A retirada do selo da licença Creative Commons (CC) de propriedade intelectual do sítio do Ministério da Cultura (MinC)gerou uma grande polêmica em torno da presença de Ana de Hollanda no cargo de ministra desse setor. Em 60 dias, além do debate que a retirada do CC gerou sobre o futuro das ações do Ministério da Cultura, Hollanda esteve envolvida em torno de mais duas polêmicas: a demissão do antigo diretor de Propriedade Intelectual, Marcos Souza, e a não nomeação de Emir Sader, sociólogo e cientista político que participou da campanha presidencial e chamou a ministra de ‘meio autista’. Seria essa uma crise na Cultura do governo Dilma? Há poucos dias, a IHU On-Line tratou deste tema com o estrategista de redes sociais para a campanha de Dilma Rousseff à presidência, Marcelo Branco, e com o professor na Universidade Federal do ABC (UFABC), Sergio Amadeu.
Na entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail, a professora da Unisinos Ângela Kretschmann dá a sua opinião sobre o tema e analisa os problemas em torno do debate sobre o direito autoral na internet. ‘Aqui no Brasil, no momento, com a atual Lei de Direito Autoral, já está tudo protegido no ambiente da internet, mas poucas pessoas sabem disso. Então também existe uma incrível, digamos, desobediência coletiva, hilária para alguns, trágica para outros. Complicado é entender que a lei não consegue efetividade. As pessoas tendem a confundir a possibilidade do acesso a conteúdos com a possibilidade ou liberdade no uso dos conteúdos’, explica ela.
Ângela Kretschmann é graduada em Ciências Jurídicas com especialização em Direito da Propriedade Intelectual pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. É mestre em Direito pela PUC-RS e doutora, na mesma área, pela Unisinos onde, atualmente, leciona. É membro da Associação Brasileira dos Agentes da Propriedade Industrial e da Comissão da Propriedade Intelectual da OAB-RS. É autora de Universalidade dos Direitos Humanos e Diálogo na Complexidade de um Mundo Multicivilizacional (Curitiba: Juruá, 2008), Direitos Intelectuais e Dignidade Humana: Revisitando o Direito Autoral na Era Digital (Florianópolis: Conceito, 2008), entre outros.
Confira a entrevista.
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‘Retirada do selo é plenamente justificada’
Qual sua reação diante do posicionamento da ministra da cultura, Ana de Hollanda, no início do ano, em relação à retirada do selo do Creative Commons do sítio do ministério? Qual é o valor simbólico deste ato?
Ângela Kretschmann – Minha pesquisa de pós-doutoramento tem relação direta com o tema do Open Access e Universal Access e, de alguma forma, os tópicos têm relação estreita com o Creative Commons. De todo modo, posso adiantar que não é normal a qualquer governo indicar o selo em sítios oficiais. Minha pesquisa ocorre na Alemanha e as comparações com nosso sistema são inevitáveis. A polêmica se iniciou enquanto eu ainda estava na Alemanha e a discussão chegou a ser comentada em um evento de que participei, envolvendo especialistas japoneses e alemães. Alguns dizem que a retirada implica na mudança total de postura do governo. A princípio não vi a retirada do selo do Creative Commons como um sinal de total mudança de postura do governo frente ao amplo debate público que havia se estabelecido no governo anterior, para aprovação de nova Lei de Direito Autoral no Brasil.
A total mudança de postura da pasta da Cultura, creio – como muitos podem afirmar existir –, deve ser observada com mais calma, pois fica difícil concluir que a retirada do selo possa significar uma séria de outras mudanças radicais em relação ao trabalho que vinha sendo desenvolvido no Ministério da Cultura. Minha reação pode ser um pouco estranha, mas creio que, compreendendo um pouco mais o significado do Creative Commons, a retirada é plenamente justificada. A reação exagerada à retirada do selo é que me pareceu estranha. Talvez também isso fosse evitado se o governo explicasse melhor por que retirou o selo e talvez a reação pública não fosse tão forte. De todo modo, uma atitude dessas pareceu a muitos um sinal de total mudança de postura entre um governo e outro e isso, sem dúvida não era esperado, uma vez que, a princípio, o mesmo partido estaria no governo.
