Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

País apartado e ‘racializado’ desde os primórdios



‘Apesar de você/amanhã há de ser outro dia/Eu pergunto a você onde vai se esconder/ Da enorme euforia?/Como vai proibir/Quando o galo insistir em cantar?/Água nova brotando/E a gente se amando sem parar.’ (Apesar de você, Chico Buarque)


Há quem diga que foi uma armação. Há quem diga que foi um álibi perfeito. Há quem diga que a ‘maldição da Conferência de Durban’ tarda mas não falha… Há quem diga que foi… um embuste perfeito para fazer valer essa coisa esdrúxula chamada de ‘cotas sociais’, que ninguém consegue explicar exatamente o que significa, fora que é uma rota de escapar do cumprimento do dever.


A exemplo das Metas do Milênio, as tais ‘cotas sociais’ sintetizam a confissão de um fracasso: o governo Lula confessa a sua impotência diante dos desafios dos compromissos que o Estado brasileiro assumiu durante o Ciclo de Conferências da ONU da década de 1990, assim como na de Durban (2001) e assim expressa que também não está disposto ao esforço para acatar as recomendações das quais o Brasil é signatário.


Há muitas hipóteses que tentam explicar a coincidência (?) do recuo do governo Lula em relação às políticas de ação afirmativa para negros, um ensaio de reparações pelos crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a escravidão negra, com a entrega ao Congresso Nacional, dia 29 de junho, da ‘Carta Pública ao Congresso Nacional – Todos têm direitos iguais na República democrática’, no essencial um manifesto contra as cotas étnicas e demais formas de ações afirmativas, cujos signatários são 114 renomados intelectuais, de artistas a históricos ‘pesquisadores de negros’ que ousam falar o que pode ou não ser feito com a cidadania e a vida de 45,3% do povo brasileiro, os afro-descendentes.


Gosto de ouvir música enquanto escrevo. Exatamente agora ouço Caxangá, na voz de Elis Regina:




Veja bem meu patrão como pode ser bom/Você trabalharia no sol e eu tomando banho de mar/Luto para viver/Vivo para morrer/Enquanto minha morte não vem/Eu vivo de brigar contra o rei/Em volta do fogo todo mundo abrindo o jogo/Com tudo que tem pra contar/Casos e desejos coisas dessa vida e da outra/Mas nada de assustar/Quem não é sincero sai da brincadeira correndo pois pode se queimar/Queimar/Saio do trabalho e/Volto para casa e/Não lembro de canseira maior.


Um imbróglio


Dada a espetacular cobertura midiática, o referido manifesto configurou-se uma varinha de condão para alçar as discussões sobre o PL 73/1999 (PL das Cotas) e o PL 3.198/2000 (PL do Estatuto da Igualdade Racial) ao debate público amplo (?), no qual em geral só ‘os contras’ são ouvidos e re-ouvidos até à exaustão e o governo nada de braçada e com desenvoltura jamais vista.


Para o azar dos meios de comunicação de alcance nacional, que tentam de tudo para que a medida provisória da grife ‘governo Lula’, evidentemente, a MP de Domésticos, não receba a pecha de ‘questão racial’, ela também está na vitrine das manchetes de todos os jornais, colocando em cena o embate dos Com-Empregados X Sem-Carteira e Sem-FGTS. Dois brasis. Um deles é ‘racializado’. Advinha qual?


A pergunta é: por que a MP de Domésticos interessa num artigo cujo eixo é o atual debate sobre cotas e Estatuto da Igualdade Racial? Elementar, por ser a categoria domésticos a que mais contém resquícios de trabalho escravo e ainda é formada majoritamente por mulheres negras e desnuda a manutenção do ideário da Casa Grande & Senzala como estruturante das relações entre brancos e ‘não-brancos’ no Brasil.


Relembro que o PL 73/1999 (Cotas), ainda na Câmara, se aprovado será encaminhado ao Senado; e o PL 3.198/2000 (Estatuto da Igualdade Racial), já aprovado no Senado, será apreciado na Câmara dos Deputados. A MP de Domésticos? É um imbróglio a perder de vista.


‘Nada extravagante’


Cabe recordar o documento da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras rumo à III Conferência Mundial da ONU contra o Racismo (2000): ‘O trabalho doméstico ainda é, desde a escravidão, o lugar que a sociedade racista destinou como ocupação prioritária das mulheres negras. Nele ainda são poucos os ganhos trabalhistas e as relações se caracterizam pelo servilismo. Em muitos lugares, as formas de recrutamento são predominantemente neoescravistas, em que meninas são trazidas do meio rural, sob encomenda, e submetidas à condições subhumanas no espaço doméstico’. Desde então, praticamente nada mudou.


Portanto, ainda que a grande imprensa tente separar os dois temas, na prática são inseparáveis e no momento constituem um ponto de estrangulamento, causando tenebrosa indecisão e constrangimento (?) ao governo Lula. Cotas & Estatuto da Igualdade Racial e MP de Domésticos são faces da mesma moeda.


E, voltando à MP de Domésticos, o Correio Braziliense e praticamente todos os jornais afirmam: ‘O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda não decidiu se veta ou não a obrigatoriedade do pagamento de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para empregadas domésticas, mas cresce no governo a pressão para que a medida seja vetada’. (Marcelo Tokarsi, ‘Veto quase certo para FGTS de domésticas’, Correio Braziliense, 7/7/06).


Miriam Leitão, em ‘Os com-empregadas não querem pagar’, indaga e responde: ‘O que a nova lei propõe? FGTS, multa de 40% nas demissões, um dia de folga por semana e respeito aos feriados. Nada extravagante, apenas vantagens normais de outros empregados.’


