinião de Alexandre Matias, editor de Redação revista Galileu, facilita que os usuários reivindiquem os seus direitos: “Permite que a empresa possa ser autuada e que o governo brasileiro possa exigir que repasse aquelas informações ou que tire aqueles dados da rede. Isso não tem nada a ver com o fato dos servidores do Estado serem notificados ou não. Se isso acontecesse, se houvesse a exigência de ter os servidores presentes no país, possivelmente as empresas sairiam do Brasil com as suas representações legais – e [isso] tornaria muito mais complicado, por exemplo, tirar um vídeo do YouTube. Se o Google não tivesse um escritório aqui, você teria que entrar com um pedido na Justiça norte-americana, e isso poderia demorar muito tempo”.
Há um ano, o projeto do Marco Civil da Internet aguarda votação na Câmara dos Deputados. Interesses políticos e de empresas de telecomunicações travam a entrada do projeto na pauta de votações. O relator do projeto na Câmara, deputado Alessandro Molon (PT-RJ), ressaltou a importância do tema para a segurança: “Para enfrentar esse problema da espionagem são necessárias medidas de várias ordens: medidas de ordem legislativas, ordem tecnológica e uma série de mecanismos que precisam ser adotados para proteger o Brasil dessa prática. A principal medida legislativa é a aprovação do Marco Civil da Internet, que vai garantir a privacidade dos mais de 100 milhões de internautas brasileiros. É preciso tratar essa questão da segurança cibernética como uma questão de Estado, como uma questão estratégica para o desenvolvimento e para a segurança nacional”.
Onde mora o perigo
Na abertura do programa, Dines relembrou que o conceito de compartilhamento, amplamente difundido durante o surgimento da internet, hoje se mostra perigoso. Eduardo Neger afirmou que, no Brasil, a internet nasceu como uma rede acadêmica que conectava as universidades. Assim, os protocolos foram desenhados de forma que o compartilhamento ocorresse de forma simples. O representante da Abranet explicou que quando uma informação navega na rede – entre os usuários ou com destino a um servidor que armazene as informações – não é possível verificar exatamente por qual caminho ela trafega. Esta característica é positiva do ponto de vista de expansão, porque a rede pode crescer sem ter um dono, um núcleo, mas por outro lado gera vulnerabilidade.
“A segurança da internet não está no caminho, na rede em si, mas nos extremos, nas pontas. Quem quer trafegar informação com segurança na rede tem que criptografar”, detalhou Neger. Para o presidente da Abranet, a internet pode ser comparada a uma praça pública e é preciso criptografar dados sensíveis. Neger ressaltou que muitas das empresas internacionais de internet estão estabelecidas no Brasil e respondem às leis do nosso país. “Independentemente do porte ou da origem dessas empresas, elas estão submetidas à legislação brasileira”, ressaltou. O preocupante, na opinião do presidente da Abranet, é quando há um conteúdo que está em desacordo com a nossa legislação e a empresa que o disponibilizou não é estabelecida no Brasil.
Dines comentou que, no passado, a principal ferramenta de pesquisa dos jornalistas era a sola de sapato. Hoje, a internet ocupou este posto e gera problemas para a segurança dos dados dos profissionais. “Tecnologia deveria ser tão simples de usar quanto uma geladeira: abriu a porta, usou. Mas, infelizmente, nem todo mundo pensa assim e se interessa em ter um comportamento dessa natureza. A informação na internet é como água, ela escorre, você não controla para onde aquilo vai. Eu acho que as pessoas têm que entender que o Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, tinha toda razão quando há vários anos ele decretou que acabou a era da privacidade”, disse Márion Strecker.
Uma questão de gerações
A jornalista ponderou que os mais jovens têm uma outra concepção de privacidade na internet e não se preocupam em resguardar seus vídeos, fotografias e comentários pessoais na rede. “Imagina uma criança hoje de três ou cinco anos de idade que nasce e cresce sendo filmada e fotografada a torto e a direito e esses pais colocando imagens, fotos e vídeos dessa criança em redes como o Facebook, YouTube, assim por diante. Às vezes, eu paro para pensar: ‘O que essa criança vai achar no futuro dessa hiperexposição a que ela é submetida?’”, questionou Márion. Além de um possível constrangimento da criança, há outro aspecto preocupante que é como a sociedade – por exemplo, um futuro empregador – vai reagir às imagens daquela pessoa “dançando em frente ao sofá” ou em situações constrangedoras durante a infância.
O uso de aplicativos e redes sociais pelos internautas é crescente e leva a uma situação perigosa. Para Carlos Affonso Souza, esses sistemas são confortáveis para o usuário, mas facilitam o monitoramento. “Quanto mais internet móvel, quanto mais aplicativo, mais rede social, mais ambientes fechados e facilmente controlados, nós estamos levando a nossa vida na internet”, alertou o diretor do ITS. Para ele, é importante pensar que um datacenter brasileiro não resolveria a questão da segurança porque a informação trafega e pode ser interceptada em outros pontos: “O que vai acontecer é que isso pode facilitar, eventualmente, a obtenção dessa informação”. Um datacenter no Brasil pode gerar problemas tanto no setor tecnológico quanto na área jurídica, que enfrentaria uma avalanche de ações.
