A retomada do debate sobre a maioridade penal expõe com clareza os tormentos do gigante brasileiro ao buscar a superação dos seus impasses. Uma sociedade aprisionada por dogmas é, por natureza, menos propensa à elasticidade e os nossos dogmas são pré-natais, impostos no momento mesmo em que a terra foi descoberta (ou achada).
Dogma (do grego = o que nos parece bom) é um instrumento de dominação; o antídoto mais frequente para eliminar controvérsias é também o mais consumido em agrupamentos que abominam diferenciações. Para arrogantes e onipotentes, o Outro – com tudo aquilo que lhe parece bom – só serve para atrapalhar e, assim, por impaciência e suposta eficácia, universaliza-se o dogmatismo e elimina-se o contraditório e a contestação.
A busca da verdade por meio do diálogo (como pretendia Sócrates) é arbitrariamente excluída. O pré+conceito é a matéria-prima essencial para a fabricação de dogmas e estes constituem a forma mais estúpida de montar maiorias paquidérmicas.
Erroneamente acreditamos que paquidermes são enormes e pesados, na realidade são bestas com pele espessa (também do grego, dermos = pele), crostas impenetráveis, pouco maleáveis. Se racionais poderiam ser classificados como dogmáticos. Incapazes de aprender e apreender.
Como dogmas não existem isolados, as limitações ao livre-pensar fabricam um sistema agregado de dogmas que se atraem e se reforçam mutuamente. Polarizações não ocorrem em esferas únicas, espalham-se pelas adjacências e assim a maioridade penal deixa a esfera jurídica e se cimenta artificialmente num contexto mais amplo – mental, moral, cultural e, sobretudo, político – onde não cabem moderações nem mediações de qualquer espécie. Ou tudo ou nada. Este atalho só pode levar a rupturas.
Ao largo
Para barrar o crescimento da violência há um razoável arsenal de alterações capazes de produzir efeitos mais imediatos e eficazes além da mudança pura e simples da idade limite para a responsabilização criminal. Não é necessário emendar a Constituição a cada momento para satisfazer premências conjunturais.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) oferece um leque de opções para tornar mais rigorosa a aplicação de sentenças contra menores infratores, sobretudo reincidentes. O Conselho Nacional de Justiça, devidamente amparado pelo STF, tem condições de influir na magistratura para coibir a sistêmica escravização de menores por organizações criminosas ou bandidos adultos.
A questão do menor infrator relaciona-se diretamente com a questão da descriminalização do aborto. São conexas, interativas. O mesmo radicalismo do “Espírito de Fla-Flu” que contamina nossa vida partidária está transbordando perigosamente para o terreno doutrinário e institucional, inviabilizando qualquer possibilidade de diálogo e interlocução. Sobretudo porque o Estado laico e secular imaginado na Carta Magna é uma abstração, fantasia rigorosamente desligada da realidade.
Nossa mídia, mais uma vez, mostra-se incapaz de mediar. Neste caso consegue tomar posições diferenciadas, mas não tem força para desfazer os dogmas, nem contornar os impasses. Ao contrário, só os agrava ao estimular as execrações.
Se pretendemos uma reforma política é preciso desfazer o nó dogmático que torna a sociedade brasileira um ser paquidérmico, duro, inerme, invulnerável às mutações, infenso ao aperfeiçoamento e à evolução. Alheio ao esclarecimento. Nessas questões fundamentais escancara-se nossa falência basilar: passamos ao largo do Iluminismo.