‘Ordem natural’


E acrescenta: ‘O ministro Luiz Marinho, quando era sindicalista, nunca se preocupou com o custo empresarial de suas reivindicações, mas agora quer vetar o FGTS para empregada doméstica. E recobre sua preocupação com um suposto zelo com o empregado: argumenta que pode haver mais informalidade (…) O ministro deve achar que existem duas classes de trabalhadores, e que é normal que os domésticos sejam menos iguais que os outros. Marinho não está sozinho; tem o apoio dos ricos e da classe média. No Brasil, os com-empregada não querem entender que este é um trabalho que custa caro em qualquer país do mundo. Aqui tem ficado mais caro e vai continuar assim porque é uma tendência irreversível. Dar aos trabalhadores domésticos os mesmos benefícios de trabalhadores formais é absolutamente normal e desejável.’ (Miriam Leitão, ‘Os com-empregadas não querem pagar’, O Globo, 6/7/06).


Numa ‘clipagem’ dos grandes jornais do dia 7/7/06, as matérias que importam para o presente artigo são as seguintes: O Estado S. Paulo/Nacional: ‘Estatuto da Igualdade Racial: Lula revê apoio’; O Estado S. Paulo/Economia: ‘Governo empurra decisão sobre FGTS para domésticas’; Folha de S. Paulo/Dinheiro: ‘Planalto poderá editar nova MP para domésticos’; O Globo/Economia: ‘Veto sobre MP dos Domésticos deve ser parcial’; Correio Braziliense/Economia: ‘Veto quase certo para FGTS de domésticas’; Estado de Minas/Economia: ‘Crítica a FGTS de domésticas’; e O Tempo/Opinião: ‘Racismo às avessas’.


Os títulos das matérias acima dão a exata medida do estágio do debate no governo e para qual rumo tende o autodenominado governo popular e democrático, em detrimento da forma desumana em que vive metade do povo brasileiro. A mídia, sem necessidade de maiores complementos, retrata que vivemos num país no qual Congresso Nacional e governo federal aceitam a continuidade do ‘apartamento’ e da ‘racialização’, porque estão convencidos de que, por decreto divino, há seres humanos de primeira e de segunda categoria, e assim deve ser, já que o Brasil é um país apartado e racializado desde os primórdios, a tal ponto que soa estranho alguém se insurgir contra esta ‘ordem natural’ das coisas.


Cultura nefasta


Não fosse a naturalização e a banalização do racismo nosso de cada dia, como ser tolerante e negar o ‘recorte racista’ dos fatos abaixo?


1) Estima-se em 6,8 milhões a categoria de trabalhadores domésticos, com 90% de negras, dos quais apenas 1,8 milhão têm carteira assinada segundo a lei vigente no país, desprovidos de FGTS, salários família e outros direitos garantidos às demais categorias profissionais;


2) Em 1998 havia no Brasil cerca de 400 mil meninas de 10 a 16 anos, pobres e a maioria negra, trabalhando em ‘casas alheias’. A rigor não são trabalhadoras domésticas, mas ‘quase’ escravas, pois foram ‘pegas para criar’ e pagam para serem criadas! Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), respectivamente, 33% delas não estudavam e 23% realizavam jornadas superiores a 48 horas semanais. Trata-se de uma realidade que há anos o movimento negro denuncia.


3) ‘O trabalho doméstico infantil, realizado principalmente pelas meninas afro-descendentes se acentua de maneira dramática nas regiões Norte e Nordeste, constatado em todo o Brasil pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), teve sua denúncia corroborada pelos relatos apresentados nas audiências públicas. Os dados da PNAD, IBGE, apontam que, durante a década de 90, na região Norte, as meninas afro-descendentes são 68 a 73% da massa de trabalhadores infantis domésticos, e no Nordeste fica entre 74 a 80%; e


4) E a exemplariedade da cultura nefasta da Casa Grande & Senzala, é a situação do trabalho doméstico no pais: ‘É comum as domésticas que trabalham 12 a 15 horas diárias apenas em troca de moradia e alimentação, ou por um salário miserável; e a prestação de serviços em horas extraordinárias se assemelha ao trabalho escravo.


Velha concepção


Seus níveis de remuneração estão entre os mais baixos no mercado de trabalho: três milhões de domésticas ganham até um salário mínimo. As trabalhadoras domésticas são vítimas do sexismo e do racismo, presentes nos assédios, abusos, humilhações e maus-tratos sofridos por essa categoria, marcados pela presença de mulheres negras e pelo trabalho de crianças e adolescentes.


A luta da categoria pela igualdade de direitos reivindica para os trabalhadores e trabalhadoras domésticos, no mínimo, aquilo que já é garantido para os outros trabalhadores. Elas não têm garantidos, por exemplo, a jornada de trabalho de 8 horas diárias e o pagamento de horas extras. O direito ao FGTS é facultado, desde que requerido pelos empregadores.’ (Documento Encontro Nacional Olhares da Mulher Negra sobre a Marcha Zumbi +10, Guarulhos, SP, maio de 2005).


Conforme pontua o jornalista Márcio Alexandre Gualberto, é significativo que neste momento em que mobilizações pró e contra as cotas vêm à tona os poderes Executivo e Legislativo no âmbito federal sejam presididos por homens nordestinos.