‘Um equilíbrio entre interesses divergentes’
Creio que falta algum conhecimento sobre o significado do Creative Commons para condenar a atitude do Ministério da Cultura. O selo do Creative Commons indica que o conteúdo está liberado de acordo com uma das licenças oferecidas pelo CC, um movimento que tem em vista facilitar o acesso a obras intelectuais protegidas, ou seja, antes de o interessado solicitar licença para utilizar o material, o titular dos direitos já autorizou, por meio de uma licença Creative Commons. Isso não significa que o conteúdo não possa ser liberado de outra forma, sem o uso de um sinal que tem forte origem americana. O CC é um facilitador, mas tem também suas ligações com certos interesses legítimos da sociedade, o que não significa que represente todos os interesses da sociedade, merecendo cuidado de qualquer governo no seu uso. Sou a favor do CC, mas o CC é um movimento de cunho privado que deve permanecer no âmbito privado e no âmbito das liberdades democráticas. O vínculo do governo ao CC poderia muito bem gerar o mesmo nível de reação de setores que entendem que o direito autoral está ameaçado com a disseminação de uma filosofia de acesso universal. O CC deixa claro que não veio para servir de instrumento contra o direito autoral, mas para auxiliar. Entretanto, o verdadeiro princípio que está por trás do CC é a liberalização do conteúdo, é o acesso livre.
Creio que o governo faça bem, nesse aspecto do CC, ao adotar uma postura mais equilibrada, nem contra nem a favor do CC, nem contra nem a favor do direito autoral, mas em busca de um equilíbrio entre interesses divergentes, entre os que desejam acessar conteúdos e entre os produtores e titulares de conteúdos. Tenho restrições, sim, e todas, à redução dos bens intelectuais a simples bens de consumo. Se essa é a intenção do novo governo, isso é altamente perigoso e danoso às liberdades democráticas, pois em minha opinião isso pode nos levar a uma nova, radical e silenciosa forma de escravização do ser humano.
‘Pagamos pelo acesso e pelos conteúdos’
É bastante difícil enquadrar a internet, pois todas as pessoas têm a liberdade de postar conteúdos. Alguns defendem o enquadramento da rede e outros são favoráveis ao ambiente livre. Em sua opinião, alguma lei poderia ser condizente com a dinâmica da internet? Em que sentido?
A.K. – Essa é uma questão difícil. Precisamos de enquadramentos, no sentido de legislação para crimes cibernéticos. Nosso Judiciário está se vendo em dificuldades em função do atraso brasileiro na aprovação de leis para o mundo virtual. Alguns são da opinião de que não precisamos de novas leis. Outros pensam o contrário. Claro que já possuímos leis que podem ser aplicadas e são aplicadas para os crimes digitais, mas existem situações típicas para as quais não existe forma de aplicar as leis penais. Cito só um exemplo que me parece claro: se você está em sua casa e alguém entra nela só porque você deixou a porta aberta, isso pode ser invasão de domicílio. Mas se você deixa a rede aberta, e alguém entra, é invasão? Precisamos discutir muitas coisas que parecem estranhas em relação à internet. As respostas não são tão claras e merecem debate.
Já em relação ao direito autoral, creio que devemos primeiro nos perguntar de que lado estamos. Afinal, somos criadores de conteúdo, somos consumidores, somos autores? Somos titulares de conteúdo? Ou somos empresas que precisam do conteúdo para vender seu serviço e ganhar através do marketing? Somos tudo isso? Quem é a favor do conteúdo livre? Quem é contra? Creio que seria bom apontarmos com o dedo indicador quem quer o quê e, depois disso, nos questionarmos sobre nosso papel numa disputa envolvendo grandes indústrias, as indústrias de conteúdo e as indústrias tecnológicas. E o que eu e você temos com isso? O que existe hoje é uma imensa estrada que é razoavelmente livre. Há o interesse em que pague-se pedágio para andar nela. Por que pagaremos pedágio se já pagamos pelo acesso? Já pagamos pedágio para entrar na estrada, com exceção dos poucos pontos de acesso livre à internet existentes no país. Pois bem, além de pagarmos para entrar na estrada, deveremos pagar pelos conteúdos acessados, sendo que existem as empresas que ganham por possibilitar o acesso, como provedores (que desejam o conteúdo livre) e as empresas de conteúdo (que desejam vendê-lo). São as indústrias da cultura e as indústrias tecnológicas que disputam entre si e cobram dos usuários o preço da disputa. Em outras palavras, podemos também dizer que grandes indústrias estão brigando entre si e querem que pessoas comuns paguem a conta dessa briga. Pessoas que possuem direitos humanos e fundamentais, de acesso à cultura, informação e educação, que paguem a conta dessa briga.
‘Policiais prendendo alguém que copia um livro’
Qual é o maior problema da Lei do Direito Autoral no cenário da internet?
