Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Paradoxos e contradições do poder

1. Considerações gerais

Logo após promulgada a nossa atual Constituição, expressivas lideranças do mundo político e da sociedade civil organizada, ao lado de eminentes operadores do direito e de respeitáveis integrantes da vida acadêmica começaram imediatamente a empregar e a somar esforços para vê-la sendo cumprida, ao tempo em que figuras representativas do executivo e do próprio parlamento que a aprovara – como é sabido, os membros das duas casas do Congresso Nacional, então, inclusive os senadores ‘biônicos’, foram também os constituintes, ou seja, aqueles que votaram e autorizaram o texto constitucional –, secundados por determinados setores da mídia e do empresariado, a bombardeavam com os mais diferentes projéteis, numa guerra em que a tomavam por uma Carta Política que tornaria o país ingovernável, e assim diziam e propagavam aos quatro ventos.

Dura, então, fora a luta inicial travada em prol da afirmação e do cumprimento de tudo aquilo que já continha o novo texto constitucional, mas naquele enfrentamento não havia nada de muito grave e que pudesse vir a fugir do recém implantado modelo democrático, de modo que prevaleceu o Estado de direito, o qual, com a mesma Carta, passou a ser chamado ‘Estado democrático de direito’. Este, não obstante todas as crises pelas quais o Brasil já passou desde o 5 de outubro de 1988, vem dominando os nossos espíritos e com isto sendo fortalecido, mais e mais, dia após dia, pois a consciência democrática do país parece não ceder às inúmeras tentações de retrocessos, por conta dos pequenos e grandes fracassos econômicos, depois que planos surgem e se vão, bem como às inúmeras dificuldades antepostas na luta contra a corrupção, promessas de campanhas ignoradas e descumpridas, etc.

Talvez todo aquele quadro de adversidades que, como observado acima, teria não poucas vezes levado à prova a consciência democrática nacional – que assim afirmou-se e reafirmou-se sempre contra os acenos autoritários – e frustrado amplos segmentos sociais que não viram atendidas as expectativas de transformação que muitos vislumbraram com a nova Constituição, seja também o responsável por uma certa e peculiar decepção havida em determinadas áreas da sociedade brasileira e em uns tantos setores específicos das nossas elites, a qual seria traduzida nos últimos dez anos por um forte e inequívoco apelo dirigido ao mundo jurídico, especialmente ao seu núcleo dirigente e operativo, digamos assim, representado pelo Poder Judiciário e o Ministério Público.

Com efeito, os juízes e os membros do Ministério Público – com destaque dentro deste para os mais jovens – parecem encarnar um inequívoco suporte de idealismo e moralidade no âmbito do Estado, e assim concorrem para uma expectativa de transformação social que teria sido frustrada pela falta de superação daquele quadro composto de fatores maléficos e toda a sorte de adversidades opostos ao futuro e ao desenvolvimento do país – planos econômicos mirabolantes e fracassados, corrupção resistindo e sempre surpreendendo a cada dia, promessas de campanha ignoradas e descumpridas etc. Referido quadro político, por sua vez, contribuiria para a produção e a reprodução do perverso quadro social composto de violência, misérias no campo e nas cidades, analfabetismo, doenças, etc.

A persistência do atraso e das amplas e injustas desigualdades sociais, portanto, teria encontrado naquele distinto e especial setor do Estado – o complexo composto pelo Poder Judiciário e o Ministério Público – um bastião de efetiva resistência moral e política contra aspectos cruciais insertos no retromencionado quadro de adversidades, vindo a constituir-se, assim, em um forte e poderoso aliado daqueles segmentos sociais e dos tantos setores das elites que viram-se decepcionados e frustrados com as expectativas de transformação que já poderiam, supostamente, ter sido concretizadas pela via do voto democrático e popular.

O voto, então, especialmente o voto direto para a Presidência da República, que no passado recente fora o principal fator de mobilização nacional com vistas às eleições diretas para o ocupante daquele que é o mais importante mandatário e magistrado do país, e de cuja campanha em favor de sua adoção – do voto direto para o cargo de Presidente da República – teria resultado na convocação da Assembléia Nacional Constituinte, fonte originária da atual Carta Política, desde a crise de governo oriunda do caso PC Farias, e da conseqüente destituição do ex-presidente Fernando Collor do cargo, havia se transformado para muitos brasileiros em uma questionável – embora ainda não dispensável – força disponibilizada em favor da cidadania e da democracia.

