Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Poder e comunicação para depois que a santa passar

Se quisessem, os beneficiários podiam até atribuir a Nossa Senhora de Nazaré mais um milagre: na edição especial do Círio, tradicionalmente volumosa, O Liberal voltou a faturar com o grupo Yamada. Depois de cinco meses de abstinência, a maior empresa de varejo do Pará voltou a anunciar no jornal da família Maiorana, no domingo, 14. O retorno foi em alto estilo: com seis páginas de ‘informe publicitário’, a modalidade mais cara de anúncio, por se assemelhar a matéria redacional.

O retorno de O Liberal à mídia dos Yamada foi precedido por um jantar, no Boteco das Onze, duas semanas antes, entre Fernando Yamada, o segundo principal cotista da corporação (abaixo apenas do pai, Junichiro), e Romulo Maiorana Júnior, o ‘cabeça’ das Organizações Romulo Maiorana. Os detalhes do acerto ainda não são conhecidos, mas o resultado só não foi imediato porque Fernando precisou aparar arestas dentro de sua corporação. Nela, havia resistências a uma reaproximação com o grupo Liberal, mesmo que apenas comercialmente. Durante o período de desentendimento, o clã Yamada estreitou seus vínculos com Jader Barbalho e seu grupo de comunicação.

A data festiva do Círio, sempre explorada comercialmente, seria a oportunidade de ouro para o reatamento, ainda que restritamente comercial, entre a maior empresa privada paraense e aquele que ainda é o primeiro grupo de comunicação do Estado, mas já sem a liderança em jornal impresso e no segmento de rádio (a primazia em televisão ainda persiste graças à afiliação à Rede Globo). Quase todas as empresas e entidades públicas se sentem compelidas a anunciar nessa data e a ausência do grupo Yamada nas páginas de O Liberal equivaleria a uma declaração de guerra, aberta e definitiva. Acabaria causando desgaste de imagem e comercial aos Yamada.

Além disso, Fernando, como presidente da Associação Paraense dos Supermercados, não podia ignorar os veículos do grupo Liberal na divulgação da Supernorte, a Feira de Produtos, Serviços e Tecnologias, realizada pela Aspas, que começou exatamente na segunda-feira depois do Círio.

Informação indispensável

A quantidade de anúncios, todos de página inteira, pode servir de indício de uma recomposição completa. O Diário do Pará, de Jader Barbalho, recebeu apenas um pouco mais, sete páginas e meia no total. Três dos anúncios, entretanto, foram de meia página e dois deles institucionais, sem a forma de texto jornalístico. A impressão que ficou da simples visualização das peças publicitárias é de que foi selada a paz entre os Maiorana e os Yamada. Nas próximas edições é que se saberá ao certo se essa aparência é verdadeira ou falsa.

Com a Companhia Vale do Rio Doce, ao litígio, que se apresentava feroz, se sucedeu um namoro absoluto. Depois de sofrer uma campanha de descrédito e acusações do grupo Liberal, que a obrigaram a reagir até judicialmente, a Vale obteve a adesão súbita e incondicional graças a uma maciça campanha publicitária, executada sob várias formas de patrocínio, abrangendo todas as áreas de atuação do grupo Maiorana, da televisão à fundação, do jornal à rádio.

A CVRD foi um dos maiores anunciantes deste Círio. Com isso, conquistou boa vontade quase celestial por parte do grupo de comunicação que, sem anúncio, a hostilizava. Ainda assim, não seria recomendável pagar promessa por essa prenda, que nada teve a ver com a santa nem com milagres. Sua causa é terrena e profana, além de sonante.

A comparação entre as edições do Círio de O Liberal e do Diário do Pará ajuda a perceber uma coisa cada vez mais cristalina no Pará: o poder do grupo Liberal já não é mais o mesmo – e talvez nunca mais volte a ser, se é que não continuará a tendência em contrário, do declínio. Embora, no alto da primeira página, O Liberal informe que sua edição ciriana teve 310 páginas, com 11 cadernos, sua soma, mais uma vez, como de regra, está inflacionada artificialmente. O jornal contou como se as páginas em formato tablóide fossem standard, quando, para ser fiel à verdade (e à propaganda que veicula), devia dividi-las pela metade. Assim, a quantidade correta de páginas standard da edição do Círio foi de 234.

