A noção de que os meios de comunicação e imprensa exercem papel fundamental na democracia, subsidiando a formação da opinião pública, tornando transparente o exercício do poder e, desse modo, coibindo abusos, é mais do que um chavão batido. Trata-se de uma daquelas verdades comezinhas do senso comum que têm História – uma longa e boa História! – e que, por isso mesmo, deve ser levada a sério. Aliás, como muitas outras que compõem nossa cultura ordinária e que ajudam a tornar o nosso cotidiano menos áspero e desagradavelmente imprevisível (por exemplo, as noções de que se deve dar ‘bom dia’, dizer ‘obrigado’, tratar todas as pessoas, incluindo os estranhos, e mesmo os desafetos, com respeito e educação etc.).
Por isso mesmo, tanto os(as) historiadores(as) como os(as) analistas políticos e sociais têm se dedicado a investigar e a esclarecer os modos pelos quais tais papéis políticos e institucionais de controle e informação são desempenhados pelos órgãos de mídia e qual o impacto, positivo ou não, que essa intervenção exerce sobre o funcionamento dos governos, dos partidos, dos parlamentos e, por último, mas não menos importante, sobre o pensamento do(da) cidadão/cidadã, do(da) eleitor(a) e dos(das) participantes dos movimentos sociais.
Eu mesmo, já há um bom tempo, tenho tentado compreender esses processos e, para isso, tenho me valido de algumas ferramentas teóricas úteis. Uma delas é a noção de que, nessa importante tarefa, os modernos meios de comunicação de massa exercem sobre as chamadas pessoas públicas – aquelas que exercem funções políticas de relevo em nossa sociedade – um poder de natureza moral e psicológica que chamei de ‘efeito pan-óptico’. [Tive a oportunidade de desenvolver o argumento em trabalhos como Lattman-Weltman, Fernando, ‘Mídia e transição democrática: a (des)institucionalização do pan-óptico no Brasil’, IN: Abreu, Alzira Alves: Lattman-Weltman, Fernando; Kornis, Mônica Almeida, Mídia e política no Brasil: jornalismo e ficção. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.]
Código explícito de conduta
Para quem não conhece, o pan-óptico foi inventado no século 19, na Inglaterra, por um filósofo muito interessante chamado Jeremy Bentham. A idéia de Bentham era permitir a criação de estruturas para o funcionamento de instituições fechadas – em especial, presídios –, de modo a permitir que um pequeno número de supervisores(as) pudesse, ao mesmo tempo, controlar o comportamento de muitos internos(as).
O segredo do funcionamento do pan-óptico, porém, estava no fato de que ele deveria ser construído de tal modo que o(a) interno(a) soubesse sempre que, a qualquer momento, poderia estar sendo vigiado(a), mas jamais pudesse saber exatamente quando. Assim – e aí estava a grande descoberta! – o(a) verdadeiro(a) vigia seria, na verdade, o(a) próprio(a) interno(a). Ao saber que poderia ser flagrado(a) a qualquer momento em desvio de conduta, e sem nunca saber quando, tornando-se assim passível de punição, ele/ela teria um grande e desagradável incentivo para reprimir-se e internalizar o controle. Aquilo que talvez não pudesse ser obtido em função de uma eventual educação moral deficiente – incapaz de fazê-lo(a) controlar-se quase que exclusivamente por sua própria consciência, a partir de uma noção imperativa que lhe permitisse distinguir, de forma auto-constrangedora, o certo do errado – passaria a ser, em sua especificidade, encargo de um aparato arquitetônico e de um código explícito de conduta, atuando externamente.
Comportamento e transparência
Desse modo, quando associo o efeito pan-óptico à ação da mídia, pretendo, obviamente, chamar a atenção para o modo como a visibilidade pública, produzida hoje por um sistema de comunicação praticamente onipresente, pode exercer poderoso incentivo para que pessoas públicas, celebridades e indivíduos situados em posições estratégicas de poder – quer dizer: pessoas ciosas de suas reputações; e, talvez por isso mesmo, alvos preferenciais da atenção dos veículos – não incorram em desvios graves de comportamento, ou mesmo em atitudes dúbias, passíveis de censura ou recriminação.