Há um pernambucano na Presidência da República. A Câmara dos Deputados e o Senado são presididos por dois alagoanos, amantes confessos e ardorosos da epopéia de Palmares, cujo último líder foi Zumbi. Coincidentemente todos são homens que foram forjados políticos com o lastro de uma velha concepção de esquerda que sempre preconizou a ‘revolução’ como remédio para todos os males. Embora o senador Renan Calheiros em sua trajetória política tenha trilhado caminhos escancaradamente ditos neoliberais, bem antes do ‘pato laqueado de Pequim’, onde foi urdida a tramóia para eleger Collor presidente, a sua origem é na esquerda, num partido comunista que, como sabemos, foi o PCdoB. O comportamento deles deixa vislumbrar que acreditam, no fundo de seus corações, que as raízes das desigualdades no Brasil possuem um caráter exclusivamente social e que o recorte racial/étnico não os sensibiliza o suficiente para que compreendam e respeitem minimamente o discurso de ativistas e intelectuais do Movimento Negro.


‘Restrições’ ao modelo


Para Márcio Alexandre Gualberto, ‘assumir que a problemática racial/étnica é estrutural e estruturante dos males sociais brasileiros é dar uma guinada de 180 graus e partir frontalmente para a construção de um novo país. Manter o discurso de que não temos problemas raciais, que isso é importação de ideologia e que afirmar essas questões, aí sim, pode gerar uma divisão racial no país é, além de hipócrita, uma concepção irreal da realidade brasileira. Somente dando um passo à frente, somente tendo-se a coragem política de enfrentar esta grande questão de frente é que estes senhores poderão honrar suas biografias e entrar para a história como políticos que tiveram uma visão de Estado para uma das questões mais sérias que vivemos’.


Será obra do destino (ou a ‘maldição da Conferência de Durban’?) que é chegada a hora do deputado Aldo Rebelo e do senador Renan Calheiros demonstrarem na prática até onde vai a extensão de suas declaradas admirações por Zumbi e por Palmares, cantadas em seus inúmeros discursos? Não me recordo de ter lido em alguma matéria recente de o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) ter dito algo além de prometer aprovar o ‘Estatuto’. Qual, como, onde e quando não sei. Nem mesmo consigo atinar a qual Estatuto o senador se refere, pois o da Igualdade Racial já foi aprovado, por unanimidade, no Senado! Mas o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) tem repetido o mesmo que disse à Comissão Organizadora da Marcha Zumbi + 10 de 16 de novembro de 2005, conforme noticiou o Correio Braziliense:




Na ocasião, Aldo disse ter restrições ao modelo de cotas raciais adotado nos Estados Unidos, com reserva de vagas para negros tal qual prevê o Estatuto da Igualdade Racial e, em menor escala, ao projeto de cotas nas universidades federais proposto pelo MEC, que reserva 50% das vagas para alunos da escola pública, com subcota para negros e índios.’ Mas o Correio afirma além: ‘A polêmica da reserva de vagas segundo critérios raciais também divide os presidentes do Congresso Nacional. No Senado, Renan Calheiros é favorável. Já o presidente da Câmara, Aldo Rebelo, é contrário. (Érika Klingl, ‘Agora, o manifesto pró-cotas’, 5/7/6)


‘Nem mel nem cabaça’


Rosa Costa e Roldão Arruda, em ‘Intelectuais assinam manifesto contra Estatuto da Igualdade Racial’, destacaram que ‘Documento assinado por 114 pessoas alerta que projeto vai dividir País e acentuar racismo, em vez de combatê-lo’, e afirmaram, premonitoriamente, ‘O debate sobre a promoção da igualdade racial ganhou ontem nova amplitude’ e que ‘Renan concordou que serão necessárias mais discussões sobre os projetos das cotas e do estatuto ‘para evitar que provoquem novas divisões na sociedade’. Aldo disse que é preciso entender melhor como se dá a prática de racismo no Brasil para a adoção de políticas adaptadas à realidade nacional.’ (Estadão, 30/6/06).


Eu, que sou do mesmo partido político que o deputado, o PCdoB, desisto. Mas vamos tocando, quem sabe um dia Zumbi baixe nele… Fico atônita cada vez que Aldo abre a boca para pronunciar a palavra cota. Meu coração dispara, pois pergunto-me, sempre: como um parlamentar da estatura de Aldo Rebelo, não consegue compreender que discriminação, preconceito e opressão de classe são DIFERENTES de discriminação, preconceito e opressão de gênero ou de raça/etnia? Pois cada uma possui dinâmicas de surgimento e de operacionalidade que lhes são peculiares, logo nenhuma se funde, ou se confunde, com a outra, embora possam ser reforçadas quando se abatem sobre a mesma pessoa. Cada uma exige políticas específicas adequadas. Urge que se compreenda que políticas universalistas são insuficientes para abolir o racismo.


Entender o que diz o deputado Aldo Rebelo até entendo, mas não concordo; por que ele se porta assim também sei, mas devo confessar que lamento. É que discordo dele e considero mesmo que é um equívoco político revelador de que a maioria expressiva de quem ainda tem coragem de se declarar comunista ou socialista não aprendeu nada com as experiências socialistas, já que todas cometeram o erro crasso de ‘não dar bola’ para as questões étnicas de seus povos na ilusão de que resolvidos os chamados ‘problemas de classe’, tudo seria um céu de brigadeiro. Mas a história já demonstrou que não é bem assim, e o resultado referenda o ditado popular que diz ‘Nem mel nem cabaça!’.


Sem guarida


O Estadão deu, com destaque, voz à ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, em sua crítica ao ‘documento dos intelectuais’: ‘Há estudos de acadêmicos respeitados, como os de Fulvia Rosenberg, da Fundação Carlos Chagas, segundo os quais erramos quando dizemos evasão escolar em relação à população negra, porque na verdade os negros são expulsos dos bancos escolares’. E a ministra não teve dúvidas em dizer que as ações afirmativas de recorte racial visam a ‘atender a uma situação marcada por disparidades e desigualdades. Haverá um dia em que não necessitaremos mais dessas leis’.


