O Supremo Tribunal Federal (STF) referendou, no dia 27 de fevereiro, uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra a Lei de Imprensa (nº. 5.250, de 1967). Apresentada pelo deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), a ADPF nº. 130 suspende a vigência de 20 dos 77 artigos da lei e permite que os juízes brasileiros utilizem dispositivos dos Códigos Penal e Civil para julgar processos que versem sobre os trechos temporariamente suspensos da Lei de Imprensa. Entre eles estão casos de calúnia e difamação e direito de resposta. Agora, o STF tem um prazo de seis meses para decidir se a lei será revogada em definitivo.
É consenso entre profissionais e empresas de jornalismo que a Lei de Imprensa precisa de uma revisão, mas o jornalista e professor da Universidade de Brasília (UnB) Luiz Martins da Silva alerta para os riscos de abolir a lei por completo. ‘Não se pode jogar fora, junto com a Lei de Imprensa, a bacia, a água e a criança. Se toda a Lei de Imprensa for embora, sobra o Código Penal, e isso não é bom negócio para ninguém, nem para a imprensa’, considera. Para Martins, a existência de uma norma é inevitável. ‘O direito de ir e vir, por exemplo, é sagrado, mas não se pode ir e vir abusando dos outros, do meio ambiente ou da civilidade’, compara.
O professor da Faculdade de Comunicação (FAC) e coordenador do projeto SOS Imprensa propõe a criação de uma lei geral de comunicação, a ser criada a partir de ‘uma conferência nacional de comunicação onde todos participam: patrões, empregados, sociedade, governo, Estado, sociedade civil, terceiro setor etc.’
Na entrevista abaixo, o jornalista explica as falhas da Lei de Imprensa, diz que o jornalista brasileiro gosta de liberdade, mas não de responsabilidade e elogia a qualidade do jornalismo nacional. ‘É até covardia comparar o jornalismo brasileiro com o contexto latino-americano. Nosso jornalismo é o melhor, de longe, na América Latina. Em termos mundiais, eu não diria o mesmo, mas nós temos competência jornalística’, garante.
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Se estava ultrapassada, por que a Lei de Imprensa demorou tanto para ser revista?
Luiz Martins da Silva – Não é a primeira vez que se tenta acabar com Lei de Imprensa ou substituí-la. Tanto que numerosos substitutivos foram feitos ao longo de toda sua existência. A própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e vários deputados apresentaram substitutivos. O problema é que a Constituição Federal de 1988, que é democrática e cidadã, jamais foi regulamentada no que diz respeito à comunicação, comunicação de massa ou imprensa. Ela só foi regulamentada por meio de leis ordinárias ou de leis complementares. Na vacância dessa regulamentação, prevaleceu até agora a Lei de Imprensa.
Por que a Lei de Imprensa brasileira é ruim?
L.M.S. – Ela é uma lei heterônoma. Foi feita de cima para baixo, é uma legalidade sem legitimidade. Ela não decorre do debate, da opinião pública, de uma discussão e ou uma deliberação anterior. Ela só teve a decisão. As leis devem ser precedidas por um debate nos espaços e esferas públicos sobre a sua necessidade. Constatada a necessidade, encaminham-se propostas para a deliberação. Quando se tem o melhor texto, ele vira um projeto de lei, sancionado pelo presidente da República, e, finalmente torna-se um estatuto legal que tem o amparo da sociedade. Isso não aconteceu.
Que ponto problemático da lei o senhor destacaria?
L.M.S. – A Lei de Imprensa tem algumas excrescências. Um exemplo é a tal da exceção da prova da verdade. Isso significa que se um repórter denunciar, no jornal, um chefe qualquer dos poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário – e, no caso de chefes de Estado, até os chefes estrangeiros e seus representantes aqui –, mesmo que ele comprove ser verdadeira a informação, essas autoridades poderão processá-lo criminalmente. Só isso já era suficiente para varrer essa lei do mapa. Essa Lei de Imprensa nunca deveria ter existido, e já está na hora de se aposentar por invalidez.