Tamanha tem sido, desde então, a concentração de esperanças por parte de muitos brasileiros na forma de agir e operar dos nossos juízes, procuradores e promotores, contra os desvios de autoridades nas mais distintas áreas do Estado, desde os grandes centros urbanos aos mais remotos rincões do território nacional, que aqueles governantes – assim considerados também os membros do Poder Judiciário e extensivamente os procuradores e promotores, na medida em que o conceito de governo não abrange apenas o Executivo, mas toda a máquina do Estado composta pelos três poderes da União e de suas unidades federativas que o conduzem –, na suposição de não poucos brasileiros, teriam força, autoridade moral e guardariam a necessária honestidade que deve haver em todo homem público etc, pela simples razão de os mesmos supostos representantes do povo ali situados prescindirem do voto popular na investidura de seus respectivos cargos.

Viria se acentuando, assim, como decorrência daquilo que foi observado acima, a desconfiança, junto com o equivocado e histórico preconceito de setores da nossa sociedade – especialmente de algumas áreas das nossas elites – contra a força do voto popular, que ainda não seria visto como descartável, mas novamente como produto de diferentes modos e meios de manipulações, entre as quais as midiáticas (novas) e as arcaicas (aquelas tradicionais), ou seja, como resultado de todas as debilidades e contradições contra as quais o pleno retorno do mesmo fora objeto da grande luta empreendida em desfavor do regime autoritário, que negava-lhe a imprescindível e ampla efetividade, ou melhor, o seu exercício vertical pela cidadania.

Hoje, apesar de todos os percalços do caminho, ao longo desses últimos quinze anos, óbvio que a cidadania, ampliada, madura e fortalecida, já dispõe, certamente, de um novo perfil, bem distinto daquele restrito e tradicional, como resultado de fatores internos – tanto os favoráveis quanto os desfavoráveis, que interagindo entre si, evidentemente, permitiram a construção do perfil positivo que a cidadania apresenta em nossos dias, no que pese ainda todas as contradições existentes – e externos, os quais, juntos, a motivaram na direção da democracia participativa.

Aquele perfil novo e fortalecido que a cidadania vem apresentando em nossos dias, como observado acima, por outro lado, foi extremamente favorecido, sem qualquer sombra de dúvida, pela aquisição de um notável grau de consciência política por parte da sociedade civil, que também ampliou, consideravelmente, o seu grau de organização, bem como em decorrência da expansão do direito, esta verificada como resultado do complexo movimento da história que permitiu fosse feita a consolidação do Estado democrático de direito, o qual, por sua vez, é devedor de uma Carta Política moderna em seus princípios básicos e socialmente avançada, mas também pelos novos papéis que o Poder Judiciário e o Ministério Público vieram a desempenhar nos cenários político e social, óbvio.

2. Considerações centrais

Enquanto o Judiciário e o Ministério Público (instituição que veio a ter um papel ímpar e inédito dentro do panorama geral do país, por conta da nova Carta Política) tornavam-se peças fundamentais no concerto do Estado democrático de direito, os poderes Executivo e Legislativo, nos três planos – federal, estadual e municipal –, muitas vezes acusados por inércia ou inépcia, denúncias de corrupção ou descumprimento de promessas de campanha, dentre outros graves problemas que envolviam(e ainda envolvem) muitos de seus atores, eram(como ainda são) levados ao descrédito social e enfraqueciam-se(o enfraquecimento é fenômeno que prossegue, aparentemente). Esses aspectos negativos seriam apresentados como decorrência daqueles mesmos problemas, mas também por força das atuações específicas de juízes, procuradores e promotores, que agiam e continuam a agir, quase sempre, dentro dos limites da Constituição.

O desgaste sofrido nos últimos anos pelos poderes Executivo e Legislativo não é uma exclusividade brasileira, obviamente, mas em nosso país ela tem algumas causas peculiares e intrínsecas à nossa realidade política, das quais uma destacarei agora. Dentre os três poderes da União, e também dos estados, ambos são os que(dentro de um quadro constitucional marcado por características distintas em relação a outros países sul-americanos e europeus, por exemplo) disputam eleições – o que significa promessas feitas em campanhas, custos questionáveis dessas, descumprimento de programas, etc – e são controlados por um poder supostamente técnico – o Judiciário – e que não as disputa, além do que, esse mesmo poder, afora as contas(da contabilidade pública) prestadas ao TCU, ou ao TCE (conforme o caso), nenhuma outra conta dever prestar à sociedade, a não ser aquelas realizadas por puro e simples consciência de dever ético, ou ainda por nada mais que liberalidade e conveniência circunstancial(as pressões das mídias e da opinião pública são uma forte recomendação para que as mesmas sejam permanente ou eventualmente realizadas), como o fazem, numa o noutra hipótese, muitos tribunais Brasil afora.