O Estadão registrou ainda que ‘as considerações dos acadêmicos, segundo Matilde, são bem-vindas e ajudam a enriquecer o debate. ‘Não podem impedir, no entanto, a execução de uma agenda do poder público, nem se sobrepor à análise do nosso cotidiano, no qual, em pleno século 21, as populações negras e indígenas estão excluídas dos bens e serviços públicos’. (…) Não se combate a exclusão apenas com políticas de universalização dos serviços. São necessárias ações afirmativas em situações emergenciais’.


Mas os jornais do dia 7 de julho praticamente demonstram que o discurso da ministra dos últimos dias pode não encontrar mais guarida no governo que integra: ‘O Palácio do Planalto manobra com cuidado para minar ou desidratar o Estatuto da Igualdade Racial. Considerado radical por assessores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o projeto em tramitação na Câmara pode sofrer alterações comandadas pela base governista (…) A tendência, até agora, era pela aprovação do estatuto. Mas a nova inclinação do Planalto encontra cada vez mais eco no Congresso. Não há voz que se manifeste claramente contra. Mas nos bastidores há dúvidas quanto a eventuais efeitos colaterais do estatuto, como estimular a segregação no lugar de combatê-la. O presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), por exemplo, prefere cotas sociais, idéia mais universalista, que não leva em conta uma característica da pessoa, mas do grupo social’ (Estatuto da Igualdade Racial: Lula revê apoio. (Estadão, 7/6/06).


Critério de pobreza


A mesma matéria do Estadão dá como certa a postergação da votação dos PLs para 2007: ‘O projeto do estatuto passará pelo plenário da Câmara porque o líder do PFL, Rodrigo Maia (RJ), o ex-líder do PSDB Alberto Goldman (SP) e o líder da minoria, José Carlos Aleluia (PFL-BA), requereram à Mesa que ele seja votado pelo plenário, ‘por ser uma proposta complexa’. Se não tivessem feito o pedido, o projeto passaria diretamente das comissões da Câmara – onde já foi aprovado – para o Senado. A votação do estatuto, assim, ficará para o próximo ano (…) A intenção era fazer um pedido de urgência para votar o projeto que cria o estatuto em novembro, pegando como referência o dia 20, data histórica do assassinato de Zumbi dos Palmares.’


A Folha também dá como certa a votação apenas em 2007: ‘Com a polêmica, vários deputados, inclusive o presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), têm se mostrado favoráveis a um sistema de cotas social, ou seja, seguindo um critério de pobreza e não racial, como propõe o estatuto. Essa seria a opinião do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que, no entanto, não quer comprar briga com os movimentos negro e sociais. Na avaliação de alguns parlamentares, se fosse votado hoje, o projeto seria aprovado.’ (‘Votação do estatuto racial fica para 2007‘, Cláudia Colluci e Daniela Tófili, 7/6/06).


Nada é simples


Nada do que os jornais veicularam no dia 7 de junho constitui exatamente uma surpresa. O presidente Lula jamais se posicionou integralmente a favor do Estatuto da Igualdade Racial. Por exemplo, sempre foi contra o Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que constava na proposta original do Senador Paim, e jogava a culpa no ministro Palloci. Nunca foi segredo. Por ocasião de uma maior intensidade deste debate escrevi:




E relendo Davis encontrei uma frase lapidar: ‘Nada está escrito na pedra. O que é progressista em determinado contexto pode ser extremamente retrógrado em outro momento da história’ e cheguei à constatação que o governo Lula, inegavelmente, sem se dar conta, deu uma contribuição decisiva à luta anti-racista no país, criando – com sua falta de propósitos anti-racistas (elabora políticas, mas não solta dinheiro), seus medos e outras paranóias – um divisor de águas entre diferentes concepções de perspectiva de futuro da luta anti-racista. Lula não quer o Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial, nós SIM! (‘Faxina ética’, O Tempo, BH, 2/11/05).


Em entrevista a Jamile Chequer do IbaseNet, por ocasião do 20 de novembro de 2004, perguntada ‘Por que ainda temos entraves?’ Respondi: ‘Porque o racismo é uma erva daninha cujo combate não é simples. Exige que propostas se tornem propósitos políticos em forma de linhas orçamentárias específicas. Não se supera o racismo por decreto e nem apenas com boa vontade. Há entraves racistas estruturais e conjunturais. O do momento é a recusa do governo brasileiro em avançar rumo à democratização do Estado. Por exemplo, não referendar o Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial proposto no Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), expressa uma mentalidade racista. Ora, como acreditar na boa fé se o governo, que diz apoiar o Estatuto, se nega a conferir lastro financeiro específico para a implementação de políticas anti-racistas?’ (http://marchazumbimais10.blogspot.com/2005_09_
11_marchazumbimais10_archive.html
)


Pontos ‘bem vistos’


Os fatos narrados pela grande imprensa no dia 7 de junho tornam atual o que escrevi em ‘A pedagogia das cotas étnicas (O tempo, BH, 14 de maio de 2003): ‘Parece que ‘quem foi rei nunca perde a majestade’, pois as elites atuais são quase as mesmas da escravidão e parte expressiva do Congresso Nacional descende de senhores de escravos.’


Sob a manchete ‘Política de cotas terá critério social e não racial, como previa estatuto – Governo teme agravamento do preconceito e defenderá regras que levem em conta renda e origem das pessoas’, o Estadão de 8/6/06, anuncia:




O que era uma decisão de bastidores agora é oficial: o Palácio do Planalto quer rever o Estatuto da Igualdade Racial, que, entre outros pontos, obriga a criação de cotas para negros no serviço público e em empresas que negociam com o governo. A posição oficial – mesmo que não assumida com todas as letras – é que cotas sociais, levando em conta a renda e a origem da pessoa, são possíveis. Quanto às cotas raciais, o entendimento é de que simplesmente criarão mais problemas do que soluções (… ) O assunto é delicado. Especialmente em ano eleitoral, parlamentares resistem a assumir posições impopulares. Mas o movimento contra a proposta cresce, porque aumenta a resistência na sociedade. Cresce também o medo de que o preconceito acabe agravado.