A.K. – Vai depender novamente do interesse em jogo. Para alguns será a dificuldade de controlar e cobrar pelo uso de conteúdos inseridos na internet. Para outros será o próprio acesso a obras que estão protegidas. Como pesquisadora, vejo que o maior problema é essa disputa de interesses. Os interesses parecem legítimos, quando não extrapolam. Um autor deve ter direito de cobrar pelo conteúdo criativo que desenvolve. Mas condenar uma mulher a pagar mais de um milhão de dólares porque baixou umas 20 músicas da internet é ridículo, como aconteceu nos Estados Unidos (e quando os familiares de vítimas de um acidente aéreo receberam infinitamente menos). Pior ainda é a televisão brasileira anunciar o caso sem qualquer comentário crítico, como que desejando causar pânico nos usuários. Talvez uma notícia paga… Infelizmente. Observo que estamos cheios de notícias pagas por grupos de interesses e que detêm poder econômico.
Corremos o risco de viver uma nova escravidão: a dos ignorantes. O noticiário tira todos por idiotas quando anuncia sem comentários críticos. Pior ainda é a polícia ir até a faculdade de Serviço Social, se não me engano em outubro do ano passado, e prender o funcionário que operava a máquina de copiar (xerox) da faculdade. Imagine, viaturas da polícia com policiais fortemente armados prendendo alguém que copiava um livro! A lei brasileira permite isso. E fez bem o governo anterior em colocar a lei inteira para discussão junto à sociedade. O maior medo no momento é que essa política de debate público tenha terminado. E que todo o debate tenha sido em vão. Vamos continuar podendo sofrer prisão porque copiamos um livro para uso pessoal? Isso é uma barbaridade! Terão que prender os professores, então. E eu também, em primeiro lugar!
‘Um dos perigos da civilização digital’
Legalmente, é possível preservar o direito do autor no ambiente da internet?
A.K. – Em outros países há maior consciência da proteção autoral, o que permite maior efetividade também. Aqui no Brasil, no momento, com a atual lei de direitos autorais, já está tudo protegido no ambiente da internet, mas poucas pessoas sabem disso. Então também existe uma incrível, digamos, ‘desobediência’ coletiva, hilária para alguns, trágica para outros. Complicado é entender que a lei não consegue efetividade. As pessoas tendem a confundir a possibilidade do acesso a conteúdos com a possibilidade ou liberdade no uso dos conteúdos. Isso não deve ser confundido. O que a tecnologia permite não significa que a lei permite. Você pode possuir instrumentos tecnológicos para fazer certas coisas, mas isso não significa que a legislação o autorize a isso. Recortar e colar, por exemplo, em geral leva a um plágio e isso não é ensinado nas escolas, nem nas faculdades. E algumas ainda ensinam a recortar e colar como se fosse a coisa mais maravilhosa do mundo. Recortar e colar conteúdos protegidos (e praticamente tudo é protegido – é difícil saber quando um conteúdo é de domínio público, e por isso o CC é muito útil) é altamente perigoso e o pior é que a ingenuidade (ou não) de alguns leva a recortes e colas em teses e dissertações, daí os recentes escândalos ocorridos à mesma época no Brasil (USP) e Alemanha (caso Gutenberg). Vejo a internet como um instrumento precioso de desenvolvimento humano, mas uma faca de dois gumes. Vejo milhares de pessoas ‘emburrecendo’ com a internet, pois no lugar de criarem, de pensarem por conta própria, pensam que recortar e colar é algum trabalho que merece reconhecimento.
Esse é um dos grandes perigos de nossa civilização digital. Eu diria que os conteúdos deveriam ser todos livres para uso privado, mas sempre que houvesse algum interesse econômico, direto ou indireto, então o pagamento ao autor ou titular fosse devido. No momento o uso privado também é condenado no Brasil pela legislação, de modo que há evidente desequilíbrio entre o direito de acesso a conteúdos (que implica no direito fundamental previsto na Constituição Federal, de acesso à cultura, educação e informação) e o direito autoral (também previsto na Constituição Federal como direito fundamental).
‘Não tenho idade para acreditar em contos de fada’
Como vê o debate sobre a reforma da Lei do Direito Autoral no Brasil?
