O envio ao Congresso do projeto de lei do governo para regulamentar o acesso a informações públicas é uma boa oportunidade para jornalistas refletirem sobre o uso de dados que já estão disponíveis a repórteres e demais cidadãos. A imprensa está longe de ser a única, ou a principal, beneficiada por esse tipo de acesso, mas é fato que informações mantidas por instituições públicas são de utilidade enorme na apuração jornalística.
O Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), que fornece detalhes das saídas de recursos do Orçamento da União, foi criado em 1987 e, nos primeiros anos, só podia ser consultado por funcionários do Executivo, deputados e senadores. Repórteres que precisavam de dados sobre gastos do governo pediam ajuda a gabinetes de parlamentares. Há mais de uma década, o acesso direto a grande parte dos dados do Siafi foi liberado por meio de portais como os do Senado, da Câmara dos Deputados, de uma organização não-governamental e até do governo. Mesmo assim, a ‘terceirização’ da busca de informações sobre o orçamento continua.
Investigação estava ‘encerrada’
Em fevereiro de 2002, o jornal Correio Braziliense publicou a manchete ‘Verbas para combate à dengue caem desde 1997’, com base em informações do gabinete de um deputado. José Serra estava deixando o Ministério da Saúde para concorrer à Presidência da República e os casos de dengue se multiplicavam no país. A leitura dos dados estava equivocada, pois o que houve foi uma mudança na forma de repasse das verbas para a dengue. Em janeiro de 2004, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem com o título ‘Lula fez menos investimentos e pagou mais dívida que FHC’. O levantamento, feito por uma ONG, comparava o uso de recursos nos anos 2002 e 2003. Os dados estavam errados, pois ignoravam mais da metade do mês de dezembro de 2003. As informações usadas nas duas reportagens estavam disponíveis na internet para pesquisa e o acesso direto poderia ter evitado a publicação de matérias incorretas.
Um exemplo bem mais grave de mau uso de informações públicas ocorreu em meados de 2006, quando uma síndrome neurológica, de causa desconhecida, estava matando e hospitalizando moradores do sul do Maranhão. Técnicos do Ministério da Saúde mandados ao local fizeram um primeiro diagnóstico, registrado pela imprensa. O site da Agência Brasil, por exemplo, deu matéria com o título ‘Falta de vitamina B-1 matou 33 no Maranhão, informa Secretaria da Saúde’. A Folha publicou matéria com o título ‘Falta de vitamina B-1 causou as mortes no Maranhão’. Na matéria, um funcionário graduado do Ministério da Saúde informava que a investigação sobre a síndrome estava ‘encerrada’. Autoridades sanitárias explicavam em matérias que a carência da vitamina era conseqüência da dieta alimentar das vítimas, pobre em legumes, ovos e leite.
Aprofundamento de apuração jornalística
Na mesma época de divulgação dessas matérias, estava disponível no portal do Ministério da Saúde um boletim eletrônico detalhando o que havia sido encontrado no Maranhão. Uma leitura com um mínimo de atenção do boletim rendia algumas informações interessantes: 12 das 33 primeiras mortes ocorreram em maio de 2006; sete mortes foram registradas em Imperatriz e as demais nas proximidades; e 94% das vítimas da síndrome, somadas às mortes e hospitalizações, eram homens com idade entre 14 e 44 anos. O bom uso dessas informações deveria ter levado a imprensa a alguns questionamentos. Se a síndrome ocorrera por causa da dieta alimentar, por que mulheres, crianças e velhos não estavam entre as vítimas? Por que o problema de dieta alimentar se concentraria em uma região e um período do ano, se em outras áreas próximas e outras épocas a alimentação é semelhante?
Como a quase totalidade da imprensa não se deu conta da inconsistência do diagnóstico das autoridades, a síndrome foi combatida com doses extras de vitamina B-1 e orientações sobre dieta alimentar para moradores da região. E foi assim que, um ano depois, o problema reapareceu matando pelo menos mais quatro maranhenses e levando cerca de 200 aos hospitais. Só então um estudo da Embrapa mostrou que a causa da síndrome não era a dieta alimentar na região, e sim a toxina liberada por um fungo que contamina o arroz. A contaminação se dá basicamente num tipo de arroz fresco, que não é beneficiado e costuma ser comido na própria lavoura. Era por isso que a síndrome havia atingido basicamente homens que estavam envolvidos com a colheita do arroz e havia se registrado em uma região e época determinadas.
Depois de algumas explicações, os equívocos do Correio e da Folha em relação ao uso de dinheiro do Orçamento da União foram reparados sem causar mais que algumas dores de cabeça. No caso maranhense, no entanto, o bom uso de informações públicas pela imprensa poderia ter evitado mortes. Assim, é de se esperar que se houver algum avanço relevante no trato de informações por instituições públicas, com a mudança na lei, isso seja acompanhado por um aprofundamento de frentes de apuração jornalística. Precedentes como os relatados aqui mostram que a liberação de informações públicas não se traduz, necessariamente, no acesso a elas.
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Jornalista, professor do Departamento de Jornalismo da Universidade de Brasília e coordenador, junto com Guilherme Canela, do livro Acesso à informação e controle social das políticas públicas (Andi; Artigo 19, 2009)