E, pela primeira vez nos últimos 15 dias um órgão da imprensa encontra algo que considera positivo na idéia do Estatuto da Igualdade Racial: ‘SUS. Nem todos os pontos do estatuto, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), são malvistos pelo governo. Alguns não são considerados prejudiciais, como incluir identificação de raça nos documentos do Sistema Único de Saúde (SUS) e a criação de disciplinas nas escolas sobre a história do negro.’


Estupor de encantamento


O Estadão relembra que o governo Lula é autor de duas propostas com recorte racial que vai manter: ‘O programa Universidade para Todos (ProUni), que dá bolsas em universidades privadas a alunos de escolas públicas que comprovem baixa renda. Parte das vagas é reservada a estudantes negros; e o outro projeto, no centro da mais recente disputa sobre cotas, é a reserva de 50% de vagas nas universidades públicas para alunos de escolas públicas. Nesse caso, como no ProUni, reserva-se um percentual para negros, de acordo com a composição étnica dos Estados.’ (Lisandra Paraguassú, ‘Política de cotas terá critério social e não racial, como previa estatuto’. (Estadão, 8/6/06 www.estado.com.br/editorias/2006/07
/08/pol-1.93.11.20060708.13.1.xml
)




‘É um retrocesso em relação às propostas que Lula defendeu na campanha de 2002’, afirma o deputado Luiz Alberto (PT-BA), um dos principais articuladores de questões raciais no Congresso. ‘Na campanha, Lula tinha até um caderno contra o racismo.’ Caro deputado Luiz Alberto, dormimos de touca, se ligue companheiro! Era tudo proselitismo de campanha eleitoral. O Estadão fala a verdade quando diz: ‘O governo Lula jamais esteve unido em torno de uma política de ação afirmativa. O presidente anunciou apoio às cotas na campanha eleitoral, mas, no início do seu governo, boa parte dos ministros condenava a proposta.’ (Paulo Moreira Leite, Estadão, 8/7/06, ‘‘É um retrocesso’, reage petista’).


De repente a grande mídia foi tomada de assalto por um estupor de encantamento republicano em apoio ao manifesto contra as cotas, que assim se inicia: ‘Nos dirigimos ao Congresso Nacional, seus deputados e senadores, pedindo-lhes que recusem o PL 73/1999 (PL das Cotas) e o PL 3.198/2000 (PL do Estatuto da Igualdade Racial) em nome da República Democrática’. E finaliza indagando ‘Qual Brasil almejamos?’


Mirando mais longe


E seus signatários não se escusam em responder: ‘Almejamos um Brasil no qual ninguém seja discriminado, de forma positiva ou negativa, pela sua cor, seu sexo, sua vida íntima e sua religião; onde todos tenham acesso a todos os serviços públicos; que se valorize a diversidade como um processo vivaz e integrante do caminho de toda a humanidade para um futuro onde a palavra felicidade não seja um sonho. Enfim, que todos sejam valorizados pelo que são e pelo que conseguem fazer. Nosso sonho é o de Martin Luther King, que lutou para viver numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas pela cor de sua pele, mas pela força de seu caráter.’


Mas o referido documento pode ter suas intenções sintetizadas no que falou o cientista político Luiz Werneck Vianna, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj): ‘Estamos diante da possibilidade de vermos aprovados um projeto que pode deixar um rastro muito triste na história do País, uma cunha racial’. (Estadão, 30/6/06). E eu que sempre pensei que cientistas políticos têm por dever de ofício serem analistas da realidade, jamais pensei que pudessem viver no mundo da lua. Como a gente se engana! Tem razão Bia Barbosa:




A grande mídia aproveitou bem o ‘ganho’ dos manifestos para deixar clara sua posição acerca da política de cotas no país. Em editorial publicado nesta quarta-feira, a Folha afirma que, ao tornar obrigatória a reserva de vagas para negros e indígenas nas instituições federais de ensino superior, a Lei de Cotas é uma ameaça à educação universitária. ‘O mérito acadêmico perde espaço, e a duplicidade de critérios estimula o recrudescimento do racismo nos bancos escolares. A prioridade do governo federal deve ser o investimento em educação fundamental e média pública, gratuita e de qualidade. O desafio a enfrentar é longo e custoso, mas sem dúvida mais efetivo do que tomar atalhos demagógicos. O Estatuto da Igualdade Racial mira mais longe, e as distorções que pode causar são ainda mais temíveis. O texto prevê uma classificação racial oficial dos cidadãos, estabelece cotas raciais no serviço público e cria privilégios para empresas privadas que usem cotas raciais para contratar funcionários’, diz o editorial. (‘Manifesto pressiona o Congresso a aprovar Estatuto da Igualdade Racial’, Carta Maior, 5/7/2006 http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/
materiaMostrar.cfm?materia_id=11608
)


Os letrados fingem


Não é possível que a Folha desconheça a classificação racial do IBGE e queira enganar meio mundo ao dizer que é o Estatuto da Igualdade Racial que está inventado classificação racial! Assim também, já extrapolou os limites da decência mínima. Tamanho fingimento não merece que eu perca meu tempo escrevendo algo especial para a Folha. Contento-me em reproduzir carta enviada à Veja, obviamente jamais publicada, em 20.03.05, cujo título é: Racismo deslumbrante (‘Cotas para quê?’, Marcelo Carneiro, Veja, 1897, Ano 38, nº 12, 23/3/2005). Ah, a intelectualidade que assina o manifesto contra as cotas não se acanha em dizer que ‘o chamado Estatuto da Igualdade Racial implanta uma classificação racial oficial dos cidadãos brasileiros’.




