Pergunta insistente, mas de respostas complexas, que dependem muito mais de um aprendizado de todos: manifestantes, polícia e imprensa. Este último ator, supostamente especialista nos diagnósticos do presente, ficou um tanto perdida, sem entender, ao calor dos fatos, o seu significado. De início condenatório, o tratamento midiático das manifestações foi adquirindo contornos de simpatia e, por último, de enaltecimento. A imprensa internacional se encarregou de recobrir de glamour essa Primavera Brasileira. E as manifestações solidárias, em outros países, até encontrou, em inglês, uma “retranca” que estava faltando por aqui: “Fuck the Cup”.
Um denominador comum que se podia depreender já na primeira manhã pós-nacionalização do “movimento”, por meio dos telejornais, foi a dedução de que as manifestações são parte constitutiva da democracia e assim são perfeitamente aceitáveis, não fosse a presença de elementos infiltrados – e, quem sabe, até financiados – e politicamente aproveitadores. A própria presidenta Dilma Rousseff soube, por intermédio da ministra Helena Chagas, dar a volta por cima da vaia que recebeu sábado (15/6) no Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Consenso, traduzido pela imprensa: tanto as manifestações têm de ser pacíficas, quanto a polícia. Surge desse cenário, pela primeira vez na história brasileira, a noção de a repressão também pode e deve ser pacífica, democrática e respeitosa.
Por esses dias de manifestações, não têm sido fácil as falas com a moçada, tal o agastamento deles, a ponto de não estarem na escuta de uma única frase completa que não seja de ressonância com a energia que lhes move. Escrever, todavia, é sempre a esperança de que algum dia, como eles dizem no jargão, a ficha caia. Há momentos em que os ouvidos dos interlocutores são parabólicas direcionadas para outras sintonias. E insistir nesses instantes é reforçar o ruído na comunicação.
Difícil, portanto, questionar o pacifismo de protestos que terminam em vandalismos, por mais que se escute a desculpa de que a violência foi praticada por uma minoria de arruaceiros infiltrados. Aos baderneiros, lamentavelmente, temos de atribuir um terrível mérito. Eles não têm o poder da convocação, mas têm a competência de arrematar as manifestações com atos de violência e depredações, que resultam, com a reação da polícia, em violência contra todos. E, por capricho, nessas horas a pontaria dos jatos de água, pimenta, gás lacrimogêneo e balas de borracha é mais certeira com os pacifistas.
Mobilização e movimentos
Temos de aprender com o passado das manifestações pacifistas que não resultaram em violência, e sim em mudanças. E, ao que parece, isso é tarefa para nós, de outras gerações, pois, esta que neste momento sai às ruas motivada por uma lista de indignações é composta de jovens que estavam no colo ou ainda a caminho do berço, quando do movimento dos cara-pintadas que forçaram um presidente à renúncia, no início da década de 1990. Há, no entanto, uma diferença em relação às manifestações do passado, que tinham focos mais precisos. As atuais começaram com um “gancho”, que era o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus e foram incorporando outros: gastos com a Copa do Mundo, roubalheira, corrupção, PEC 37 etc.
As “bolhas” de infiltrados sempre existiram e é próprio deles atuar para que o espírito de porco prevaleça sobre o espírito de corpo, se é que os coitados dos suínos tenham de comparecer, mais uma vez, como âncora retórica. Governantes de todas as épocas recorreram a um lugar comum para desqualificar manifestações – atribuir o que nelas houve de inaceitável a “bandos” de baderneiros ou subversivos. E, aí, já se apresenta uma de suas características. Eles agem em bandos e não em coletivos dotados de alguma organização.
Manifestações são mais orgânicas quando se respaldam em movimentos. E campanhas diferem de mobilizações. Campanhas podem ser sazonais ou episódicas. Mobilizações têm caráter de permanência e de enfrentamentos de longo prazo. É preciso que os revoltosos tenham foco e identidade, para não correr o risco dos rótulos, que sempre emanam da criatividade das representações sociais.