A.K. – Sempre desconfiei desse debate. Porque não acho que somos tão livres quanto possa parecer. Nós fizemos e participamos de um maravilhoso debate público tornado possível face a uma ferramenta preciosa utilizada pelo governo Lula para permitir que todos os interesses conflitantes formulassem sugestões para a nova lei autoral brasileira (o debate público online propiciado pelo MinC para o Direito Autoral). E para quê? Eu só pensava o seguinte: nós elegemos os deputados que irão aprovar a lei. Será que nosso debate será mais poderoso do que os lobbies que existem e que muitas vezes corrompem nossos deputados? Não acredito. Creio que, de certa forma, participamos de uma grande palhaçada. Mas fomos conscientes disso. Porque a esperança do brasileiro é contagiante. Mas somos partícipes do debate, somos autores do debate, somos debatedores. Não ‘aprovadores’. Nossos deputados vão aprovar a lei, ou quem pagar mais pela lei. Nossa última lei autoral, a atual, já foi aprovada com base em pressões americanas. A necessidade de exportarmos nossas laranjas foi o que nos levou a aprovar uma lei que privilegiou interesses americanos. E agora, será diferente? Eu não tenho mais idade para acreditar em contos de fada. Mas creio que falar sobre isso pode auxiliar no processo de mudança da estrutura política brasileira. De todo modo, fica um pouco mais complicado aprovar uma lei totalmente contrária ao amplo resultado do debate público que foi realizado. Esse debate faz parte de nossa história. Ninguém pode apagar isso. Fica mais difícil, mas não impossível que ele não seja levado em conta.
‘O vínculo da ideia de pirata a comunista’
Em que consistiria, hoje, uma reforma na Lei de Direito Autoral, considerando o avanço da internet, da cultura e da revolução tecnológica?
A.K. – Ora, para alguns setores, a lei pode ficar como está, pois ela protege os interesses deles. Creio que devemos reformar a lei autoral para não deixar mais a polícia nessa situação constrangedora de ter que cumprir uma lei prendendo um estudante que tira cópias de um livro como se ele fosse um ‘pirata’. Há uma forte mídia – paga – vinculada a interesses de titulares de conteúdo, ou indústrias da cultura, que desejam disseminar a ideia totalmente errada de que todos que copiam são piratas. Pirataria deve ser enquadrada e vinculada a atos de comércio de produtos, e não a pessoas que desejam acessar conteúdos para uso pessoal, para conseguirem se sentir partes de uma civilização que se comunica e dialoga em uma linguagem que, se não for acessível, significa exclusão. É a respeito dessa nova escravidão que devemos falar e mencionar para tratar de uma reforma da lei autoral. Uma escravidão horrorosa, pois teremos uma legião de escravos que nem sabem o quanto são escravos.
Como a pirataria se contrapõe à questão da propriedade intelectual?
A.K. – Como referi, pirataria deve ser vinculada a questões de comércio de bens intelectuais, e não confundida com atos de pessoas sem intenção comercial. Na minha pesquisa na Alemanha percebi, em contato com outros pesquisadores, que existe um marketing vinculando inclusive ‘comunistas’ a piratas, de modo que se você copia, baixa conteúdos da internet, por exemplo, ou é comunista, pirata ou capitalista. Isso não faz muito sentido aqui, mas em países que escaparam do regime da antiga União Soviética ser chamado de comunista é horrível. E vincular a ideia de pirata a comunista leva muitos a defenderem a ‘propriedade’ intelectual a qualquer preço. Falta a noção de justiça aristotélica, de equilíbrio, de aequitas, equidade, na noção de propriedade e de direito de acesso. Há um grande perigo na redução de bens intelectuais a bens de consumo.
‘Os senhores da civilização digital e a massa de excluídos’
Em que medida o avanço da internet suscita um debate acerca de mudanças no conceito de propriedade intelectual?
A.K. – Lembra quando surgiu a imprensa, quando Gutenberg criou os caracteres tipográficos, no século 16 (por acaso o mesmo sobrenome do ministro alemão que esta semana perdeu o cargo e o título de doutor devido ao escandaloso plágio)? Uma revolução. Depois, quando surgiu a máquina que reproduz músicas, os gravadores e fitas cassetes. Depois a máquina de copiar, vulgarmente conhecida pela famosa marca Xerox. E agora a internet. Não vejo nada de diferente. Pessoas morrem e pessoas nascem e brigam de novo pelas mesmas coisas que parecem bem diferentes. Pessoas veem sempre possibilidade de lucrar muito. Veem negócios em tudo. Veem possibilidade de progresso econômico em tudo. Mas a custa de quê? Ora, não estamos discutindo hoje a própria ideia de progresso? Essa é a grande questão que vem da ecologia. E que nos atinge diretamente. E que deve ser transposta para todos os demais setores. Então, para que transformar tudo em bens proprietários? O avanço da internet realmente nos leva a repensar a noção de propriedade e de propriedade intelectual, pois se tudo for reduzido a bens proprietários tendemos a considerar os bens intelectuais excessivamente apenas do ponto de vista da análise econômica, e isso é altamente danoso para a liberdade e acesso ao conhecimento. E desse acesso depende nossa própria condição para a participação política e diálogo. Já existe uma grande legião de excluídos porque, mesmo falando a mesma linguagem, não conseguem compreender o que é dito. Essa redução é perigosa, pois apesar dos apelos ao crescimento econômico e proteção do autor, também corre-se o risco de criar uma legião de pessoas sem condições de diálogo. Teremos os senhores da civilização digital e a grande massa de excluídos. A exclusão não se dará apenas por aqueles que não têm acesso tecnológico à internet, mas acesso aos conteúdos.