Como seria uma Lei de Imprensa ideal?
L.M.S. – Uma Lei de Imprensa tem que prover a liberdade de pensamento e expressão e prover direitos ao cidadão – não apenas às empresas – de se expressar. Ela deve prover a imprensa como um espaço público que permite a livre circulação das idéias, a pluralidade das idéias e o direito universal de defesa. Antes de tudo, ela precisa garantir um direito à réplica. Numa sociedade democrática e plural, todo mundo tem que ter direito não só a voz, opinião e expressão verbal, visual, textual ou multimidiática, mas também à pluralidade de idéias.
O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), que apresentou a ADPF ao Supremo, defende a suspensão total da Lei de Imprensa. O senhor concorda?
L.M.S. – Não se pode jogar fora, junto com a Lei de Imprensa, a bacia, a água e a criança. Se toda a Lei de Imprensa for embora, sobra o Código Penal, e isso não é bom negócio para ninguém, nem para a imprensa. Quando o Código Penal é utilizado ao pé da letra, ele se torna uma ferramenta autoritária e muito pesada. A Lei de Imprensa tem um limite de 200 salários mínimos de indenização. Qualquer advogado que vai processar um jornalista hoje sabe muito bem que, se retirar o caso da Lei de Imprensa e colocar no Código Penal, acabam-se os limites. Com base em outros códigos, dependendo do ajuizamento do valor da ação, alguém pode argüir uma resposta material em termos de indenização desproporcional. Isso, sim, pode transformar os processos contra jornais em uma indústria de indenização.
Mas há jornalistas comemorando a suspensão da lei.
L.M.S. – Há alguns equivocados batendo palma porque a velha Lei de Imprensa está indo embora. É uma espécie de onda neoliberal que, por exemplo, acabou com a classificação indicativa. A classificação indicativa de televisão por faixa etária virou uma auto-classificação. Ou seja, quem exibe a novela diz qual é o horário e julga qual é a moralidade embutida na novela. É uma espécie de ética indolor porque para os outros, não para si. É preferível uma lei autoritária, que coíbe abusos, ou lei nenhuma, com abuso livre? A segunda situação cria autoritários da mídia. O monopólio do autoritarismo passa do Estado para as grandes empresas, que formam uma espécie de Estado paralelo.
Grande parte dos opositores da Lei de Imprensa a encaram como uma forma de censura. É possível que uma lei como essa exista sem oferecer risco à liberdade de expressão?
L.M.S. – Esse questionamento vem dos primórdios da Constituição norte-americana. A famosa primeira emenda diz: ‘Não se legislará de forma a obstruir a liberdade de imprensa.’ É bom que estejamos chegando finalmente a esse princípio. Contudo, o direito de ir e vir, por exemplo, é sagrado, mas não se pode ir e vir abusando dos outros, do meio ambiente ou da civilidade. De acordo com a lei de livre comércio, é permitido abrir um restaurante, mas existe a Vigilância Sanitária. Há todo um controle de qualidade. Uma das coisas que mais tem funcionado no Brasil é o Código de Defesa do Consumidor. Não seria ele coercitivo em relação à liberdade de comércio? Outro exemplo é o Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar), que não existe para coibir a liberdade de publicidade. Ele é um código de ética para salvaguardar o cidadão, sobretudo as crianças.
Por que a regulamentação da imprensa é um assunto tão delicado no Brasil?