As manifestações desta rodada, por exemplo, ainda estão à procura de uma legitimidade ideológica que, se não encontrada, entrará para a história como a “Revolta do Vinagre” (atenuante para efeitos do gás de pimenta). Cada época com o seu know-how. Lembro-me que ao tempo da cavalaria, manifestantes levavam rolhas, sobre as quais cavalos e cavaleiros eram induzidos a tombos espetaculares. Mas, neste momento, há uma demanda especial: alguém sabe como identificar e neutralizar as “bolhas” infiltradas, de arruaceiros violentos, descaracterizadores de manifestações pacíficas? Mesmo as típicas bandeiras vermelhas, que tanto marcaram os protestos de outras épocas, agora são tidas como oportunismos inoportunos, já que o movimento é apartidário.
Ah! Então, trata-se de um movimento? Manifestações são instrumentos de mobilização. E mobilização é uma característica de movimentos, cujo caráter de permanência constitui, na sua multiplicidade, o que se denomina de sociedade civil organizada. Parece que não há outro caminho para as manifestações atuais senão o de se constituírem, de fato, em movimento, associação, enfim, de alguma forma organizacional, com lideranças e interlocutores, até mesmo para que se façam representar nas mesas de negociação das reivindicações.
Resíduos de ira
De um jovem que aderiu, via rede social, à “manifestação pacífica” de Brasília, ouvi dentre as suas enunciações de entusiasmo a palavra “revolução”. Ele trabalha com a hipótese de que os jovens que estão indo às suas estão fazendo a “sua” revolução. Ao que não resisti e contra-argumentei: revolução de quê? Para quem e para quando?
De uma outra pessoa, que passou um dia em frente da TV, assistindo ao vivo às manifestações, ouvi, repetidas vezes, a pergunta: “Será que isso vai dar algum resultado?” Algum resultado, sim. Revolução, por enquanto, muito cedo para afirmar.
Revoluções são como bodas, exigem maturidade. Por enquanto, bodas de vinagre. E há outro tipo de mobilização que assegura durabilidade às lutas e seus resultados. É o enfrentamento planejado e com metas de curto, médio e longo prazo. Em geral, essa categoria de mobilização é silenciosa e sua chama é mantida por poucos e abnegados militantes.
Quanto ao término pacífico das manifestações pacifistas, quanto a neutralizar “bolhas” de arruaças, temos de ir aos detalhes da História e resgatar os segredos que assistiam a carismas do porte de um Mahatma Gandhi (líder de tantas marchas), de um Martin Luther King (magnetizador de milhões) e também às manifestações (sem líderes específicos) do movimento hippie, igualmente genérico nas suas proposições de Paz e Amor. A Revolução dos Cravos (Portugal, 1973) e sua canção mobilizadora (Grândola, Vila Morena) é outra referência na longa e sóbria trajetória das revoluções que adotam a cultura de paz. E a paz depende muito mais de cultivo (e de paciência e espera) do que de explosões. Explosões, só de botões, de cravos, rosas… E pequenas conquistas que brotam do cotidiano.
Mesmo sabendo não haver contexto nestes dias, tentei dizer para alguns jovens que a verdadeira e maior revolução começa dentro de si próprio. Segundo Pierre Weil, em sua obra prima A arte de viver em paz, o primeiro passo para as mudanças no mundo começa com o desarmamento de si próprio. A paz interior é o primeiro de uma série de passos para a transformação do mundo e dos outros. Pouco adianta ir às ruas e fazer de tudo para que uma manifestação seja pacífica, se voltarmos para casa com o coração ainda com resíduos de ira. Mas, o mais importante deste momento talvez encontre ecos nas palavras de Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”. E os bons, neste momento, a despeito das “bolhas” dos maus, não ficaram em silêncio. Foram encarnar a própria “voz rouca das ruas”. E mesmo uma revolta não sendo ainda uma revolução, pode ser o início.
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Luiz Martins da Silva é jornalista e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília