‘O leitor que busca se informar pelas páginas do O Povo sobre o objeto do referendo do dia 23 de outubro terá dificuldade de entender, na melhor das hipóteses, ou terá compreensão equivocada do assunto. No entanto, a questão é relativamente simples. O eleitor será obrigado, legalmente, a comparecer às urnas eletrônicas para responder à seguinte pergunta: ‘O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?’ Os que defendem o fim de tal comércio, deverão responder ‘sim’ (opção 2), os que acham que a venda deve continuar, terão de assinalar a alternativa 1, o ‘não’, de acordo com sorteio realizado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Duas frentes nacionais estão autorizadas a atuar no referendo, com direito a propaganda gratuita no rádio e na televisão, que começou a ser veiculada ontem: a Frente Parlamentar Por um Brasil sem Armas (a favor da proibição da venda de armas e munição) e a Frente Parlamentar pelo Direito da Legítima Defesa (contrária à proibição).
Estatuto do desarmamento
Em 23 de outubro de 2003 entrou em vigor a lei 10.826, conhecida como Estatuto do Desarmamento. A lei proíbe o porte de armas para civis entre outras medidas para aumentar o controle sobre o armamento existente país. As exceções para permitir o porte ao cidadão comum são raríssimas: aos moradores do meio rural que provarem ser a arma necessária para ‘prover a subsistência alimentar’, ou, de maneira geral, para quem demonstrar a ‘necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física’, neste caso, por tempo determinado. Portanto, sobre o porte de arma, não há mais o que discutir. A lei foi aprovada, sancionada e está em vigor. O Estatuto do Desarmamento ainda estabeleceu um período de 180 dias (depois ampliado) para a entrega voluntária de armas sem registro, com indenização ao proprietário. Foi também essa lei a prever o referendo falado acima. A esse conjunto de ações, o governo vem chamando de ‘campanha do desarmamento’. Mas é fácil observar que, apesar de correlatas, cada uma das medidas tem um objetivo diferente.
Alertas
Desde o início do mês passado venho alertando a Redação do jornal que as notícias publicadas – em várias editorias, como Economia, Política e Cotidiano – vinham misturando esses conceitos, produzindo textos confusos e incoerentes: prestando um desserviço ao leitor e ao eleitor, obrigado a votar no referendo. Veja alguns exemplos mais recentes. ‘(…) O eleitorado brasileiro decidirá se é favorável ou contrário ao fim da comercialização das armas de fogo e similares no Brasil – a (chamada) tese do desarmamento…’ (edição de 27/9, pág. 2). Em comentário interno observei que a formulação da questão estava confusa (o que seria ‘similar’ a uma arma de fogo?). E que também a consulta não é uma suposta ‘tese do desarmamento’, mas vai apresentar duas alternativas para o eleitor decidir. Na edição do dia seguinte (pág. 11) voltou-se ao tema, escrevendo-se no início do texto: ‘A segunda edição do projeto Fóruns do O Povo (…) foi marcada por um intenso debate sobre o referendo do desarmamento…’ Voltei a observar que o referendo versa especificamente sobre o comércio de armas de fogo e munição, e não terá perguntas genéricas sobre o ‘desarmamento’. Por exemplo: uma pessoa pode ser contra o porte por civis, mas favorável à continuidade do comércio de armas, pois, por hipótese, defende o direito de se ter uma arma em casa. De maneira geral, os textos publicados eram marcados pela indistinção entre as idéias em debate.
Clubinho
Um dos casos mais graves aconteceu com o Clubinho, um caderno com o compromisso de esclarecer as dúvidas das crianças. Em sua edição de 18 de setembro, o destaque na capa era o seguinte: ‘No dia 23 de outubro, os brasileiros (…) irão às urnas para dizer sim ou não ao desarmamento’. Na página 4, sob o título ‘Falando sério!’, escreveu-se: ‘(…) Vai haver votação para que as pessoas decidam se será proibido ou não andar com armas de fogo como revólver. Qual a sua opinião sobre esse assunto? Você é a favor ou contra as pessoas andarem com armas?’ Obviamente, não é isso que estará em votação no referendo, como já ficou esclarecido.
Em vários comentários internos insisti com a Redação para a necessidade de se dar informações corretas sobre a consulta popular, que obrigará milhões de pessoas a irem às urnas. Tornar as coisas claras, penso, é de interesse de ambos os pólos em debate e também do bom jornalismo. O jornal expõe os argumentos dos dois lados com precisão e clareza, ao (e)leitor cabe decidir. Ao Clubinho, sugeri que voltasse ao tema para que as crianças fossem devidamente esclarecidas, pois o assunto deve estar sendo debatido nas escolas. Não obtive sucesso em nenhum dos casos.
Sim ou não?
A simpatia dos meios de comunicação parece pender para o lado dos defensores do fim do comércio de armas de fogo e munição. Nas notícias publicadas pelo O Povo, além da dificuldade em se dar os esclarecimentos precisos a respeito do assunto, pode-se também observar o viés favorável aos defensores do ‘sim’. Na notícia ‘Referendo divide opinião de deputados na AM do Povo/CBN’ (29/9, pág. 5), logo no início escreve-se: ‘Enquanto o deputado João Jaime (PSDB), defensor do desarmamento, argumentava sobre uma política de paz, o deputado Pedro Uchôa (PMDB) interferia para defender a manutenção do comércio de armas’. Ou seja, um defende a paz, o outro é contra a paz; um ‘argumenta’, o outro ‘interfere’. Em ‘Polêmica no debate sobre o desarmamento’ (28/9, pág. 9), há um quadro destacando duas opiniões sobre o assunto, ambas pela proibição da venda de armas de fogo e munição. Fico nesses dois exemplos, mas poderia citar vários outros no mesmo sentido.
Equilíbrio?
Interessante observar o seguinte: diferentemente do que acontece com a suposta cobertura ‘parcial’ em relação à crise que atinge o PT e o governo Lula, do qual reclamam vários intelectuais e os círculos ‘mais esclarecidos’ da sociedade, não se ouve reparo desses setores à cobertura que a imprensa faz da chamada campanha do desarmamento. Para eles, a cobertura é equilibrada ou acham correto a imprensa favorecer um dos lados do debate, desde que seja o considerado ‘politicamente correto’?’