L.M.S. – Adoramos a liberdade, mas detestamos admitir que somos civilizados em matéria de responsabilidade. Pegue o exemplo do Conar. O código desse conselho está cheio de expressões do tipo ‘este código condena’, que são bem fortes. Nós não seríamos bem vistos se direcionássemos esse tipo condenação à imprensa: ‘É proibido iludir’, ‘é proibido induzir’, ‘é proibido publicar informação enganosa’. A liberdade é um valor absoluto, mas a responsabilidade é um valor difuso e muito relativo e, geralmente, só atinge os mais fracos – em quem o autoritarismo mais bate. O autoritarismo não bate na mídia forte. Os poderosos políticos e econômicos têm medo da mídia. Saímos de um monopólio autoritário do Estado e temos que evitar um monopólio autoritário da iniciativa privada.
O reinício das discussões sobre a legislação da imprensa parece um bom momento para refiná-la. Como fazê-lo?
L.M.S. – Precisamos de uma parada geral, inclusive de concessão de canais de rádio e TV. Uma grande conferência nacional de comunicação, uma espécie de assembléia constituinte. Ela está sendo pautada por todos os movimentos que defendem liberdade de opinião e comunicação, não apenas do ponto de vista empresarial. O Brasil precisa de uma lei geral de comunicação e ela tem de decorrer de uma conferência nacional de comunicação onde todos participam: patrões, empregados, sociedade, governo, Estado, sociedade civil, terceiro setor etc.
O senhor considera bom o jornalismo praticado atualmente no Brasil?
L.M.S. – De forma genérica, sim. No âmbito do jornalismo, diria que temos 90% de informação. É até covardia comparar o jornalismo brasileiro com o contexto latino-americano. Nosso jornalismo é o melhor, de longe, na América Latina. Em termos mundiais, não diria, mas temos competência jornalística. O jornalista brasileiro pisa na bola de vez em quando, mas o jornalismo de antigamente era muito pior. A grande figura do jornalismo brasileiro é Barbosa Lima Sobrinho, que passou sua vida lutando pela liberdade de imprensa. Hoje, já temos isso. Outro paradigma é Assis Chateaubriand, o magnata que trouxe a televisão para o Brasil. Só que o jornalismo praticado por ele chega a ser folclórico. Ele interferia em julgamento de juiz, inventava histórias. Era um Macunaíma da imprensa. Já passamos dessa fase. Ainda existe coronelismo na imprensa brasileira, mas essa não é mais a regra. Hoje, daria uma nota de 7,5 para 8. Mas quando se considera a mídia de uma forma mais ampla, a situação é diferente. São três os ramos: informação, educação e diversão. E, aí, há um desequilíbrio fantástico. Na mídia brasileira, temos 90% de diversão (e diversão de mau gosto), 1% de educação e o resto de informação.
E quando o jornal se propõe a não apenas investigar, mas julgar pessoas supostamente envolvidas em irregularidades?
L.M.S. – Isso se chama publicidade opressiva. É um noticiário avassalador, esmagador, falacioso e desequilibrado. Vamos supor que o reitor da UnB, por exemplo, tenha errado ao dotar o apartamento funcional de um requinte. A partir disso, apaga-se toda uma gestão, campi universitários do Gama, Ceilândia e Planaltina, a universidade perde contratos etc. Isso é uma avalanche que não permite réplica, tréplica e até a edição da foto irá mostrar alguém monstruoso, um ignóbil. Não faço advocacia, apenas menciono um caso doméstico. Mesmo um crime, que não é o caso, não tem que ser punido com um massacre. E todo mundo tem direito à réplica e à defesa. É essa coisa da imprensa tribunal. Ela acusa, julga e sentencia muito rápido. No caso da cantora mexicana (Gloria Trevi), os policiais foram envolvidos indevidamente no caso. Os jornais induziam a imaginar que algum deles era pai da criança que ela esperava na cadeia, até que o teste de DNA mostrou que o empresário da cantora era o pai. Isso afetou a relação dos oficiais com suas famílias. Só um louco varrido publica uma notícia sobre a paternidade de alguém se ele não estava na alcova no momento da concepção, e ainda que estivesse, poderia duvidar.
E as retratações, nesses casos, são raríssimas.