Acontece, porém, que um sistema como o pan-óptico – e outros similares, com a mesma finalidade, mesmo que sem os mesmos recursos e peculiaridades – só pode funcionar, e obter do(a) interno(a) o comportamento desejado, se houver, para aquele(a) que está sujeito(a) ao controle, correspondência identificável entre as eventuais punições – ou recompensas – que recebe e o seu comportamento assim avaliado. Pois sem essa correspondência, ficará difícil saber qual o comportamento desejado pela instituição controladora e seus(suas) agentes.
Dito de outro modo: não se pode obter de ninguém que esteja submetido a controle o comportamento adequado se: (1) as punições/recompensas a ele/ela aplicados(as) em diferentes momentos por um mesmo comportamento forem erráticas e contraditórias – por exemplo, punindo-se hoje o que vai ser recompensado amanhã; ou (2) reagindo-se sempre do mesmo modo, negativa ou positivamente, a comportamentos totalmente diferentes, ou ainda mais, opostos. No 1º caso, o(a) interno(a) não terá como identificar o incentivo correto e não saberá como agir para se manter livre de punição, ou mesmo para ser recompensado(a). Já no segundo caso, o que vai suceder é que o(a) interno(a) se sentirá sempre culpado(a) (ou inocente) não importa o que faça. E assim, acabará não fazendo diferença alguma para ele/ela estar ou não submetido(a) ao controle imprevisível do pan-óptico. A internalização não surtirá mais efeito algum sobre o comportamento. E a transparência tornar-se-á simplesmente inútil.
Arbitrário e sem critério
Ora, se o mesmo raciocínio for estendido às relações entre os modernos meios de comunicação e as pessoas públicas que eles privilegiam como foco e alvo de suas coberturas, e se se pretende atribuir a essas relações um papel importante no que se refere ao funcionamento do sistema republicano – de modo a fazer dessa relação e seus efeitos um mecanismo institucional útil para a salvaguarda dos interesses e recursos públicos –, torna-se evidente que ou a mídia atua de modo coerente e responsável em sua eventual vigilância ou sua intervenção fatalmente deixará de produzir qualquer ‘efeito pan-óptico’ desejável.
Sim, porque se os veículos de mídia forem incoerentes na reprimenda ou na apologia das formas de conduta – tratando, por exemplo, diferentes personalidades, em igualdade de conduta, como se diz, com dois pesos e duas medidas – ou se (tal como tem sido talvez ainda mais freqüente nos dois últimos anos) reservar sempre o mesmo tratamento a certas personalidades e instituições, não importa quais sejam os seus comportamentos, os sinais acabarão sendo interpretados de modo prejudicial à democracia e ao interesse público. A mídia será vista como um vigia arbitrário e sem critério – incapaz, portanto, de exercer qualquer pressão construtiva –, e seus alvos se verão livres para agir do modo que melhor lhes convier, segundo as circunstâncias, sem ter mais de se preocupar, por um minuto sequer, com as atenções e juízos dos poderosos ‘vigilantes’. Pois o que quer que façam ou deixem de fazer, serão sempre tratados do mesmo modo.
Em se tratando, por exemplo, de um(a) determinado(a) governante, governo, partido ou coalizão, um dos efeitos da supervisão sem critério ou imutável só poderá ser, afinal, a indiferença diante da própria mídia, diante do próprio pan-óptico. Com todos os efeitos perversos daí previsíveis (da perda de sensibilidade diante da opinião pública midiatizada até à incursão deliberada e despreocupada no desvio de conduta, por exemplo).
Ainda mais se a esse mesmo ‘interno’ corresponder algum outro vigia menos atento, mas ainda mais poderoso. E eventualmente mais criterioso.
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Cientista político, sociólogo, professor e pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), e da Pontifícia Universidade Católica, (PUC-RJ)