Com a proximidade do carnaval, abre-se a temporada de campanhas massivas, patrocinadas pelo poder público, para alertas à população. As peças, feitas para TV e jornais, aproveitam a tradicional folia de rua para falar de práticas de risco, como o sexo sem camisinha e o consumo de substâncias ilegais, como crack e cocaína. O que chama a atenção é o tom, quase sempre moralista, presente nessas campanhas de utilidade pública, estratégia que parece longe de tocar mentes e corações, como fazem os filmes criativos e de produção impecável assinados pelas agências de propaganda para vender uma gama de produtos e serviços.
Alguns poucos exemplos. Ano passado gerou polêmica nas redes sociais uma campanha de utilidade pública que associava o usuário de drogas ilícitas a um jumento. Também parecem não produzir o efeito desejado as advertências que certos anunciantes estão obrigados a fazer, usando de frases do tipo ‘Se beber, não dirija’ ou ‘Esse remédio é contra-indicado em caso de dengue’. Enquanto isso, verdadeiras ilhas da fantasia, habitadas por ‘loiras geladas’ e fast food, desafiam os brios mesmo dos telespectadores mais conscientes. O fato é que há um descompasso na eficácia da propaganda estatal e aquela com objetivos comerciais.
‘Depois de décadas trabalhando com publicidade, até hoje há uma coisa que me incomoda muito. São todos aqueles produtos maravilhosos, e nem sempre saudáveis, que levamos para dentro da casa das pessoas pela televisão. Os anúncios necessariamente despertam fortes desejos e o impulso de compra imediata. Crianças e jovens de famílias sem poder aquisitivo ficam vulneráveis. Não tenho dúvida que isto ajuda a aumentar a criminalidade.’ O desabafo é do publicitário Agnelo Pacheco. Pode até soar como um mea culpa, mas o conjunto de suas criações e a maneira como ele encara a profissão colocam seu comentário, profundamente honesto, em um outro contexto.
O equívoco do sexo seguro
Dentre os profissionais do primeiro escalão da propaganda brasileira, Agnelo é o que criou e dirigiu o maior número de campanhas sobre causas sociais e temas que angustiam nossa sociedade. Combinando com perícia recursos como o realismo e a criatividade, o publicitário, nascido no Rio e radicado em São Paulo, exibe em seu portfólio campanhas que tratam de uma ampla temática social, da violência doméstica contra mulheres e idosos, pedofilia, tabagismo, drogas, poluição ambiental, ao combate e prevenção de doenças como o câncer de próstata e a dengue.
Sem apelos óbvios ou moralistas, suas produções provocam forte impacto emocional e convidam as pessoas à ação. Por causa de seu genuíno caráter de utilidade pública, as campanhas, encomendadas pelo terceiro setor, empresas e associações de classe, também acabam pautando a imprensa. A mais recente campanha dirigida por Agnelo Pacheco, feita para a OAB paulista, está nas ruas. Foram produzidos cartazes que estampam uma imagem que vale por mil palavras. De uma enorme lata de lixo transbordam rostos de adolescentes de aparência feliz e saudável. Duas frases fecham a criação: ‘O álcool e as drogas já levaram muitas vidas’ e ‘Converse com seu filho. Você sabe dos riscos, ele nem imagina’. Também são indicadas atitudes preventivas que os pais podem adotar. Recado dado sem o uso de clichês.
‘A campanha da OAB coloca em evidência o álcool, que hoje atrai gente cada vez mais jovem. Esse grupo social primeiro faz uso dessa droga lícita, responsável por inúmeras mortes no trânsito e outros tipos de violência urbana. Só mais tarde é que os adolescentes experimentam as drogas ilícitas. O governo parece ignorar essa realidade ao concentrar verbas em campanhas contra a maconha e o crack. É preciso que empenhe mais esforços contra o uso do álcool pelos jovens. O poder público também comete outro equívoco. As campanhas sobre sexo com camisinha só são veiculadas às vésperas do carnaval, como se as pessoas transassem apenas nessa época do ano’, destaca Agnelo.
‘Sem maquiar a realidade’
Anos atrás, o publicitário levantou uma bandeira. Queria emplacar uma nova regra no mercado: que entre 10% e 15% do valor arrecadado com a venda de bebidas alcoólicas fossem depositados em um fundo para ações de combate à ingestão do produto. ‘Discuti a ideia com os fabricantes e agências de publicidade. O governo quase aprovou, mas na hora H tudo foi engavetado.’
Nas palestras que profere em faculdades, Agnelo Pacheco faz questão de mostrar aos jovens aspirantes que a publicidade e o ativismo social hoje precisam caminhar juntos. ‘Digo a eles que temos a obrigação de colocar nosso talento a serviço das causas sociais, além de convencer cada cliente a fazer parte desse movimento de mudança, mas com sinceridade.’ Nesses tempos em que é preciso parecer ‘politicamente correto’, essa colocação pode até parecer marketing pessoal, mas não é. Já em 1975 Agnelo Pacheco conciliava esses princípios na publicidade comercial.
‘Naquela época, eu estava produzindo uma campanha para um banco. O filme seria veiculado na TV, durante as festas natalinas. O argumento girava em torno da pergunta `O que é Papai Noel para você?´ Fiz questão de gravar uma das tomadas em um asilo público. Um homem negro, bastante enrugado e de olhar expressivo, chamou minha atenção. Seu depoimento foi ao ar e ele dizia que nunca tinha visto o bom velhinho. Uma semana depois recebi a notícia de que aquele senhor, que estava desmemoriado, era procurado pelas filhas havia mais de catorze anos. Esse acontecimento foi o melhor prêmio que ganhei na vida. Eu gosto de filmar, e não de maquiar a realidade. Acredito que é possível seguir nessa trilha e fazer publicidade de boa qualidade, seja ela comercial ou de utilidade pública.’
Em tempo: Agnelo Pacheco foi o primeiro brasileiro a conquistar, em 1976, o Clio Award de Nova York, que premia a excelência criativa em publicidade e design nos quatro cantos do planeta. Somando as estatuetas que recebeu até hoje, ele acumula cinco Clio. Na década de 1980, ele experimentou o crème de la crème da propaganda internacional ao emplacar dois leões no festival de Cannes.
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Jornalista, São Paulo, SP