‘Vamos ver quem é palhaço nessa história’
Seria possível incluir o Creative Commons na Lei do Direito Autoral?
A.K. – Tudo é possível. Não é recomendado porque, como eu expliquei, o Creative Commons é um instrumento para a liberdade, não há necessidade de colocá-lo na lei como se fosse uma obrigatoriedade. Ele pertence ao espaço de liberdade privada que podemos utilizar sem interferência da legislação (desde que a própria licença CC se mantenha dentro dos limites que a legislação impõe, pois também não pode criar situações que são ilegais). A legislação surge muitas vezes como limitador da liberdade privada. Ou seja, somos livres, mas nem tanto, pois somos livres para contratar dentro dos limites legais. Isso é bastante compreensível quando pensamos nas normas de direito do consumidor. Foi necessária a intervenção do Estado nas relações privadas buscando equilibrar interesses distintos, regular relações entre pessoas jurídicas muito fortes e as muito fracas. Foi necessário. O mesmo deve ocorrer agora, pois interesses econômicos muito fortes estão dominando a questão e deixando pouco espaço para a liberdade privada e de interessados pouco capazes economicamente.
É possível comparar a Lei de Direitos Autorais no Brasil com a de outros países do mundo?
A.K. – É claro que sim. Na Alemanha, por exemplo, eu posso tirar cópia de um livro para uso privado. A lei permite isso e os tribunais já decidiram, inclusive, que mais de uma cópia é permitido. Aqui no Brasil o artigo 6, II, da Lei 9.610 só permite que você tire ‘partes de uma obra’ (sem mencionar o que são pequenos trechos) para uso privado desde que a cópia seja feita por você (não pode ser numa loja de cópias) e sem intuito de lucro, o que é a mesma coisa que dizer que não pode. É até trágico-cômico, pois essa impossibilidade fica localizada na lei justamente no capítulo que deveria dispor sobre as ‘possibilidades’ de acesso, e no entanto, o que é disposto é, de uma forma muito sutil, um reforço à propriedade, e não um limite a ela. Não devemos esquecer que a propriedade intelectual, desde muito tempo, teve enorme facilidade de internacionalização, sendo que o primeiro tratado internacional multilateral, a Convenção de Paris de 1883, regula a propriedade industrial, marcas e patentes, enquanto a Convenção de Berna, de 1886, regula o direito autoral. As leis nacionais devem se pautar pelas convenções ratificadas. Portanto, nosso limite de liberdade também é dado dessa forma. Mas nossa lei é mais rigorosa, pois prevê, por exemplo, o prazo de 70 anos de proteção, após a morte do autor, enquanto a Convenção de Berna indica pelo menos 50 anos. Poderíamos diminuir, portanto, a duração do direito, já que está muito extensa. Além disso, não possuímos limitações extrínsecas explícitas, o que caracteriza o forte desequilíbrio entre direito de acesso à cultura e direito autoral.
Desde o surgimento da internet, a legislação avançou, acompanhando as mudanças ou ainda não dá conta deste novo cenário?
A.K. – O Brasil está completamente deficitário. Avançamos na questão do debate público, discutindo o marco civil da internet (proposta do Ministério da Justiça) e depois a lei de direitos autorais (proposta pelo Ministério da Cultura). Falta a lei dos crimes cibernéticos. Então falta tudo. Aqui, o Brasil serviu de exemplo para o mundo. Mas agora temos receio de uma regressão. Se no final o resultado for que o debate não serviu para nada, será que tudo foi uma grande palhaçada? Um golpe de popularidade? Somos todos palhaços? Vamos ver. Vamos ver quem é palhaço nessa história. Talvez, como diz o professor Thomas Hoeren, do ITM, na Alemanha, seja o caso de deixar que as grandes empresas fortaleçam a Lei de Direito Autoral ao máximo, pois então o sistema vai implodir e destruir todos, principalmente quem desejou tanta proteção.