L.M.S. – Pedir perdão não faz parte da nossa cultura. Qual é a última lembrança que você tem de uma retratação na televisão? Aquele caso do Gugu, por exemplo. Tudo naquela reportagem sobre o PCC (Primeiro Comando da Capital) era falso. A juíza responsável pelo caso declarou que aquilo foi um dano moral coletivo. Se uma televisão coloca uma informação errada sobre a reputação de alguém, isso se torna um dano moral não apenas para aquela pessoa, mas para todos os que passaram a achar que aquela pessoa era daquele jeito. Liberdade de imprensa, sim, mas para o crime e para a arrogância, não. Veja o caso do (ex-presidente da Câmara dos Deputados) Ibsen Pinheiro. Ele pegou o repórter que publicou uma notícia incorreta sobre ele e o levou a Porto Alegre, à sua residência, para que o jornalista contasse à sua família o erro que ele cometeu.
Qual é a melhor forma de resolver esses casos?
L.M.S. – Há dois tipos de resposta: a consensual, que é mais uma retratação, e a judicial, que não é boa para ninguém. Não é boa para o ofendido porque vai ter que gastar com advogado e demora muito – essa resposta costuma sair em juridiquês e, às vezes, seis anos depois. No caso de uma empresa pequena, o direito de resposta pode simplesmente matá-la. Outro caso é a reparação por danos morais, quando os advogados costumam pedir indenizações. Então, o grande negócio é solução consensual, mas não existe um lugar para buscar isso no Brasil. Não há um conselho de mídia a serviço do cidadão. O Conselho Federal de Jornalismo morreu porque as empresas se apressaram a dizer que ele era mais um atentado à liberdade de imprensa. Deveria existir um conselho de comunicação social onde o cidadão pudesse ir buscar direito de defesa, direito de réplica e reparação por danos morais. Dependendo do veículo, a indenização não funciona porque seus ganhos com a publicação do material podem ser maiores do que o preço para quem sofre dano. Na Inglaterra, chegava-se a pagar US$ 1 milhão por uma foto da princesa Diana. Então, é um negócio lucrativo.
É possível aprender com exemplos de outros países?
L.M.S. – Sim. Há países cujas leis de imprensa datam de 1766, como a Suécia. Neste momento, a Suprema Corte dos Estados Unidos está discutindo se vai criar uma lei para delimitar o distanciamento entre fotógrafos e celebridades. Além disso, a Inglaterra tem uma comissão chamada Press Commission Complaints. É uma comissão de queixas contra a imprensa. Há alguma dúvida de que existe liberdade de imprensa na Inglaterra? Não. É uma espécie de ouvidoria pública. Quem tem medo de uma ouvidoria? Que mal faria um Procon da mídia no Brasil?
O senhor coordena um projeto chamado SOS Imprensa na UnB. Ele não funciona como uma ouvidoria?
L.M.S. – Nossa utopia para o SOS Imprensa é que ele seja uma ouvidoria humanitária. Queremos ouvir qualquer pessoa que tenha uma fantasia sobre como a mídia deve ser. Não temos como julgar se a pessoa é ou não inocente, se a notícia foi ou não caluniosa, mas queremos ouvir até o Hildebrando (Pascoal, ex-deputado no pelo Acre), que segundo os jornais, serrava seres humanos porque se julga um injustiçado. Para a faculdade, interessa muito receber alguém que não se acha um santo, mas que discorda do retrato que pintaram dele nos jornais. Que noticiem o crime, mas com decoro e ética. O SOS Imprensa tem esse espírito. Não fazemos advocacia, mas vamos dar todas as orientações necessárias. E a primeira delas é: tente algo consensual. Nunca orientamos para o conflito, ainda que legítimo. Queremos que a sociedade saiba que alguém solitário e desamparado será ouvido aqui.
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Da Secretaria de Comunicação da Universidade de Brasília