——– Mensagem Original ——–


Assunto: Racismo deslumbrante ( Cotas para quê? Marcelo Carneiro, VEJA edição 1897, Ano 38, No. 12, 23 de março de 2005


Data: Sun, 20 Mar 2005 16:25:29 -0300


De: Fátima Oliveira


Para: veja@abril.com.br


‘Sr. Editor


Marcelo Carneiro e Marcelo Néri, em ‘Cotas para quê?’ (Veja, 1897, Ano 38, No. 12, 23/3/2005), exibem, com todo rigor e sem nenhum pudor, uma das faces torpes do racismo: fingem ignorância para escamotear na análise de dados para que suas hipóteses racistas se apresentem como ‘A’ expressão da realidade.


Ora, não creio que eles e Veja não saibam que preto é preto e negro é a soma de preto + pardo. Como confundem preto com negro, só posso dizer-lhes que nunca é tarde para aprender que para a demografia população negra é o somatório de preto + pardo.


Pontuando que não sendo raça uma categoria biológica, todas as classificações raciais são arbitrárias e padecem de limitações. A do IBGE não foge à regra, mas é um padrão de coleta nacional de informações sobre o que chamamos de ‘quesito cor’, ou seja, a ‘cor da pele’, conforme as seguintes categorias: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. PONTO. Ressalto que preto é cor e negro é raça. Não há ‘cor negra’! Há cor preta. É elementar, mas por que tantos letrados fingem confundir? Só o racismo explica.


Estou numa etapa da vida em que para com letrados que exibem burrice para encobrir racismo, a minha tolerância é ZERO. Recomendo aos Marcelos que se ‘letrem’ em ‘quesito cor’ e coloco à disposição escritos de minha autoria, como: ‘Saúde da População Negra Brasil Ano 2001’ (www.opas.org.br/publicmo.cfm?codigo=68), ou ‘Ser negro no Brasil: alcances e limites’ (Estudos Avançados 50. Dossiê O Negro no Brasil, p. 56-60. Vol. 18 – Número 50 – Janeiro/Abril de 2004. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo). Sem que eles entendam os rudimentos do ‘quesito cor’, não perderei tempo com os equívocos de suas análises, apenas alerto que distorcem dados e mentem. Veja pretende compactuar com isso? Ah, cotas para quê? Para obrigar brancos a compartilhar com negros seus privilégios seculares.


Reserva de lacaios


Para que Veja não perca a linha, a surpresa desagradável da última semana foi com o artigo de André Petry, jornalista sempre admirado pela sua coragem de, mesmo no panteão dos colunistas de Veja, em geral se mostra solidário com todas as causas em busca da garantia da cidadania.


Em seu artigo ‘A estupidez racial’ (5/5/06), no qual diz que o Estatuto da Igualdade Racial é ‘uma idéia tão estapafúrdia que chega a criar uma classificação oficial de raças – algo mais ou menos inspirado nos grandes momentos do nazismo’. Mencionando o PL Cotas e o do Estatuto, Petry afirma que ‘esse projetos são o ovo da serpente’ e conclui: ‘O Estado tem a missão de oferecer oportunidades iguais e bons serviços público – bons e universais (…) Não queremos ser uma federação de minorias. Queremos ser um país de cidadãos.’ No que concordamos integralmente.


Mas a vida já demonstrou que nós, povo negro, não podemos estar de acordo quando ele encerra dizendo: ‘É isso que interessa a todos os brasileiros’. Não, meu caro André Petry, não é. E a história está aí para dizer que você está equivocado, já que há brasileiros que necessitam ter reserva de mercado de lacaios para uso pessoal e doméstico.


Obrigação e opção


O que posso dizer mais a uma pessoa a quem eu considero tanto como André Petry? Que a carta que escrevi para sua revista também vale para ele, mas pontuando que não foi o Estatuto da Igualdade Racial quem inventou as classificações raciais e que o IBGE desde 1940 coleta o ‘quesito cor’, que só não foi coletado no Censo de 1970, por ordens expressas da ditadura militar de 1964.


A professora e demógrafa Elza Berquó, em entrevista ao Jornal da Rede Feminista de Saúde, em resposta à seguinte pergunta: ‘Do ponto de vista da demografia, como você avalia a evolução dos estudos sobre a população negra da década de 80 aos dias atuais?, assim se expressou:




O fato de a informação sobre cor haver desaparecido do Censo de 1970, que foi realizado durante a ditadura, deixou um vazio muito grande, porque nós tínhamos dados sobre cor nos censos de 40, 50 e 60. Acontece que o Censo de 1960 só veio a público em 1978 e, ainda assim, incompleto – a divulgação do Censo de 60 nunca foi totalmente completada. Então, quando em 1970 a informação sobre cor não entrou, isto significou que tivemos um vazio de informações sobre a população negra brasileira de 1960 até 1978. Durante 20 anos não havia nenhuma idéia sobre como estava evoluindo a população negra, constituída pelos grupos populacionais que se autoclassificam como preto e pardo. (Jornal da Rede Feminista de Saúde, nº 23, março de 2001)


Esqueceram de alertar que mérito é um conceito cultural e subjetivo, como tenho dito, incansavelmente. Falar em acesso de negros à universidade é coisa proibida e herética. É falar, e esperar impropérios do tipo: nem todo mundo precisa ser ou vai ser doutor. Então, por que todo negro precisa ir para a universidade?’ Como vêem, não há jeito de entabular uma conversa civilizada com partidários da segregação racial nas escolas. Não se trata de que todo mundo, obrigatoriamente, tem de fazer um ‘curso superior’, mas que quem desejar não deverá encontrar entraves de natureza racista.