Por outro lado, nesse panorama complexo e relativamente hostil em que se debatem, então, representantes dos Poderes Executivo e Legislativo, de um lado, e a sociedade civil, do outro, esta apoiada institucionalmente pelo Judiciário e o Ministério Público, com a mídia no meio, óbvio que o mandato popular vem a ser o instrumento mais frágil da democracia – por sua intrínseca vulnerabilidade, marcada pelos mais diferentes aspectos, sejam aqueles específicos, como a disputa eleitoral, ou os conjunturais, como, por exemplo, o desgaste de diferentes origens sofrido pelos políticos –, o que constitui-se em algo paradoxal dentro de um regime político que é republicano e representativo. Mas essa é a mais pura e simples realidade, pública e notória, ou não?

Apesar de graves denúncias de corrupção envolvendo membros do Poder Judiciário – muitas das quais já confirmadas em processos concluídos, ou em outros processos em fase de tramitação recursal – os juízes, como também os procuradores e promotores do Ministério Público, que não precisam como aqueles do voto popular para permanecerem em seu cargos, continuam a gozar da confiança e do bom conceito de setores influentes das elites e mesmo de muitas áreas importantes do movimento sindical e, de um modo geral, de amplos segmentos da sociedade brasileira. Toda essa realidade, em confronto com as graves dificuldades e os grandes desgastes vividos ultimamente pela classe política leva o estamento jurídico, especialmente o estatal – juízes e membros do Ministério Público –, a uma posição relativamente confortável em variados aspectos da vida pública dos que o integram.

Dentro deste diapasão, deve ser anotado que o relativo conforto de juízes e membros do Ministério Público em relação à classe política tem levado à preocupante ilusão, originária tanto de dentro quanto de fora das respectivas corporações, de que o Poder Judiciário tem suficiente e inquestionável legitimidade, no âmbito do regime democrático e republicano abraçado em nossa Carta Política, para, no exercício de suas atribuições constitucionais e legais, intervir na lei orçamentária, redirecionar políticas públicas, impor ao administrador fazer ou deixar de fazer determinada prática de gestão, etc, por provocação do parquet, por exemplo, ou não.

Ali, naquele tipo de prática de jurisdição, apenas cumprindo o que determina o direito, nada mais que isso – o que já é tudo dentro do Estado democrático de direito – , um juiz singular, ou um tribunal qualquer, investidos no poder apenas pelo conhecimento testado – esse nas provas do concurso público de juiz – ou pelo saber presumido – do ‘notório saber’ –, e sem a obtenção de um único voto popular, poderão desfazer deste, na medida em que venham a desautorizar aqueles que o representam, com uma intervenção em atos de gestão ou exercendo o controle jurisdicional de constitucionalidade, através de uma simples decisão singular, ou mesmo por via de acórdão. Eis um grande e inaceitável paradoxo da democracia representativa no Brasil, dado o inequívoco balizamento, no texto constitucional – art.1º, parágrafo único da Carta Política – do exercício do poder pelo povo, que o fará, exclusivamente, por dois meios, apenas, seguintes: através de representantes eleitos – nos termos e na conformidade do art.60, §4º, II, da Constituição –, sem exclusão de nenhum dos três poderes, óbvio, ou diretamente – iniciativa popular, plebiscito, etc.

Sem terem passado pelo crivo das urnas, das quais prescindem, juízes e membros do Ministério Público, no entanto, atendem às pequenas e às grandes necessidades do povo, atuando em favor de determinado direito individual ou dos interesses público e coletivo. No âmbito deste, os direitos ditos sociais, os mais visados pelo parquet, por óbvias razões, são conduzidos para questionamentos, quando feridos, ao Poder Judiciário.

Em conseqüência dessas realidades – jurídica e prática – expostas acima, não poucos juízes, e mais ainda que estes, a quase totalidade dos membros do Ministério Público – principalmente do MPU – foram levados a adquirir conhecimentos fundamentais e de certa profundidade, além de uma abrangente consciência política, ética e moral acerca dos grandes problemas brasileiros, situação essa que os tem tornado muitas vezes ativos participantes da vida política nacional, isso de uma maneira tal que os faz quase que rotineiramente ouvidos na mídia, quando apresentam-se de um modo em que se fazem aparentar dotados de um notável sentimento de soberba, especialmente em relação à classe política, ordinariamente considerada, velada ou expressamente, pelos menos em parte, corrupta e despreparada.

