Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quando o baralho tem cinco reis



‘J´accuse. Mon devoir est de parler, je ne veux pas être complice’ (Émile Zola)


Há muitos anos milito no movimento de democratização da comunicação. Já vi muita coisa escabrosa, mas poucas vezes me senti tão constrangido quanto na reunião realizada pelo ministro Hélio Costa, no dia 1° de agosto, em Brasília, para discutir a digitalização do rádio.


O tal ‘conselho’ convocado pelo ministro não tem existência de fato. Não há um ato normativo que o tenha criado. Ninguém sabe quantas pessoas o integram, quais os critérios de composição e não há recursos para custear a ida dos participantes (cada um paga do seu bolso, aumentando a desigualdade entre radiodifusores e os movimentos sociais). Tampouco houve uma convocatória pública.


Esta foi a segunda reunião, mas não havia uma ata da anterior, com o relato do que fora discutido. Também não havia uma pauta para esta reunião e, antes de o ministro chegar, os presentes foram sugerindo assuntos a um assessor do ministério. Ao final da reunião, a proposta para a criação de grupos de trabalho simplesmente não foi encaminhada e não foi marcada a data do próximo encontro.


Pedido de socorro


Na sala de reuniões estavam mais de quarenta pessoas. Exceto pela presença da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC), da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO), do Coletivo Intervozes, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e da Associação das Rádios Públicas (ARPUB), todos os demais ou eram do governo ou empresários. Alguns em suas falas chegaram a reconhecer que não representavam ninguém, mas apenas a sua própria rádio, o seu próprio negócio. Por que os empresários tiveram o privilégio de comparecer em massa? Até um jornalista da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) acompanhou a reunião, enquanto o restante da imprensa esperava do lado de fora.


O ministro chegou, falou por um longo período, explicando o porquê de sua preferência pelo IBOC (padrão norte-americano) e anunciou a decisão para três semanas.


Antes, contudo, o representante da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) já informara que existe uma consulta pública em andamento, que define os critérios para o processo de avaliação, e que, portanto, não há um relatório conclusivo sobre os testes que as emissoras comerciais vêm fazendo com o IBOC. Ora, se a consulta pública não acabou e se não há uma avaliação dos testes, qual o critério que o ministério usará para tomar a decisão?


Tive a oportunidade de questionar o ministro, dizendo que poderiam existir vários critérios diferentes para a escolha. Um deles seria a possibilidade de democratizar o espectro eletromagnético, abrindo-o para novas emissoras. E, neste caso, o IBOC era considerado (em um estudo realizado pela Benton Foundation) um ‘devorador de banda’. Isso significa que o espaço atualmente ocupado pelas emissoras irá dobrar e, consequentemente, diminuirá a disponibilidade para novas rádios. Fui bruscamente interrompido pelo ministro (várias vezes!) e, quando ficou patente que eu não demonstrava vontade de me calar diante das interrupções, um assessor do ministério simplesmente se levantou e disse que eu devia encerrar minha fala.


Mas o mais curioso foi que, para defender o IBOC diante do estudo da Benton Foundation, o ministro pediu socorro ao assessor da ABERT, Ronald Barbosa, que ficou, então, encarregado de ‘explicar’ como funciona o IBOC. Neste gesto simples, mas tão sintomático, o ex-empregado da TV Globo e proprietário de uma rádio FM em Barbacena demonstrou que não sabe ainda separar a figura do ministro da figura do radialista. O ministério tem assessores e o ministro não pode, em uma reunião pública, se socorrer com as explicações do empresariado. Para citar uma expressão repetida à exaustão por membros deste governo, esta não foi ‘uma atitude republicana’.


Longa espera


Menos republicano ainda foi descobrirmos que na reunião estavam presentes dois empregados da empresa norte-americana Ibiquity, dona do padrão norte-americano IBOC. Mas não havia nenhum representante de outros padrões tecnológicos.


