Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Preconceito global no caso suruahá

O rumo que a reportagem do Fantástico de domingo (25/9) deu à investigação sobre o caso das meninas indígenas levadas a São Paulo por missionários para tratamento médico chocou e surpreendeu a todos, missionários, comunidade evangélica brasileira e comunidade indígena.

O trabalho investigativo e honesto iniciado no domingo anterior desaguou no desatino que foi ao ar no dia 25. Gostaria de manifestar aqui meu protesto em relação à mudança de tom da reportagem, de defesa dos direitos humanos das famílias indígenas para um denuncismo religioso preconceituoso.

Quanto ao nosso trabalho com os suruahás, quero dizer que as bebês indígenas foram retiradas, sim, com autorização por escrito da Funai e da Funasa. Depois de sofrer pressão da parte de alguns antropólogos, mudaram de idéia. Não fora a pressão sofrida e o caso seria tratado como tantos outros, um caso necessário de atendimento a crianças que precisavam.

Ainda que a autorização não houvesse sido emitida, os pais do bebê estão conosco. Para qualquer outro brasileiro, o consentimento deles seria suficiente para que operação fosse feita. Eles são adultos e plenamente conscientes da necessidade de sua filha. A alternativa ao tratamento é o infanticídio. Desde as primeiros horas do nascimento da menina eles decidiram que não seguiriam este caminho, e sim procurariam nossa ajuda para salvar a criança. Nós cremos que eles têm direito a salvá-la. A Constituição brasileira lhes garante este direito. A Declaração Universal dos Direitos Humanos também. No entanto, algumas idéias antropológicas falaciosas professadas no Brasil lhes negam este direito, por serem índios. Por esta razão cremos que esta luta não se limita aos interesses da Jovens com Uma Missão no Brasil (Jocum, nem apenas à situação atual das bebês. A maneira sub-humana com que os índios são tratados e vistos tem que mudar…

Xagani e Naru, os heróis

O trabalho da Jocum com esta tribo tem 21 anos de existência. Não somos aproveitadores chegados ontem à aldeia para ‘barganhar’ com a saúde. Temos documentação e depoimentos que provam que se não fosse a presença da Jocum nesta área os índios já teriam sucumbido. Neste 21 anos não houve outra intervenção além de nossa amizade com eles e das conseqüências práticas desta amizade.

Em cada entrada em área os indigenistas da Jocum respeitam uma quarentena na ida e na reentrada de indígenas para evitar a transmissão de vírus externos. A mesma prática não é observada por outros agentes e em várias ocasiões tivemos que lutar contra epidemias de gripe introduzidas na tribo por agentes de saúde que entram e saem da tribo de helicóptero, como foi o caso da reportagem da Globo, que entrou na aldeia com a autorização da Funasa em maio deste ano.

Em nosso trabalho, a cultura material e a estrutura socioeconômica foi sempre respeitada, ao ponto de nós, quando na aldeia, andarmos nus, ou melhor usarmos a indumentária indígena. Diferentemente do que acontece com contatos feitos pela Funai, nenhum hábito de comida ou necessidade externa foi introduzido. Compare-se o grau de aculturação dos suruahás (chegamos lá em 1984, os contatos iniciais foram feitos em 1980 pelo padre Gunter Kroemer, do Conselho Indigenista Missionário, o Cimi) com o dos urueu-uau-uaus em Rondônia, contactados em 1983. Os urueus são doentes, dependentes da sociedade envolvente para se alimentar e se vestir, em suma, têm o espírito e a coragem quebrados, e estão caminhando para perder a língua.

Os suruahás são totalmente autônomos a não ser pela questão da saúde, e já viviam um quadro crítico nesta área na época do contato. Não precisam de nós nem da Funai para nada, e têm coragem de lutar por si. Neste episódio os grandes heróis são os jovens Xagani e Naru, enfrentando de peito aberto o mundo enorme e desconhecido, chefes brancos que eles não entendem, procedimentos burocráticos absurdos que eles não entendem, para salvar a vida das duas crianças.

Luta contra o tempo

Ao contrário de alguns antropólogos e burocratas, entendemos as culturas humanas como dinâmicas, sempre em constante mudança. O mesmo ocorre com a cultura indígena. Tribos como os suruahás nunca estiveram isoladas em sua história. Seu contato com o ferro (machados e facões) é muito anterior à década de oitenta. Em várias ocasiões houve confrontos bélicos entre suruahás e outras tribos da região, seringueiros, sorveiros e madeireiros que durante muitas décadas povoaram os rios por onde andam os índios. Hoje a ausência de intercâmbio com outros povos está levando o povo suruahá a uma endogamia genética que está produzindo cada vez mais crianças deficientes.

A identidade cultural de um povo não está centralizada apenas em suas crenças religiosas, mas em todo um conjunto de relações dinâmicas entre os vários elementos da cultura. Não trabalhamos de maneira nenhuma de forma proselitista, discriminatória ou ocidentalizante ao compartilharmos nossa fé.

Nossos missionários têm qualificação acadêmica para fazer o que fazem. Márcia e Edson Suzuki têm mestrado em etnolinguística (Unir e Unicamp respectivamente), conhecimento antropológico e respaldo documental para tudo o que fazem. Márcia já publicou trabalhos lingüísticos sobre o suruahá. A primeira análise e classificação da língua foi feita em 1984, quando da entrada de nossa primeira equipe na área. Os índios até então eram chamados de ‘sem-nome’, ou ‘Cochodo-asenses’, em referência ao riacho onde viviam. Estes antropólogos entrevistados pela Globo como especialistas na cultura não falam nem a língua! Um dos ‘especialistas’ esteve por quatro meses na aldeia somente. Num povo monolíngue isto não é tempo suficiente para se conhecer nem os termos básicos de tratamento entre as pessoas, substantivos e gramática simples, quanto mais para se escrever um tratado cultural a respeito da vida e da cosmovisão do povo.

O fato é que a menina ainda não foi operada. Para ela continua uma luta contra o tempo.

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Diretor de Jovens com Uma Missão no Brasil (Jocum), Porto Velho (RO)