Sobre aquele aparente sentimento de superioridade de membros do Judiciário e do Ministério Público em relação à classe política e à forma pela qual esta se conduz na vida pública para manter-se no poder, devo registrar, a título de ilustração, por oportuno e pertinente, o episódio em que um conhecido procurador da república de Brasília, quando era entrevistado por um repórter sobre determinado governante de um estado brasileiro, a este referiu-se como ‘o governante de plantão’– expressão usada por setores da oposição na época do regime militar em relação aos generais-presidentes, considerados ditadores. Ou seja, o portador de um mandato popular recebia o epíteto de ‘governante de plantão’, isso como claro e inequívoco sinal de total falta de consideração daquele parquet para com alguém que, bem ou mal, não importa, representava o povo e o governava naquele instante.

Mais que uma falta de consideração para com alguém que representava o povo e o governava naquele instante, deve ser observado também que com aquela referência ficava patente a adicional falta de apreço e do devido respeito do parquet para com a própria instituição do voto popular – o que é bem mais grave e preocupante.

Ora, dado que tanto o mandato do parlamentar quanto o do governante são obtidos através do voto popular, ou seja, por meio de procuração supostamente passada através de mil vícios e de diferentes formas de manipulações da vontade do povo, a própria instituição daquele – do mandato popular – não é algo que possa ser comparado à representatividade do parquet, posto que, via de regra, ética, moral e intelectualmente inferior ao rigoroso concurso público de provas e títulos que permitiu estivesse aquele procurador da república na posição de defensor ‘da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis’, consoante o disposto no art.127, caput, da Constituição Federal.

Aquela mentalidade objeto da figuração acima parece confirmar-se no plano da realidade e predominar, não somente entre os membros do Ministério Público, mas também entre a maioria dos juízes de todas as instâncias e justiças especializadas, segundo aquilo que chega ao público através do pouco que vaza do ainda fechado círculo do mundo jurídico estatal e de algumas conclusões que podem ser extraídas de determinadas declarações das mais expressivas lideranças da magistratura.

Sensíveis às práticas e às políticas desrespeitosas de direitos sociais e coletivos, tanto de parte de instituições públicas quanto de privadas, bem como ao pouco caso que determinados governantes fazem do interesse público, algumas daquelas lideranças da magistratura, e também do Ministério Público, ao transmitirem à sociedade a reação do Estado contra as mesmas – práticas e políticas, por exemplo –, passam-nos a impressão de que a aplicação da lei e a defesa da ordem jurídica, respectivamente, têm sido realizadas com base em conceitos e parâmetros limitados por uma visão de mundo política e ideologicamente comprometida, e, mais que isso, por uma visão de mundo dentro da qual sugerem haver pouco ou nenhum apreço à democracia representativa, e nesse último ponto fixariam residência mesmo alguns daqueles juristas do Estado que acreditam exercer ações jurisdicionais ou de defesa da ordem jurídica de forma ideologicamente neutra, do tipo kelseniano ou similar. Ali no todo que constitui um verdadeiro mix de conceitos e idéias, muitas destas, aliás, contraditórias e incompatíveis entre elas mesmas, identifico aquilo que concebo com naturalidade e sem qualquer desapreço como uma esquerda jurídica.

Então, a esquerda jurídica, sem um perfil orgânico preciso – a não ser aquela aglutinação em volta das instituições nas quais estão sediados os núcleos das ações jurisdicionais do Estado e da defesa da ordem jurídica – seria caracterizada como a expressão viva e concreta, consistente de atos e declarações de juízes e membros do Ministério Público, secundados por outros operadores do direito, que tomam a democracia representativa e os que a fazem, em seu conjunto, como algo de pouca ou quase nenhuma utilidade para a defesa do interesse público e para o combate a práticas e a políticas desrespeitosas e nefastas aos direitos sociais e coletivos, a menos que magistrados, procuradores e promotores, com apoio das mídias, se possível, estejam monitorando, dentro de suas respectivas atribuições constitucionais e legais, as ações e iniciativas de governantes e parlamentares.

