Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Por uma imprensa sem demônios

Desconfio de igrejas, seitas ou quaisquer associações que usem o discurso do dinheiro para atrair pessoas e, em alguns casos, engordar às custas do dinheiro minguado de colaboradores pobres. Desconfio desde que assisti ao vídeo Duelo dos Deuses (1988), de Pedro Vieira, logo que entrei na faculdade.

Duelo dos Deuses é um documentário sobre como as igrejas evangélicas cresceram no Brasil às custas de programas apelativos de televisão. E, claro, de promessas de enriquecimento ‘em dobro’ (ou em várias vezes!) para todos os que contribuíssem com o dízimo. O nome da reportagem é uma referência a um evento promovido pela Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), do pastor Edir Macedo, que lotou o estádio do Pacaembu, em São Paulo. Em dado momento do filme, depois de 15 minutos de propaganda maciça para doações em benefício dos programas evangélicos (com direito ao catchup de Cristo!), ficamos com cenas impressionantes do evento no Pacaembu. Nas quais as pessoas – em sua maioria, carente – eram exortadas a entregar seus óculos para serem pisoteados pelos pastores porque, com sua fé, poderiam deixar de ser míopes ou curar sua vista cansada.

Se sua fé é mesmo capaz de fazer isso, eu não pretendo discutir neste artigo. Espero que, ao menos para consolo da alma, os cultos religiosos sirvam – e, assim sendo, são muito bem-vindos.

Conglomerado empresarial

O que quero discutir não está no campo das crenças pessoais, do esotérico ou de alucinações. (Aos que quiserem discutir tudo isso, sugiro a leitura requintada de O mundo assombrado pelos demônios, de Carl Sagan.) Discuto aqui coisas terrenas – tão terrenas que esbanjam luxo e imponência num palácio da Iurd na Avenida Olegário Maciel, em Belo Horizonte. Discuto a política, a manipulação da palavra em prol de enriquecimento ilícito e construção de impérios pessoais, incluindo a rica igreja católica, e – aproveitando uma oportunidade que a Iurd me proporciona – a intimidação da imprensa e da publicação de materiais noticiosos legítimos.

Ah, sim! Porque todos que se interessam minimamente por jornalismo devem estar acompanhando a orquestração que a igreja de Edir Macedo tem feito para intimidar jornalistas do Extra (RJ), A Tarde (BA), Folha de S.Paulo (SP) e, mais recentemente, d’O Globo (RJ). Só a última edição do Observatório da Imprensa deu cerca de dez artigos sobre o assunto. Alberto Dines, em editorial no programa de TV do OI (26/2), deu a devida importância à reação da Universal dizendo que ela ‘vai certamente incorporar-se à história do jornalismo brasileiro’, até porque ‘jamais tivemos um processo de intimidação tão evidente e tão grosseiro’.

Para quem não sabe, o resumo da novela: Elvira Lobato, repórter especial da Folha de S.Paulo, publicou, em 15 de dezembro de 2007, uma reportagem (clique aqui, para assinantes) que, como este artigo, não entrou no campo da teologia. Com um jornalismo de boa qualidade – tão objetivo que os advogados da Iurd não conseguiram encontrar um furo que convencesse algum juiz –, a repórter dissecou o conglomerado empresarial construído pela Iurd, que inclui a Rede Record (22 emissoras de TV, ao todo), 40 emissoras de rádio e outras 19 empresas, inclusive registradas em paraísos fiscais. O jornal A Tarde só relatou em matéria que o fiel da Iurd Marcos Vinícius Catarino estragou uma imagem de São Benedito numa igreja de Salvador. E o Extra contou a história de um fiel que doou um carro à igreja para obter um milagre.

Perde a democracia

E o resultado é que, de lá para cá, fiéis de vários lugares do país – inclusive, cidades em que esses três jornais não circulam! – entraram com 63 ações judiciais contra a Folha e mais de quarenta contra os outros dois veículos. Ou seja: foram mais de cem ações, movidas nos quatro cantos do país, supostamente vindas de fiéis que se sentiram ofendidos com reportagens que sequer citaram seus nomes ou entraram no delicado terreno da fé. Como as petições de cidades do Sul e do Nordeste e Centro-Oeste são idênticas, com citações e até parágrafos inteiros iguais, alguns juízes já cogitaram que a orquestração tem seu centro no coração da Iurd, embora sejam pessoas físicas comuns, aparentemente sem vínculos com os altos escalões da Iurd, que estejam impetrando as ações. Uma orquestração, ou um ‘assédio judicial’, na palavra do juiz Edinaldo Muniz dos Santos.

Assédio esse que tem afundado em todas as causas já julgadas. Sentenças como a do juiz Alessandro Leite Pereira expõem as implicações dessa orquestração contra a imprensa:

‘O Poder Judiciário está sendo utilizado pelo autor para o fim espúrio de prejudicar os demandados, tendo em vista que diversas demandas, com a mesma causa de pedir e pedido, foram distribuídas pelos variados rincões do país, em localidades de difícil acesso, sendo nítida a intenção do autor, como também dos demais demandantes nas ações mencionadas, de dificultar a defesa dos réus.’

A Iurd e seus fiéis, muitas vezes condenados por má-fé, perderam todas as causas já julgadas até agora. Mas a intimidação ao jornalismo permanece, qual uma assombração, com novos processos surgindo diariamente. Agora é gente querendo processar O Globo por chamar a Iurd de ‘seita’. Quem perde com isso é a democracia do país em que o presidente prefere resumir o imbróglio com um ‘fala o que quer, ouve o que não quer’ e em que o vice-presidente é membro honorário do Partido Republicano Brasileiro, da Universal.

