Quantos milhões de empregos poderiam ser criados no Brasil, nos próximos cinco anos, se os brasileiros, de um dia para outro, deixassem de pagar impostos para investir na produção e para exportar? Investimento, produção, competição internacional e criação de empregos: são estes os grandes temas que dão sentido ao debate sobre a reforma tributária, um assunto raramente apresentado aos leitores de forma clara e na sua real dimensão. A culpa, dirão alguns, não é da imprensa. Os jornais cobrem os debates do mundo real, e o debate real, na política brasileira, é essa coisa aí.
Essa coisa aí, em todo o esplendor de sua mixuruquice, tem sido mostrada no dia-a-dia da cobertura. O Estado de S.Paulo dedicou, na primeira semana de março, duas matérias ao relator do projeto de reforma tributária na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, deputado Leonardo Picciani (PMDB-RJ). Uma reportagem publicada no dia 5, uma quarta-feira, mostrou o deputado fluminense defendendo a guerra fiscal como ‘parte do jogo’ num regime federativo. Na edição de sexta (7/3), ele apareceu propondo um novo esquema de tributação do petróleo, para reforçar a receita de seu estado, o Rio de Janeiro.
Eliminar a guerra fiscal, uma das principais distorções do sistema brasileiro, é um dos grandes objetivos da reforma tributária. Não é uma idéia nova. Aparece há mais de dez anos em todas as propostas mais amplas de renovação do regime tributário. Nenhum especialista de renome havia defendido a guerra dos incentivos como componente essencial do regime federativo e da ‘autonomia’ dos estados.
Terreno árido
O relator do projeto na CCJ introduziu essa novidade no debate e anunciou sua disposição de combater a unificação do ICMS, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, se a mudança afetar aquela ‘autonomia’. Essa unificação é importante por mais de uma razão. Hoje, o Brasil tem 27 legislações diferentes para o principal imposto estadual e essa mixórdia complica estupidamente a atividade empresarial (enquanto o esforço nos países mais dinâmicos e mais competitivos é para simplificar a produção e os negócios).
Os governos de vários estados, já se sabe, defenderão a permanência da guerra fiscal, mas o farão principalmente para forçar a adoção de novos mecanismos de desenvolvimento regional. Esse jogo é compreensível e justificável, mas o que se espera – ou se deveria esperar – do relator de um projeto de tanta importância é uma atuação em nível mais alto.
Da mesma forma, alguns governadores, como o de São Paulo, devem batalhar para que os estados de origem fiquem com mais de 2% do ICMS nas operações interestaduais. Pelo projeto do Ministério da Fazenda, todo o imposto, menos esses 2%, passará a ser cobrado no destino. Essa parcela é considerada muito pequena pelos governos dos estados ‘exportadores’, isto é, dos que mais vendem do que compram. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, segundo informou a Folha de S.Paulo no sábado (8/3), está disposto a levar em conta a pretensão desses governadores.
Todos esses detalhes têm algum peso e serão discutidos e negociados durante a tramitação do projeto, inevitavelmente, com ou sem interferência do relator na CCJ. Mas são, até certo ponto, questões marginais – muito menos importantes que a adoção de esquemas para desoneração das compras de máquinas e equipamentos, dos gastos em construções de fábricas e da eliminação, para valer, dos impostos sobre a exportação. O debate envolverá pormenores chatos e quase ininteligíveis para a maioria das pessoas, como a definição de esquemas para apropriação de créditos fiscais.
Pontos a esclarecer
É parte da tarefa do jornalista, na cobertura de um tema tão complexo, não perder a noção da importância relativa dos detalhes. O repórter e seu editor devem ser capazes de acompanhar e de entender as minúcias, mas sempre tendo em vista o grande cenário. Só assim poderão transmitir ao leitor uma boa descrição do andamento do jogo.
Neste caso, o jogo ainda está nos primeiros movimentos. A cobertura tem mostrado os detalhes iniciais, como a movimentação dos governadores, os contatos do governo com empresários e políticos e as primeiras manifestações do relator do projeto na CCJ da Câmara. O Estado de S.Paulo reforçou a matéria da quarta-feira (5) com alguns detalhes preciosos. Picciani recebeu a relatoria do presidente da comissão, deputado Eduardo Cunha, também do PMDB fluminense. No ano passado, Picciani era o presidente e Cunha foi por ele indicado para relatar o projeto de renovação da CPMF, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. Cunha só entregou seu parecer depois de o presidente Lula concordar com a nomeação de Luiz Paulo Conde, ex-prefeito do Rio, para a presidência de Furnas.
Esses detalhes são importantes e valem pontos para a cobertura. Mas por que não ir um pouco mais longe e mostrar, por exemplo, como se comportaram os demais partidos diante desse jogo de nomeações? Os parlamentares mais velhos, mais experientes e mais familiarizados com as grandes questões econômicas aceitaram sem desconforto a indicação de um jovem de 28 anos e em primeiro mandato para a relatoria do projeto de reforma tributária? Conheciam suas idéias e seus compromissos a respeito do assunto? Ou nem deram bola para o critério de preenchimento do cargo?
Afinal – e esta é uma pergunta que tem muito sentido, nesta altura –, quantos parlamentares estão de fato interessados numa boa discussão e num bom encaminhamento de um projeto de importância tão grande quanto o da reforma tributária? Esclarecer esse ponto poderia ser uma boa maneira de esquentar a cobertura neste início de jogo.
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Jornalista