(Haveria, em contraposição a essa suposta esquerda jurídica, uma direita jurídica? Acredito que não, pelo menos assim com um perfil relativamente configurável e identificável, embora no amplo espectro do pensamento conservador no Brasil possam ser encontrados grandes e eminentes juristas, como, por exemplo, o professor Miguel Reale e o ex-ministro Moreira Alves, este aposentado do Supremo Tribunal Federal, que, aliás, teria servido ao executivo durante o regime militar).

Alguém poderá considerar que a democracia participativa roubou um pouco das iniciativas e ações peculiares dos políticos, os quais viram-se, depois dela, obrigados a dividir com a sociedade civil organizada e com outros setores do Estado aquilo que antes realizavam apenas em seus gabinetes, entre eles próprios e seus auxiliares, sem audiências públicas nem discussões com lideranças populares, por exemplo. Isso é verdade, mas somente uma pequena parte daquilo é fato, pois me parece que existam outros aspectos que devam ser levados em conta na avaliação que ora tento fazer da relação entre juízes e membros do Ministério Público, de um lado, e governantes e parlamentares de outro lado.

Dentro dessa nova forma de relacionamento entre aqueles agentes políticos, ora em exame e discussão, penso que o que sobressai, à primeira vista e aos olhos da opinião pública, é a existência de uma inequívoca tensão entre partes, que poderia ser atribuída, inicialmente, à nova forma de agir adotada pelos mesmos, especialmente pelos juristas do Estado – juízes, procuradores, promotores, etc –, isso desde que entrou em vigor a atual Carta Política, mas principalmente nos últimos cinco/dez anos, com a expansão e a presença do direito para e em todas as áreas e setores da sociedade – com conseqüências nos âmbitos da economia, cultura, meio-ambiente, educação etc – e do Estado, este que voltou a funcionar com base no fundamental princípio da legalidade, enfim, com o aprofundamento e o fortalecimento do Estado democrático de direito.

Prosseguindo na linha de raciocínio exposta acima, suponho que no centro da base de tensão entre os agentes políticos do Executivo e do Legislativo, de um lado, e do Judiciário e Ministério Público, do outro, há uma questão de natureza radical e vertical separando-os: o voto popular. Sim, este parece ser o divisor de águas, aparentemente invisível ou quase imperceptível, que vem a ser o ponto nevrálgico do desentendimento que aflora sempre na rotina diária do funcionamento da máquina estatal, mas principalmente em momentos de grandes decisões, quando a harmonia entre os poderes – especialmente no âmbito da união – é posta à prova. O mandamento constitucional não deixa de ser observado, ao fim de tudo, com a superação das crises, mas ficam fissuras, muitas fissuras na estrutura de poder.

Em um regime político como o nosso, democrático e republicano, de perfil representativo e fundado no voto popular e, portanto, na transitoriedade do poder, somente um cego deixaria de perceber que a garantia constitucional da vitaliciedade assegurada à magistratura um dia iria evidenciar a sua completa e absoluta incompatibilidade com a República, proclamada justamente, cento e quinze anos atrás, para por fim à vigência dos princípios monárquicos, dentre eles o principal, o da vitaliciedade do poder.

Entretanto, o jovem e brilhante juiz federal George Marmelstein, de Fortaleza, com o qual venho desenvolvendo um construtivo diálogo virtual, outro dia fez uma colocação sobre determinados pontos dos questionamentos que levanto em relação à legitimidade do judiciário, contrapondo que esta poderia apenas ser eventual, ou episódica, posto que referido poder, como os outros dois, poderia vir a tomar decisões legítimas, ou não. Seria, conforme observou, ‘a chamada legitimação pelo resultado, que não se confunde com a legitimação pela investidura’.

Suponho que aqueles aspectos acima apontados, consistentes de atos e decisões, respectivamente, do parquet e da jurisdição em prol da coletividade, por exemplo, poderiam, ser enquadrados dentro da cogitada ‘legitimação pelo resultado’. Divergindo do juiz, entretanto, tenho que considerar a insuficiência desta, na medida em que o regime militar de 64, especialmente durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, a teria buscado, isso através de uma questionável eficiência no campo da economia, mas nem assim o regime deixou de ser ilegítimo; continuou havido por todo o Brasil como um período de arbítrio e fora do direito, justamente porque faltava-lhe a legitimação pela investidura, aquela que vem a ser a fonte e a origem de tudo, ou seja, o voto popular. Este, se inexistente, contamina todos os processos e ações.