‘Ofensas’ e ‘preconceitos’

No último dia 19, a Iurd fez o seguinte comunicado à imprensa, em sua defesa:

‘A Igreja Universal do Reino de Deus, entidade religiosa há 30 anos no Brasil, com mais de 5 milhões de fiéis e presente em 170 países, vem a público esclarecer que:

1. Fiéis de várias partes do país estão procurando a IURD para manifestar seu repúdio em relação às notícias classificadas como lamentáveis, publicadas por veículos de comunicação, especialmente no que se refere à origem e destinação de seus dízimos;

2. O dízimo é um aspecto da liberdade de crença consagrada pela Constituição Federal;

3. A IURD já ingressou com suas ações judiciais e não tem qualquer interesse de orquestrar e incentivar processos individuais por parte de seus fiéis;

4. A IURD respeita a liberdade de Imprensa, os jornalistas e suas entidades representativas, porém, não admite que reportagens sejam usadas para ofensas de outras garantias constitucionais como a dignidade da pessoa humana, o acesso à Justiça, à liberdade de crença e à inviolabilidade da honra;

5. A Imprensa deve atuar com responsabilidade e não pré-julgar, manipular ou condenar precipitadamente;

6. A IURD não está à margem da sociedade. É uma entidade regularmente constituída, conforme a legislação brasileira, que deve ser respeitada como todas as outras denominações religiosas no estado democrático de direito. É inaceitável, que no uso de suas prerrogativas, a mídia utilize denominações ofensivas e preconceituosas como seita, bando e facção em referência à IURD;

7. A IURD apóia a posição de todas as entidades de classe quando está em questão a Democracia. A Imprensa, com responsabilidade, pode noticiar e os fiéis, da mesma forma, podem acessar a Justiça;

8. Cabe ao Judiciário, com a imparcialidade e independência que lhe são inerentes, a palavra final.’

Império chapa-branca

Para dar respaldo a essa nota, o Domingo Espetacular do dia 17/02/08, programa da Rede Record, veiculou matéria de 15 minutos sobre o caso. Sugiro que assistam (esse trecho que encontrei no Youtube está com o final cortado, mas dá uma boa idéia geral do enfoque). A reportagem chegou até a colocar foto da repórter da Folha e não citou, em momento algum, as ações que já tinham sido perdidas pela Iurd. Foi uma verdadeira campanha, que Cezar Britto, presidente nacional da OAB, condenou como ‘estabelecimento de forma oblíqua de censura, por meio de pressão econômica’.

Quero lembrar algumas coisas aos leitores:

** Nossa democracia é ainda incipiente. Nem bem ficamos independentes e já passamos por convulsões políticas que culminariam num governo getulista de 15 anos. Nem bem surgiu a figura de Jango, com pretensões progressistas, e os militares brasileiros – assim como o de todos os países latino-americanos da época – ocuparam o poder por outros vinte anos. Impuseram a censura à imprensa, à arte, à academia. Nem bem saíram do poder, os novos governos aprenderam cedo que corrupção é uma moeda poderosa no jogo político.

** Assim como na Argentina dos Kirchner, o Brasil de Fernando Henrique e Lula não é muito chegado ao diálogo com a imprensa. Precisamos proteger nosso jornalismo, se quisermos proteger nossa democracia. Não podemos nem nos submeter a censuras veladas nas redações mineiras, pelegas de Aécio Neves, nem à intimidação econômica atualmente orquestrada pela Iurd.

** A Iurd é regida por homens, a maioria deles homens de negócios, que estão controlando a comunicação do país. Comunicação é um setor estratégico, um dos pilares mais essenciais do Estado. E o Estado deve ser laico, nunca religioso, também como garantia da democracia e das liberdades individuais. Se toda vez que os veículos de comunicação seculares fizerem seu papel de noticiar tiverem que desembolsar uma fortuna com deslocamentos e despesas judiciais, logo-logo os donos desses veículos – também homens de negócios, que não estão dispostos a arcar com prejuízos – vão parar de permitir esse tipo de noticiário. Em bom português: será o império do jornalismo chapa-branca, já submetido à censura velada de gente com dinheiro, poder ou boas estratégias.

Coragem e crítica

Apesar de tudo isso, talvez o otimismo que encerra o editorial de Alberto Dines seja mesmo certeiro: ‘Ao orquestrar esta litigância de má-fé, para usar a expressão jurídica apropriada, a Igreja Universal prestou inestimável ajuda a todos aqueles que defendem o princípio democrático do estado secular e da mídia secular’. Afinal, graças a todo esse assédio judicial, a Lei da Imprensa começa a ser discutida, de Miro Teixeira (PDT) para o Supremo Tribunal Federal e, se realmente suspensa, representará o fim dos resquícios da ditadura militar brasileira que ainda tolhem o bom serviço da democracia. Editada em 1967 e em vigor até hoje, essa Lei abjeta permite, por exemplo, que espetáculos possam ser censurados:

Parágrafo 2º do Artigo 1º ‘O disposto neste artigo não se aplica a espetáculos e diversões públicas, que ficarão sujeitos à censura, na forma da lei.’

(Outros parágrafos e mesmo artigos inteiros estão com suspensão em estudo pelo Supremo. Para conhecê-los, vale ler um artigo publicado pelo Consultor Jurídico)

Mas não basta só extinguir a Lei de Imprensa para proteger nossa democracia. É preciso um pouco mais de persistência, um nível razoável de coragem e a eterna crítica de mídia. Façamos isso – quem sabe um dia o desejo de Carl Sagan não possa ser aplicado à esfera política: o desejo de ‘um mundo livre de demônios e cheio de luz’.

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Jornalista, Belo Horizonte, MG; www.tamoscomraiva.blogger.com.br