Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Para não gritar sozinho

Galinha de casa não se corre atrás, diz o ditado. Isto é, o que a gente já tem, a gente alimenta, protege, admira até, e corre atrás daquilo que a gente ainda não tem. Sobre o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, instituído pelas Nações Unidas para ser celebrado no dia 3 de maio, gostaria de convidar todos os jornalistas com coragem – os sem coragem estão dispensados, converso com estes mais adiante – para invocar dentro de cada um o seu repórter sem fronteiras, mas não se trata da ONG Repórteres sem Fronteiras, essa é como aquela galinha: mesmo que alguns a critiquem, está aí e merece milho e trato. Refiro-me a um repórter sem fronteira que não tenho visto ultimamente, aliás vi muito pouco. Os que me vêm à memória foram demitidos de seus empregos.


Em plena conjuntura histórica internacional que expõe cidadãos à discussão sobre o uso impróprio da burka, os repórteres, vamos promovê-los, todos, os jornalistas com letras maiúsculas (com os de letra minúsculas, eu trato mais adiante) insistem em usar uma burka que, inclusive, cobre-lhes os olhos completamente, o cérebro, a alma até. Até quando?


Não sei se algum repórter sem fronteiras levantará esta bandeira que levanto aqui neste Dia Mundial da Liberdade da Imprensa de 2010 e pergunto, novamente, até quando vou ficar gritando quase sozinho?


De frente para o espelho


Ao declarar o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, as Nações Unidas justificam o ato pela necessidade de sensibilização dos governos quanto à importância da liberdade de imprensa (nunca será demais frisar) e o respeito quanto à liberdade de expressão (em geral) consagrada sob o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas até quando a ONU também manterá esta espécie de burka no texto e na própria essência desta declaração essencial, vital para todos os cidadãos do planeta?


Assunto peludo, este da burka, porque traz à tona a velha máxima de Francis Bacon, para novos males, novos remédios, posto que a tal indumentária pode esconder o perigo de um atentado (argumento absurdo!), é o que dizem na Bélgica os legisladores que recentemente proibiram por lei o uso da coisa, e na França querem fazer a mesma coisa. De qualquer jeito, há de fato um fio da meada por onde se defender o perigo de um homem-bomba vestido de mulher, usando uma burka, solto numa grande metrópole. Cabeluda esta discussão, pois abre precedente. Por exemplo, há o risco de um gaúcho de bombacha ser impedido de caminhar pelas ruas de Paris com a indumentária que é inclusive o traje oficial instituído por lei na capital gaúcha, único lugar no Brasil que desfruta de preservação de regionalismo tão singular.


Mas deixemos de circunlóquios. Por que a analogia com a burka e a cegueira, ou falta de coragem dos jornalistas a que me refiro? Refiro-me, não! Peço a atenção, chamo à responsabilidade, conclamo que deixemos a galinha que mora dentro de cada um de nós (quem não tem medo de algo que atire a primeira pedra) e falemos de frente para o espelho sobre a verdadeira barreira da nossa liberdade de imprensa.


A galinha assustada cacareja


Ora, há um elã de ironia no website da ANJ – Associação Nacional de Jornais no convite oportuno à adesão necessária às cartas de protesto disponíveis no website da WAN-IFRA – Associação Mundial dos Jornais:


** Ao Irã: carta ao presidente Mahmoud Ahmadinejad pedindo o fim da intimidação aos jornalistas.


** Ao México: carta ao presidente Felipe de Jesus Calderón Hinojosa ratificando a preocupação internacional quanto à violência a jornalistas.


** Às Filipinas: carta à presidente Gloria Macapal-Arroyo pedindo o fim à cultura de violência e impunidade contra jornalistas.


** À China: carta ao presidente Hu Jintao levantando a preocupação sobre o alto nível de intimidação e violência contra jornalistas.


** Ao Sri Lanka: carta ao presidente Mahinda Rajapaksa demandando o fim do assassinato e seqüestro de jornalistas.


Por que um elã de ironia sobre assuntos tão sérios e revestidos de importância declarada pela própria ONU e pela declaração dos Direitos Humanos? Porque só ficaram os olhinhos de fora. Alexandre está diante de nosso sol, mas fingimos que preferimos a sombra.


Não são os governos necessariamente os maiores inimigos da liberdade de imprensa, eles estão caindo do cavalo pouco a pouco, um a um, felizmente. Nosso medo, nossa galinha assustada cacareja frenética dentro do galinheiro com medo desse ninho das associações nacionais de jornais, de mídias de toda sorte, os donos dos veículos, o capital. A própria ONU não canta de galo porque seu milho vem da mão dos senhores do capital, dos governos financiados pelos poderosos e verdadeiros donos do capital.


Honestos com as limitações


Trocamos de poleiro num mesmo cercado existencial limitado e alimentamos um comportamento insano, uma corrida tresloucada por consumo e produção de bens até a exaustão de energias, de terras, de águas, de valores e princípios vitais para a qualidade de vida e decência do homem sobre este planeta falido, mantido com os tubos do capital.


É contra este cerceamento da liberdade de imprensa que não temos lutado, do qual nos submetemos com os olhos baixos – ao patrão, ao capital –, até quando?


Aqueles que não têm coragem de contrariar essa verdade são mais dignos de respeito do que todas as galinhas assanhadas que fazem (vou utilizar uma frase recorrente) revolução com um cadáver entre os dentes, vão até a metade do caminho, levantam a bandeira a meio pau, são medíocres defensores da liberdade de imprensa. Os demais, pelo menos são honestos com as próprias limitações.


Dedico estes minutos de reflexão aos colegas que enfrentam todo o tipo de fronteira no seu dia-a-dia no exercício da profissão de jornalista.

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Jornalista e escritor