Dentre todos os paradoxos do regime republicano no Brasil, ou, ainda, do poder da República Federativa do Brasil, o maior de todos os paradoxos, portanto, reside na contraposição vitaliciedade versus transitoriedade do poder, esta fundada no voto popular, mas ambas convivendo dentro de uma Carta Política que apresenta-se e é tida como democrática e republicana.

A conseqüente e gravíssima falta de simetria estrutural entre os três poderes, por conta da mesma vitaliciedade, é outro aspecto paradoxal que deve ser registrado no exame dos problemas ora em discussão. Parodiando o cantor e compositor, eu indagaria, então: que país é este?

O concurso público de provas e títulos, junto com a carreira da magistratura, são institutos dos quais o Brasil não pode prescindir, por mil razões e justificativas, de variadas ordens e origens, que não vejo necessidade de registrar aqui, por óbvias e dispensáveis, mas o certo é que ambos os institutos deverão ser devidamente adequados e compatibilizados com as exigências fundamentais e históricas do regime democrático e republicano adotado em nossa atual Carta Política, sob pena de permanência da principal fonte de atritos e crises entre os poderes do Estado, que concorrem apenas para atrasar ainda mais as soluções possíveis para os urgentes problemas brasileiros.

3. Considerações finais

Não é de hoje que se vem falando de dificuldades e crises vividas pela democracia representativa, tema de muitas pesquisas, estudos e reflexões de grandes pensadores, juristas e cientistas políticos, como o grande filósofo inglês John Stuart Mill, por exemplo, que em sua época a questionou com brilhantismo e pertinência na clássica Considerações sobre o Governo Representativo (Editora Universidade de Brasília, 1980).

Como no passado, em nossos dias o mesmo tema continua sendo objeto de pesquisas, estudos e reflexões, hoje não só por parte de grandes pensadores, juristas e cientistas políticos, mas também pela mídia, que a discute com o povo e parlamentares, bem como com especialistas e outros homens de Estado. Isso vem acontecendo principalmente neste início de século, quando o mundo todo foi envolvido, direta ou indiretamente, pelos acontecimentos do 11 de setembro de 2001, os quais serviram de pretexto para as guerras do Afeganistão, logo após, e do Iraque, a seguir.

No caso da guerra do Iraque, a democracia representativa foi extremamente questionada por conta da determinação partida de alguns governos, mundo afora, em seguir os Estados Unidos contra a opinião pública de seus países. Como exemplo o governo da Espanha, que decidiu-se pela guerra contra a vontade de mais de oitenta e cinco por cento (85%) da opinião pública espanhola, segundo amplos registros da mídia, oportuna e pertinente reproduzidos pelo ilustre prof. José Luiz Quadros de Magalhães em interessante artigo publicado nos portais/revistas eletrônicos JUS (www.jus.com.br/) e CartaMaior (www.cartamaior.uol.com.br/), sob o título ‘A crise da democracia representativa’, aliás, bem sugestivo em relação ao que se examina e discute-se aqui.

Situações políticas peculiares, ou de crise, como as que o prof. José Luiz Quadros de Magalhães tão oportunamente registrou em seu belo artigo não são, portanto, novidade, óbvio, nem muito menos fenômenos que poderiam conduzir a humanidade à superação histórica da experiência vivida e buscada com a democracia, pois esta, como bem lembrado por aquele mesmo articulista, ‘…não é um lugar onde se chega. Não é algo que se possa alcançar e depois se acomodar, pois é caminho e não chegada. É processo e não resultado’.

A verdade é que, infelizmente, ou talvez felizmente, ainda não foi inventado um processo mais adequado que a democracia para o homem viver em liberdade. E em nosso tempo, como no passado, neste excluídas umas poucas experiências, como a ateniense, democracia é quase sinônimo de democracia representativa. Portanto, ao lado da democracia participativa, que vem se ampliando e se aprofundando em nosso país, cuidemos também de ampliar, aprofundar e fortalecer a democracia representativa no Brasil, ainda indispensável, apesar de todas as suas contradições, para permitir a existência da vida civilizada e assegurar a possibilidade de realização da justiça.

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Procurador federal do Centro de Estudos (Jurídicos) da Advocacia-Geral da União, autor de ensaios políticos e de literatura ficcional, colaborador de revistas e portais eletrônicos da área jurídica, vice-presidente de Assuntos Políticos e Parlamentares do Instituto Nacional de Estudos e Assuntos Estratégicos (Inea)