Ensina a tradição de nossa sociedade planetária que, antes de tudo, o bom homem sabe é de si. Ele conhece seus defeitos e qualidades. Esta potencialidade é crucial para o desenvolvimento de sua capacidade no convívio social.
Desde este prisma, restaria a todos nós buscar, humildemente, o auto-conhecimento. O motor do processo seria nos perguntarmos constantemente ‘quem é esse que tanto exige, tanto critica e acusa sem, ao menos, haver definido quem é ele mesmo para saber das coisas dos humanos’? Faz sentido.
E mais. Se, para tanto, precisamos usar as avaliações que os outros fazem de nós, tanto melhor. É desta somatória de informações que vamos nos construir para, em seguida (quase) nos definirmos como pessoa humana e, assim, aprendermos a viver na sociedade.
Em suma: precisamos definir quem é este chato que aqui está, sem modelo honesto algum, julgando o resto do mundo.
Chatos, sim. Somos os noventa e oito por cento dos chatos viventes das planícies que vivemos esticando o pescoço para ver e admirar os dois por cento restantes que vivem nos píncaros da glória.
As senhoras gordas
Nós, humanos, que levamos jeito para um raro cruzamento de marmotas e suricatas com uma pitada de piranhas e que, numa competição idiota entre nós mesmos, assim que localizamos os ‘inimigos’, quando não os devoramos, procuramos enterrá-los em suas próprias covas.
Um bom exemplo disto é o uso das estatísticas que a imprensa faz para incentivar a competição entre os jogadores de futebol:
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‘Romário, faltam 134 gols pra você quebrar o recorde do Pelé!’E lá vai o Romário (que estava absolutamente na dele) entrar na de correr atrás do tal recorde. E tome aumento de venda nas bancas! E tome falta de assunto! É por falta de assunto que se procura o boi de piranha da vez.
(Sempre que isso ocorre, me vem à cabeça a imagem das duas senhoras gordas e vizinhas que, depois de falar do tempo, e por falta de assunto ou vontade de passar roupa, falam da vizinha da frente.)
Ao perdedor, as bananas!
Sem orientalismos exagerados, aquela coisa budista de harmonização total com o ambiente, o estilo de imitação natural dos modelos que nos precedem, e fazem-nos evoluir, estão aí é para serem usados. Resta saber que modelos são estes e, no caso, qual modelo estou eu mesmo usando para estar aqui refletindo sobre este assunto. Esclareço: aquilo que foi feito pela TV e imprensa com os atletas brasileiros que competiram nas Olimpíadas não se faz nem com o pior inimigo de cova das planícies.
Em dezesseis dias, os pícaros jornalistas, diretamente de seus laptops nos seus hotéis com ar-condicionado no tempo abafado de Pequim, elevaram, momentaneamente, uma dúzia de esforçados brasileiros aos píncaros da glória, para (em dezesseis dias) os jogaram de volta às planícies das fedidas sarjetas dos bairros da periferia de Pequim. Nunca mais ouviremos falar da atleta do salto com vara que teve seu equipamento perdido, nem do atleta do levantamento de peso que caiu sentado?
Claro que não. Eles não são pauta, seres humanos não são interessantes.
Para os leigos, que não sabemos o que é pular na piscina de água gelada dia escuro após dia escuro, não imaginamos o ruído do pedrisco da pista de atletismo embaixo do tênis furado, nem sabemos o que é dormir pesado com dores por todo corpo, embora sonhando com os aplausos e uma medalha, o modelo a ser seguido é só o do vencedor. Ao esforçado perdedor, as bananas!
Atletas são seres ‘profundos’
Houve um treinador de natação japonês, o Sato, que, numa madrugada fria, me disse que a ‘grande disputa’ era a do atleta com ele mesmo. Que o ‘grande homem’ corria e nadava atrás de si mesmo para conhecer-se e ter uma idéia mais clara de seus limites morais e físicos. Enfim, localizar-se no universo.
Transcrevendo livremente para a área social o conceito da física que diz que o atrito gera calor e energia, poderíamos dizer que os dramas/conflitos geram vida e energia?
Se assim fosse, o bom homem, bom marceneiro, jornalista ou farmacêutico, assim como o atleta, deveria procurar, antes de tudo, saber quais são suas limitações (e motivações) pessoais antes de julgar o desempenho de outro ser humano. Deveria, no mínimo, conhecer o processo, caminhos e estradas que levam este ou aquele humano a, dolorosamente, sobrepujar a si mesmo.
Então, explorar (no sentido de narrar elucidando) estas maravilhosas histórias das centenas de atletas brasileiros que muito fizeram, mesmo sem terem subido ao podium, seria o modelo ideal para o valorização real de seus feitos pessoais?
O drama maior, quem personifica mesmo, é o homem. Aquele que ainda está a caminho do sucesso entre seus pares nas planícies, mas que precisa, ainda, conhecer melhor o que o espera para que um dia possa ser um vencedor. Aos humanos conscientes, modelos humanos estimulam tanto quanto modelos supra-humanos. Afinal, refletir para aprender a vencer a si mesmo (e sua consciência) é a meta inicial e grande desafio que todo humano merece.
Apesar de não parecer, e à sua maneira, os atletas são seres ‘profundos’. Exercitando seus músculos, estão aprendendo a saber quem são.
Mas parece (sempre) que jornalistas, nem tanto.
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Músico e jornalista