Afinal, o que é mérito?


Um ministro da educação de FHC disse, sem tremer a cara, que ‘primeiro, os negros têm de fazer o segundo grau!’ Entrou de ‘sola’ no debate dizendo que queríamos entrar na universidade sem terminar o segundo grau! Eis uma má-fé racista de nascença, parida das entranhas da Casa Grande. E ainda tripudiam. Esquecem (será?) que para acabar com a figura do ‘excedente’, desde 1968 o vestibular passou de seletivo a classificatório. Sem delongas, retiremos a viseira. Aptidão para a universidade é concluir o segundo grau. O vestibular – arapuca caindo de podre, expressa a falta de vagas para quem está apto para a universidade – será abolido quando as vagas absorverem a demanda, quando então ao ensino privado de 3º grau será reservado o papel de complementar do ensino público. Chegaremos lá com o fuzuê gerado pelas cotas.


Classificação, desde sempre, é um critério arbitrário, no qual cabe desde maiores notas às cotas para oriundos de escola pública e para negros. E qualquer coisa tida como pertinente. Há algo mais pertinente do que incluir reparação pelos crimes da escravidão no processo classificatório?


Afinal, o que é mérito? Um conceito cultural e subjetivo. Queremos, porque temos o direito, compartilhar com os brancos seus privilégios seculares. Transpor as soleiras da universidade é apenas um deles. E não nos faltam méritos para tanto. Nossos méritos vêm de longe. Há algo mais meritório do que construir um país no lombo? Nos devem um país e ousam nos negar acesso e permanência na universidade pública! Compactuar de tamanha injustiça é optar pelo racismo e quem não a enfrenta é cúmplice.


Pauta civilizatória


É improvável um país chegar a um futuro grandioso quando metade do povo está acuada pelo racismo. Superar o racismo é uma questão estratégica para o Brasil, logo não pode ser apenas um assunto dos negros, o que indica que órgãos de governo e políticas públicas para combate ao racismo não podem ser minimalistas e nem reedições de guetos.’ (Fátima Oliveira, ‘Meritocracia e o racismo nosso de cada dia’, disponível em www.uff.br/nepae/bnn053603.htm)


As cotas existem para enfrentar situações nas quais não há igualdade de oportunidades, são um caminho indispensável para a construção da eqüidade. Constituem uma das muitas formas de políticas de ação afirmativa que visam minimizar exclusões. Constituem uma forma de reparação pública.


No caso das cotas étnicas, é um debate pertinente à subtração de privilégios dos brancos. As cotas étnicas representam o direito à reparação, uma prática pedagógica para forçar os brancos a entenderem que usufruem de privilégios usurpados de afro-descendentes. Logo, é justo e ético que aprendam a compartilhá-los com os negros. Se não o fazem por livre e espontânea vontade, somos obrigados a impor uma pauta civilizatória. Sim, as cotas são instrumentos civilizatórios.


Condição e exigência


Em um país de mentalidade escravocrata como o Brasil, a primeira coisa que é alegada, é a clássica questão do mérito. Mas o que é mérito? Depende das circunstâncias. Além de ser um conceito cultural, mérito está eivado de subjetividades de diferentes nuances, visando atender a uma gama de interesses, dos mais virtuosos, aos mais vis, como a manutenção do status quo racista. Então, não é meritocrático que negros tenham construído esse país no lombo, como animais, e com trabalho escravo? Nos devem um país e nos negam até a igualdade de oportunidade de freqüentar as universidades que negros construíram com suas próprias mãos? (http://marchazumbimais10.blogspot.com/
2005_09_11_marchazumbimais10_archive.html
)




O racismo se adequa a novas situações, mas mantém o paradigma: a opressão de raças/etnias tidas como superiores. No debate sobre ações afirmativas, algumas universidades saem pela tangente e, estribadas no mito da democracia racial, falam, genericamente, em democratização da universidade, fogem da discussão das cotas étnicas, ignoram o Plano de Ação de Durban e a tramitação no Congresso Nacional de uma proposta de política anti-racista de Estado, o Estatuto da Igualdade Racial! Por que não vêem, desde já, com olhos solidários as questões étnicas? (…)


A conclusão do segundo grau é a única condição legal e a exigência moralmente sustentável para acesso à universidade! Até à eqüidade, as cotas étnicas são direito à reparação e um modo pedagógico de obrigar os brancos ao aprendizado de coletivizar privilégios que usurparam de afrodescendentes.’ (Fátima Oliveira, ‘A pedagogia das cotas étnicas’, O Tempo, BH, 14/5/2003).


Arrogância inominável


O manifesto da intelectualidade contra as cotas é um acinte. Como podem 114 (sim, SÓ cento e quatorze) intelectuais se arvorarem do direito de condenar, ainda mais, metade da população à marginalidade de bens e serviços do Estado brasileiro?


Conforme o Censo Demográfico de 2000, somos 169,5 milhões de brasileiros, dos quais 50,79% do sexo feminino. Os negros já perfaziam 45,3% do total da população. As mulheres negras equivalem a 49% da população negra, correspondendo a 37.602.461 habitantes. ‘Esses índices populacionais revelam que ao tratar da população afro-descendente não podemos falar de ‘minorias’’. Mais debochado e moral e politicamente degradante é o Congresso Nacional e a presidência da República acolherem como legítimo e justo o que definem 114 pessoas para a vida de 45,3% do povo brasileiro. (Documento Encontro Nacional Olhares da Mulher Negra sobre a Marcha Zumbi +10, Guarulhos, SP, maio de 2005).