Antes de me interromper, o ministro já havia feito o mesmo duas outras vezes. Primeiro, em relação à ABRAÇO. Depois, com o representante da Telavo (empresa que fabrica transmissores). A Telavo argumentava que não podia fazer transmissores IBOC porque a Ibiquity não cedera as especificações necessárias. Com isso a indústria nacional ficaria de mãos atadas. A resposta do ministro não podia ser mais esclarecedora: ‘Se vira’.


Indiretamente, a fala da Telavo revela uma outra preocupação. O padrão IBOC é proprietário da Ibiquity, que cobra uma licença anual para cada rádio que utiliza sua tecnologia. Hélio Costa afirma que essa taxa (paga pelas rádios nos Estados Unidos) não será cobrada no Brasil. Mas não apresenta um único documento oficial para comprovar o que diz. O exemplo da soja transgênica da Monsanto prova que esse tipo de licença pode ser abolida na implantação da tecnologia, para retornar posteriormente quando todos já a estiveram utilizando. É a máxima que afirma que ‘a primeira dose é de graça’.
Ao longo da reunião, vários empresários se sucederam para dizer que o ministro tem a ‘responsabilidade’ de escolher o IBOC, que o rádio não sobreviverá no Brasil se esta não for a decisão do governo e que os testes já ocorriam há muito tempo e que o país não poderia esperar mais.


Os mesmos empresários que pediam pressa ao ministro não comentavam, contudo, que o Brasil espera há 45 anos por uma nova lei para as comunicações, que aguardamos há 19 anos a regulamentação do capítulo da comunicação da Constituição Federal e que, mais recentemente, o Ministério da Justiça reabriu o debate sobre a classificação indicativa da programação, a pedido dos próprios empresários, mesmo depois de ter concluído um debate de três anos. O sentido de urgência em um caso simplesmente não vale para todos os outros casos.


Em favor do oligopólio


Para se justificar diante de tantos absurdos, o ministro afirmou que o processo de escolha seguirá os mesmos trâmites da TV digital. O que é, obviamente, um absurdo. No caso do rádio digital não há um decreto criando um ‘sistema brasileiro’, não foram feitas pesquisas e não há um conselho consultivo. Perguntei ao ministro se, nesse caso, podíamos cobrar que o ministério produziria estudos sobre a política industrial, a legislação em outros países e os modelos de negócios (todos produzidos para a TV digital). Visivelmente constrangido diante da cobrança, o ministro afirmou não ter recursos para fazer tais estudos.


Segundo o ministro, trata-se, apenas, de uma atualização tecnológica e que quem faz política para as comunicações é o Congresso Nacional. Hélio Costa parece ter se esquecido que seu colega de profissão, Franklin Martins, está justamente formulando uma política (que deverá seguir na forma de medida provisória) sobre a criação de uma TV pública. Até onde sabemos, Martins não é um parlamentar, mas integrante do mesmo poder Executivo que abriga o ministro Hélio Costa.


Sei que sobraram poucos companheiros de jornada no governo Lula. Daqueles que ajudaram a eleger este governo e, ao mesmo tempo, a construir um movimento pela democratização da comunicação. Aqueles que estiveram na equipe de transição e que, antes, fizeram o programa de governo para a área. Os que por lá estão devem ter seus motivos. Avaliam que ainda é possível fazer algo de importante pelo país ou precisam pagar o aluguel no fim do mês. De uma forma ou de outra, se continuam acreditando nos ideais pelos quais tanto lutaram, devem ter ficado no mínimo constrangidos ao perceber que desde Antonio Carlos Magalhães o Brasil não tinha um ministro tão despudoradamente dedicado à causa do oligopólio privado das comunicações.


Eu, pelo menos, fiquei envergonhado com o que vi naquela sala em Brasília.

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Jornalista, coordenador-geral do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs) e integrante do Coletivo Intervozes