Já o Diário, que não forneceu essa informação indispensável ao seu leitor (mais uma vez claudicando no profissionalismo, o que ocorre invariavelmente quando precisa tirar edições maiores ou fazer trabalhos de maior vulto), teve 279 páginas, número impar por causa da conversão de um tablóide de 18 páginas, o Top. Portanto, 45 páginas a mais do que o concorrente, que ficou 20% abaixo. Tanto em tamanho quanto, numa proporção ainda mais desfavorável, em faturamento.

Projeto de poder

Mas é a presença de alguns anúncios que recomenda cautela e atenção na interpretação de certos detalhes. O prefeito de Belém, Duciomar Costa, aliado preferencial da casa e em plena campanha eleitoral não formalizada, deu três páginas a O Liberal e nada menos do que 10 ao Diário (enquanto a prefeitura de Ananindeua, comandada por Hélder Barbalho, reservou ‘apenas’ uma página e meia para o jornal da família). O governo do Estado destinou meia página para o jornal dos Maiorana e 10 páginas e meia para a folha dos Barbalho, sem contar as quatro páginas e meia de publicidade da Assembléia Legislativa do Estado. O governo federal foi um pouco menos ostensivamente favorável ao jornal de Jader Barbalho, mas avultou a programação do Sebrae, dirigido por Hildegardo Nunes, que já experimentou a má-vontade política dos Maiorana: ele programou quatro páginas para o Diário.

Estes dados podem sugerir que se os Maiorana continuam com seu projeto de poder em pleno curso, há outros em andamento ou formação, que já não passam pelos gabinetes do jornal e podem até incluir, entre os seus objetivos, desbancá-los do alto da pirâmide. Quando a santinha voltar ao seu nicho, será uma hipótese a testar: haverá novo poderoso (ou poderosos) no Pará e os caminhos já não conduzirão, todos, ao ‘rei’ da comunicação, como se seu gabinete fosse, para Belém, o que o trono do Papa representa para Roma?

O obituário e o silêncio

Antes de Rupert Murdoch dar início à sua cruzada para nivelar a imprensa mundial por baixo, dizia-se na Inglaterra que só valia morrer com obituário no Times. O tradicional jornal londrino caprichava tanto no necrológio que era uma pena o morto não poder ler o trabalho. Às vezes era o melhor que sua biografia já merecera. Não significava, porém, incensar o personagem só porque ele morreu (do outro lado, afinal, há paraíso, purgatório e inferno). Só levava elogio quem fizesse por merecer, no entendimento do jornal. Mas aplicando todo rigor na apuração dos fatos, o Times raramente deixava de ser justo. Seus leitores e a sociedade em geral eram servidos por informações suficientes para avaliar a passagem do cidadão pela Terra e este não podia levar deste vale de lágrimas queixas sobre erros factuais ou omissões em torno de sua obra, nem seus parentes e amigos teriam motivos para se indignar com a reconstituição da vida do defunto pelo sisudo e centenário diário londrino, avant Murdoch.

Há muitos anos quem morre no Pará sofre morte dupla: a física e a da memória. Não há mais um profissional incumbido, nas empresas jornalísticas, de manter atualizado um arquivo sobre os principais personagens da cena estadual, com atenção redobrada sobre os mais velhos. Quem fica tem que receber pelo menos um sumário sobre quem parte para que não nos tornemos rematados amnésicos. É para que a história tenha continuidade e seja progressiva.

As pessoas não têm que estar sempre recomeçando, para não serem tentadas a reinventar a roda ou desperdiçar o acervo dos que as antecederam. E os bons cidadãos têm que encerrar sua jornada com direito a um fecho proporcional ao seu merecimento. Mas o silêncio e a ignorância sobre os mortos tem sido uma das marcas da imprensa periódica nos tempos recentes.

Juízo equivocado

Tenho procurado cumprir a parte que me cabe nesse serviço fúnebre, que a história nos cobrará. Infelizmente, como já estou numa fase da vida que me permite olhar com larga perspectiva para trás, ao fazer o obituário dos personagens destacados da vida pública paraense que morrem, sou obrigado a desagradar contemporâneos do morto e de mim mesmo, já que, em vários casos, também participei de partes de suas vidas.

Meu critério é o da verdade, ao menos sob a minha ótica. Procuro ser fiel aos fatos e, em eventual análise crítica, jamais perder a referência das pessoas que se vão e daquelas que por aqui continuam, fiéis ao morto. Por isso, são obituários respeitosos, mas não necessariamente favoráveis.

Meu objetivo, em qualquer situação, é ser justo, sem jamais perder o respeito pela pessoa, principalmente porque ela não mais pode se defender ou questionar o que escrevo. Mas quem se interessar pelo personagem pode tranqüilamente mandar uma carta, que a publicarei e acatarei. Assim se pode corrigir qualquer erro cometido e retificar algum juízo de valor equivocado. Tudo em homenagem ao cidadão, que não pode chegar ao final dos seus dias, principalmente quando muitos deles tiveram expressão coletiva, sob o silêncio do público e a omissão de quem devia se responsabilizar pelo dobre de finados.

Memória do cotidiano: Jornal do Dia

O Jornal do Dia encarnou uma das mais fecundas experiências na grande imprensa paraense, mas pouca gente sabe disso. A razão desse desconhecimento quase absoluto é a dificuldade em localizar exemplares do jornal, mesmo nas melhores coleções de periódicos, como a do Centur. A destruição da memória, que é uma das características da história do Pará, foi facilitada pela intenção dos seus donos de apagar as pegadas do jornal quando ele deixou de circular, depois do golpe militar de 1964.

O jornal crescera à sombra do PTB de João Goulart e da sua ampla rede de aliados e beneficiários. Com a deposição do presidente e a entronização do novo poder, os donos do jornal se reenquadraram para servir aos poderosos. Os exemplares do jornal passaram a representar a incômoda lembrança de um passado condenável. Daí não se interessarem pela preservação da história, muito pelo contrário.

Nos anos 60 e 70 li exemplares do jornal que ainda pude localizar na intenção de um dia escrever a história do Jornal do Dia. Como muitos outros projetos, esse também não se consumou. Mas ficaram as anotações à espera de algum momento favorável para o registro desse momento. As montanhas de papéis que se acumulam acabaram soterrando as anotações e o projeto. Revirando a papelada outro dia, dei com essas anotações, já amareladas. Vou aproveitar esta seção do jornal para contar a história em conta-gotas do JD e da época que ele refletiu e analisou em suas páginas, antes que nova montanha atinja esses papéis e a minha memória também falhe.

O primeiro número do Jornal do Dia circulou em Belém numa terça-feira, 8 de agosto de 1961. Tinha 16 páginas, em formato tablóide, dividido em dois cadernos, cada um deles com 8 páginas. Armando Carneiro era o diretor responsável. Seu irmão, Oziel Carneiro, o diretor administrativo. Cláudio Augusto de Sá Leal o diretor secretário e Guaracy de Brito o diretor de publicidade. A manchete de capa, com letras azuis, anunciava: ‘Nave tripulada faz 17 voltas à Terra’. Era a corrida espacial entre os Estados Unidos e a União Soviética, que tinha andamento.

O jornal tinha muitas colunas, como sua fonte inspiradora, o Última Hora, que Samuel Wainer editava no Rio de Janeiro, também petebista e janguista. A sua réplica paraense reproduziu, a partir da sua edição inaugural, os artigos de João Pinheiro Neto, as crônicas de Nelson Rodrigues (‘A vida como ela é…’) e a coluna de Leon Eliachar. Dentre os locais, Edyr Proença escrevia sobre esportes, Antunes Monteiro sobre ‘Artes & Ofícios’, Rafael Costa sobre cinema, Fausto Aguiar sobre negócios e Waldyr Carvalho. Havia uma coluna sindical, não assinada.

Na primeira página, o editorial, assinado por Armando Carneiro, apresentava o ‘nosso jornal’. Explicava por que decidiu ‘fazer circular um jornal diário, ligado a empreendimentos básicos para a economia do Estado, cuja positividade e concretização ninguém mais põe dúvida, alheio ao uso da publicidade para proveitos pessoais’. Mesmo ressalvando ser ‘político militante’, Armando dizia esperar que o leitor ‘tenha uma surpresa’ ao receber o jornal, que era ‘moderno, de boa feitura, de informação e notícia, sem o sensacionalismo exagerado, mas sem tibiezas, conformismos ou omissões propositais’.

Alertava o editorialista que o jornal não se limitaria apenas a informar, mas procuraria ‘atingir as verdadeiras finalidades do jornalismo, colocando-se sempre na vanguarda dos principais problemas que afligem o povo, difundindo cultura e civilização, orientando a comunidade quando necessário, refletindo, enfim, os propósitos de quem quer servir às causas de nossa gente’.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)