Em segundo lugar, seria risível, se não fosse trágico e mesquinho, que a intelectualidade signatária do ‘manifesto contra as cotas’ ou parte expressiva dela não estivesse legislando em causa própria a partir do desejo mesquinho de resguardar o seu mercado de trabalho de ‘estudos de negros’, contando com a assinatura de Caetano Veloso, que esqueceu o que escreveu em Dom de iludir: ‘cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é’. Logo, só quem sente opressão racial/étnica sabe exatamente o que ela é e por mais solidários que sejam os brancos para com a luta anti-racista, e há brancos sinceramente solidários, eles jamais saberão o que é ser vítima de racismo.


Em terceiro lugar, pretender barrar a roda da história da luta pelos direitos humanos é de uma arrogância inominável, além do que esqueceram-se que o combate ao racismo é parte integrante da luta pelos Direitos Humanos e ainda ousam dizer que pensam como Martin Luter King e usam seu nome em vão!


Promessas de democracia


Relembremos trechos de Martin Luther King, em ‘Eu tenho um sonho’, discurso proferido em 28/8/1963, na Marcha de Washington, à qual compareceram 250 mil pessoas, que resultou um ano depois na aprovação da Lei dos Direitos Civis – e ele foi assassinado aos 38 anos (4 de abril de 1968):




‘Cem anos atrás, um grande americano, na qual estamos sob sua simbólica sombra, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros.


Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre (…) Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição.


De certo modo, nós viemos à capital de nossa nação para trocar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo americano seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com ‘fundos insuficientes’ (…)


Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranqüilizante do gradualismo.


Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia.


Quadro extremo


E no meio do seu discurso Martin Luther King entoou: ‘Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto./Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos,/De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!’ (…) E finalizou dizendo: ‘E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro’.


No dia 4 de julho chegou ao Congresso Nacional, pelas mãos de afro-descendentes, reconhecidos ativistas da luta anti-racista do Brasil, o ‘Manifesto em favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial’, assinado por cerca de 425 personalidades do mundo acadêmico e de movimentos sociais e 157 estudantes de graduação e pós-graduação, do qual nos contentamos em pinçar o seguinte parágrafo:




Colocando o sistema acadêmico brasileiro em uma perspectiva internacional, concluímos que nosso quadro de exclusão racial no ensino superior é um dos mais extremos do mundo. Para se ter uma idéia da desigualdade racial brasileira, lembremos que, mesmo nos dias do apartheid, os negros da África do Sul contavam com uma escolaridade média maior que a dos negros no Brasil no ano 2000; a porcentagem de professores negros nas universidades sul-africanas, ainda na época do apartheid, era bem maior que a porcentagem dos professores negros nas nossas universidades públicas nos dias atuais. A porcentagem média de docentes nas universidades públicas brasileiras não chega a 1%, em um país onde os negros conformam 45,6 % do total da população. Se os Deputados e Senadores, no seu papel de traduzir as demandas da sociedade brasileira em políticas de Estado não intervierem aprovando o PL 73/99 e o Estatuto, os mecanismos de exclusão racial embutidos no suposto universalismo do estado republicano provavelmente nos levarão a atravessar todo o século XXI como um dos sistemas universitários mais segregados étnica e racialmente do planeta! E, pior ainda, estaremos condenando mais uma geração inteira de secundaristas negros a ficar fora das universidades, pois, segundo estudos do IPEA, serão necessários 30 anos para que a população negra alcance a escolaridade média dos brancos de hoje, caso nenhuma política específica de promoção da igualdade racial na educação seja adotada. Para que nossas universidades públicas cumpram verdadeiramente sua função republicana e social em uma sociedade multi-étnica e multi-racial, deverão algum dia refletir as porcentagens de brancos, negros e indígenas do país em todos os graus da hierarquia acadêmica: na graduação, no mestrado, no doutorado, na carreira de docente e na carreira de pesquisador.


Delírios banalizadores


Quem pode, eticamente, no Brasil, fazer uso do célebre discurso de Martin Luther King? Deixo a resposta nas mãos de quem me lê. Os dois manifestos estão acessíveis, na íntegra, no www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml


Pela enésima vez, repito: a opressão racial/étnica é um fato que independe dos saberes da genética molecular comprovarem que considerando-se o DNA como o material hereditário e o gene como unidade de análise biológica, é absolutamente impossível dizer se estas estruturas pertencem a uma pessoa negra, branca ou amarela. Isso é o óbvio e o ululante, pois o gene carrega possibilidades de caracteres e não os caracteres. O que significa que geneticamente não há raças humanas. O que não autoriza ninguém a dizer que o racismo não existe.


Na impossibilidade de tecer considerações sobre todos os delírios naturalizadores e banalizadores do racismo constantes na ‘Carta Pública ao Congresso Nacional – Todos têm direitos iguais na República democrática’, assim como sobre o pensamento acadêmico e até o ‘achismo’ moral e politicamente insustentável estribado no que chamam de ‘racialização’ do país, de todos os signatários dela, o que sem sombra de dúvida num debate público seria da maior relevância, analisarei especificamente o olhar acadêmico de ‘racialização’ de dois dos signatários do ‘manifesto contra as cotas’. E o farei porque conheço o trabalho de ambos e sinto-me em condições técnicas, políticas e morais para fazê-lo, inclusive porque sendo ambos professores de universidades federais do meu país é da minha competência ética não me escusar de analisar seus trabalhos, sempre que for instada a fazê-lo.


Agradeço a Alzira Rufino, Márcio Alexandre Gualberto e Sueli Carneiro pelas preciosas discussões e recomendações durante a elaboração deste artigo.

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Médica, secretária-executiva em exercício da Rede Feminista de Saúde,