Carlos Affonso Souza destacou que privacidade é um anseio do ser humano desde tempos imemoriais, mas o conceito foi construído no período da Revolução Francesa. Diante internet, a ideia passa por fortes transformações. “O primeiro artigo que fala de privacidade é de 1890. Ele fala de privacidade como direito a estar só, ao isolamento. É interessante como a privacidade nasce justamente como algo que parece ser a antítese desse nosso mundo superconectado”, comparou. Ao longo século 20, o conceito foi se transformando.
Hoje, o direito ao isolamento da privacidade se transformou em uma gestão complexa que envolve os dados pessoais – desde o seu armazenamento ao tratamento pelo qual passarão. “Ainda é muito cedo para dizer para onde vai essa transformação. Assim como Mao Tsé Tung dizia que ainda era muito cedo para dizer o que vai sair da Revolução Francesa, talvez seja muito cedo para dizer o que será a transformação do direito à privacidade depois da proteção dos dados pessoais como se imaginou nas décadas de 1970 e 1980”, disse Carlos Affonso.
Segurança na rede
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 704, exibido em 8/10/2013
A internet não é neutra. A internet pode ser o símbolo da liberdade individual, mas na realidade está mais próxima de ser um par de algemas douradas. A internet tem sido apresentada como panaceia para todos os males da sociedade contemporânea, mas além de ser vulnerável, é perigosa, subversiva, impossível de ser disciplinada, além disso, injusta – sempre a serviço dos mais poderosos.
Com o pretexto de aproximar a Humanidade, a revolução digital está acabando com a privacidade, com o arbítrio individual e com as soberanias nacionais. A tecnologia tem sido apresentada como alavanca de avanços, mas também carrega uma enorme carga de retrocessos.
Os documentos obtidos pelo ex-agente de segurança americano Edward Snowden comprovaram que os Estados Unidos espionaram o governo brasileiro. A presidente Dilma Rousseff denunciou a agressão no plenário das Nações Unidas. Mas agora descobriu-se que também o Canadá serviu-se das ferramentas disponibilizadas pelo seu vizinho para bisbilhotar, devassar e apropriar-se do nosso acervo de informações.
Este não é um assunto que diz respeito apenas aos governos, diz respeito a você, usuário da rede mundial de computadores. Ao ligar o seu celular de última geração ou acionar o seu navegador ultraveloz, você entrou no imponderável onde a sua vontade e os seus direitos contam muito pouco. O mesmo sistema que nos vende uma fascinante e maravilhosa maquineta multifuncional, que faz tudo e sabe tudo, nos leva para um universo do qual jamais poderemos sair.
Esta edição do Observatório de Imprensa pretende lembrá-lo de coisas muito graves que acontecem junto com inocentes gestos.
A mídia na semana
>> Compreende-se por que a grande imprensa não badalou a parceria da Editora Abril com o poderoso portal americano “The Huffington Post”, um dos mais visitados em todo o mundo. A razão é simples: todos os grupos de comunicação no Brasil cobiçavam uma parceria com o “HuffPost” mas foram driblados pela Abril. Os detalhes desta associação e como será a operação do novo veículo ainda não são conhecidos, mas a pergunta mais insistente nas redações brasileiras relaciona-se com o futuro desta parceria: como será possível estabelecer uma convivência cotidiana entre um veículo fortemente inclinado para o Partido Democrata e um sócio brasileiro que se identifica integralmente com o Tea Party, o núcleo mais radical do Partido Republicano? Será que o “HuffPost” brasileiro dará uma guinada à direita? Ou é a Veja que, com esta parceria, começará a deixar o ninho das serpentes para retornar às posições liberais da sua origem? Na imprensa, política também faz parte dos negócios.
>> Ídolos também escorregam do pedestal, juízes infalíveis também são falhos. No início do ano, o presidente do Supremo, Joaquim Barbosa, implicou com a pergunta do repórter Felipe Recondo e xingou-o de “palhaço”. Diante da repercussão, pediu desculpas de forma indireta. Agora, o meritíssimo exigiu o afastamento da mulher do mesmo repórter que trabalha no gabinete de um de seus colegas, alegando um conflito de interesses e falta de ética. A repercussão foi outra vez enorme. Barbosa não insistiu, mas corre o risco de ficar desacreditado nas grandes causas se continuar com estas minúsculas implicâncias.
>> Jornais que investem em conteúdo jamais desaparecerão. O Globo prova isto mais uma vez com a série de reportagens iniciada no domingo e assinadas pela dupla de repórteres Chico Otávio e Aloy Jupiara, comprovando a sinergia entre torturadores a serviço da ditadura e o jogo do bicho no Rio de Janeiro. E quando se fala em jogo do bicho no Rio não se pode esquecer suas conexões com o carnaval e algumas escolas de samba. Este tipo de jornalismo que as mídias digitais jamais poderão imitar garante não apenas a sobrevivência da mídia impressa, mas também funciona como um reforço das instituições democráticas.
******
Lilia Diniz é jornalista