A iniciativa do governo federal de pedir urgência na tramitação do Projeto de Lei 2733/08 e a sua possível aprovação nas próximas semanas deve encerrar uma definição curiosa do setor publicitário brasileiro. Aprovada em 1996, a Lei 9294 passou a definir o que, na prática, era considerado bebida alcoólica ou não para efeito de propaganda. Estabelecia então a chamada escala Gay Lussac de teor alcoólico em 13 graus, o que excluía cervejas, vinhos e bebidas ‘ice’ da restrição à publicidade que as bebidas destiladas eram obrigadas a respeitar, das 6 às 21h.
Em novembro de 2005, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou a consulta pública com a proposta de regulamento da propaganda de bebidas alcoólicas, tendo por base a Lei 9294/96 e o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária. Agora, o PL 2733 pretende mudar essa história. O texto produzido pelo Ministério da Saúde e pela Secretaria Nacional Anti-Drogas reduz para 0,5 grau Gay Lussac o que deve ser considerada bebida alcoólica. Cervejas, vinhos e ‘ices’, passariam, portanto, para efeitos legais, a ser o que todos já sabem, bebidas alcoólicas.
A ironia, nesse caso, é inevitável, mas existe entre os setores envolvidos não só uma infinidade de interpretações como também discrepâncias sobre a eficácia da medida que, em última instância, pretende colocar limites sobre a publicidade – um setor que movimenta por volta de 30 bilhões de reais por ano.
Dado relevante
Logo após o pedido de urgência do governo, a Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) divulgou nota repudiando a iniciativa que, segundo a entidade, partiu ‘de convicções pessoais e da visão de reduzidos grupos de pressão setoriais’. A ABA reivindica os princípios do Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária como o instrumento mais conveniente para arbitrar a respeito. A partir do dia 10 de abril, o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar), órgão composto por empresas de mídia, anunciantes, agências de publicidade entre outros, pretende implantar novas medidas restritivas à propaganda de bebidas alcoólicas.
Já no início do documento sobre tais mudanças, o Conar faz a diferenciação entre ‘bebidas alcoólicas’, ‘cervejas e vinhos’ e ‘ices e assemelhados’. A justificativa para a distinção sugerida pela auto-regulamentação diz que cervejas e vinhos são bebidas ‘normalmente consumidas durante as refeições, por isso ditas de mesa’. Não é necessária muita sagacidade para constatar que nenhuma propaganda de cerveja incentiva tal utilização e que a destinação delas não pretende ser o ambiente familiar.
As entidades e organizações que defendem a restrição à publicidade sustentam que a medida é essencial para o combate ao uso abusivo do álcool. Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2004 apontam tendência de aumento do consumo de álcool no Brasil nos últimos 30 anos e a cerveja é, de longe, a bebida mais consumida no país. Mas o dado mais relevante para essa discussão consta no 1º Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira. Segundo a pesquisa, a média de início do consumo de álcool no país está por volta dos 15 anos de idade, e a tendência é que essa média diminua ainda mais.
Quem educa?
‘O grande benefício [da nova lei] é parar de deseducar as nossas crianças. A propaganda no Brasil deseduca nossas crianças sobre o efeito do álcool e da sua função social’, afirma o coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Uniad) Ronaldo Laranjeira. O Movimento Propaganda sem Bebida, organizado pelo Uniad e pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo, tem pautado a questão e entregou na quarta-feira (2/4) ao presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, um abaixo-assinado com cerca de 600 mil adesões, pedindo a aprovação do PL 2733.
Para o superintendente do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja, (Sindicerv), Marcos Mesquita, a discussão sobre a restrição à publicidade é ‘maniqueísta’ e que seria ‘presunção’ do governo tentar tutelar o povo ao adotar a medida. ‘Acredito que a influência às crianças através da propaganda não aconteça se cuidarmos do conteúdo. Já existe a proibição de consumo para menores’, afirma, responsabilizando os pais pela educação dos filhos. ‘Nem a televisão, nem o Estado educam meu filho.’ E para salientar sua posição, o superintende do Sindicerv questiona se é necessário haver restrição a qualquer bebida alcoólica. ‘O governo acredita que é só parar de fazer propaganda e automaticamente acabam os problemas.’
Laranjeira retruca a hipótese de que a propaganda auto-regulamentada não influencie nos hábitos de consumo de crianças e adolescentes e afirma que as empresas sabem disso. ‘Eles sabem que a propaganda influencia principalmente o público jovem, criando expectativas, atitudes e vontade de experimentação precoce. A educação não muda comportamento, a atitude muda, principalmente a exposição de imagens diárias, bem feitas e sedutoras, falando a linguagem do jovem, com humor, sexualidade e promessa de bem estar se houver o consumo.’
Regulamentação
Tanto a indústria de cerveja quanto os anunciantes argumentam que a propaganda não faz o mercado consumidor crescer, mas é fundamental para a concorrência. Mesquita, do Sindicerv, vincula o aumento de demanda à necessidade de crescimento econômico. ‘Propaganda bem-sucedida implica aumento de vendas em cima dos concorrentes. Não dá para colocar dinheiro no bolso do consumidor’, afirma, e continua: ‘Na França aconteceu assim também. O que deve ser feito é aumentarmos a punição, fiscalizarmos o consumo de menores. Mas como a França fez, o ministro [da Saúde, José Gomes] Temporão acha que tem que fazer também’, acusa Mesquita, citando o caso francês, onde a restrição da publicidade veio acompanhada de outras medidas.
O coordenador da área de Saúde Mental, Álcool e Drogas do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel Delgado, refuta o argumento de Mesquita. Delgado utiliza o exemplo da Argentina, onde o vinho era historicamente a bebida mais consumida. Hoje, a cerveja ganhou a preferência dos argentinos, sobretudo por conta do investimento maciço na publicidade. ‘A propaganda diminui a noção dos riscos associados. A idéia, no caso, é focada na cerveja como algo que não tem conseqüências. A glamourização do produto induz ao aumento do consumo pouco responsável e temos pesquisas que concluem isso.’
Sobre a defesa da auto-regulamentação, Delgado lembra que o Estado tem uma responsabilidade de regulamentação definida constitucionalmente e que não se opõe ao mercado. ‘As experiências internacionais comprovam que a publicidade auto-regulamentada é muito flexível consigo mesma. Sem uma regra geral ela acaba sendo muito limitada.’
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Do Observatório do Direito à Comunicação